Ao longo da minha vida conheci
pessoas, vi algumas vidas dilaceradas, senti dúvidas, surpresas, esperanças.
Mas nada que se compare com a história de uma mulher que conheci bem, em Telavive. Chamava-se Susie H. e a sua vida sai fora de tudo o que se possa imaginar. Porque a minha amiga Susie passou pelos campos de extermínio!
Cartas e postais da minha amiga Susie
Conheci-a numa tarde em que passeava o meu cão, no Jardim Ben Gurion.
Eu com o meu cão Zac, ela com os dois cães dela. Rafeirotes todos eles, encontrado o meu em Roma, os dela por ali.
Susie, os nossos cães, e eu, na Sderot Ben Gurion
Conversámos
uma, duas vezes, encontrámo-nos frequentemente no passeio dos nossos cães, fui a casa
dela ao serão, e ficámos amigas. Uma amizade que se foi aprofundando, crescendo.
Era
uma mulher torturada, marcada pela vida.
Um
dia abriu-se e, levantando a manga da blusa -só depois reparei que usava quase sempre mangas compridas, até aos pulsos, mesmo de Verão-, mostrou-me o braço.
Na
parte interior, na pele muito branca, vi um número tatuado, em caracteres
pequenos mas que se viam bem.
Judeus, quadro do pintor israelita Dorin
Começou a contar, pouco a pouco. Deixo o que ela me contou, num breve apontamento, o diálogo entre nós, numa tarde de Abril. Já escrevi sobre ela antes, por isso não me alongo aqui.
Sderot Ben Gurion (MJF)
"Estávamos
a estudar, eu e a minha irmã, quando a Guerra rebentou. Depois, os alemães chegaram à Polónia...Eu tinha
doze anos e a minha irmã, dezassete.
E foi contando...
- Ficámos dois anos, nos campos. Primeiro, numa fábrica de armas, depois num campo de extermínio .
- Ficámos dois anos, nos campos. Primeiro, numa fábrica de armas, depois num campo de extermínio .
Interrompia-se.
- Hoje penso na ironia da nossa sorte de judeus: estávamos a fazer armas para os alemães nos virem bombardear a todos!
- Hoje penso na ironia da nossa sorte de judeus: estávamos a fazer armas para os alemães nos virem bombardear a todos!
Eu olhava-a, siderada, sem respirar.
- E os teus pais? A tua irmã?
Sabia,
como todos sabemos, a saída dos comboios e a separação impiedosa das famílias, e vinham-me à memória as imagens
de tantos filmes, as barracas, o frio, a neve, a dor, as "experiências"...
Judeus, em Aushwitz
-
Conseguimos ficar juntos.O meu pai era-lhes útil, era médico, podia ser "aproveitado",
como os médicos ou os químicos ou outros que tivessem “interesse” prático. A minha mãe fingiu
que era enfermeira...
Calou-se um momento, na recordação solorida.
- Fomos sobrevivendo. Alguns sobreviveram...
Primo Levi, outro sobrevivente
Aharon Appelfeld, sobrevivente de Auschwitz...
O
principal era deixá-la falar, pensei.
-
Tu não podes imaginar, Maria -dizia-me, como se adivinhasse as imagens que me iam passando na minha cabeça.
Sim, eu não podia imaginar, apesar de muito ter lido e visto em filmes.
Judeus e o Holocausto, Felix Naussbum
-Ninguém pode calcular! Fico toda arrepiada só
de olhar para o meu braço, ainda hoje. Estremeço, ainda sinto o medo.
Depois,
olhava-me com o seu ar irónico, abanando a cabeça, triste.
-
Ninguém pode perceber...
E Susie ia contando...Do
primeiro campo seguiram para outro, a situação tornava-se cada vez mais dura, mais inumana.
Até que acabaram em Auschwitz.
Recordou a chegada, a separação do pai, as mulheres nuas à sua roda, de cabelos rapados, debaixo dos duches gelados. O espanto, os olhares receosos. A incompreensão.
- E os filhos? As famílias?, pensava eu. Separados. Sozinhos.
- Maria, não sabes como era grande a fragilidade daquelas mulheres...
Continuava a falar, com custo.
- Nuas, os corpos jovens ou velhos, sem defesa, a tremer no frio do Inverno.
Continuava a falar, com custo.
- Nuas, os corpos jovens ou velhos, sem defesa, a tremer no frio do Inverno.
Continuava a falar, com custo. E espanto, ainda, passados tantos anos.
- Não consigo esquecer o sangue
que corria pelas pernas de algumas delas, como fios finíssimos, na pele muito
branca. Nunca esquecerei até morrer!
Olhava-me com o seu olhar magoado e duro.
- Depois, fomos levadas, sem saber para onde.Os braços tatuados eram só uma parte do horror...
Olhava-me com o seu olhar magoado e duro.
- Depois, fomos levadas, sem saber para onde.Os braços tatuados eram só uma parte do horror...
Repetia:
-
Ninguém pode entender. Desprotegidas!"
árvore da vida do judeu Yaïr Emmanuel: a Esperança...
Lembro-a e deixo as suas palavras, hoje, em que passa mais um ano sobre esse Holocausto...
Sem palavras
ResponderEliminarFlores de sal
É horrível... E o que me dói é que hoje há quem tente fingir que nada disto se passou, que foi um delírio. As pessoas não se devem calar, sobretudo as que têm relatos para contar, para não deixar esquecer este terror.
ResponderEliminarÉ arrepiante e ninguém passa por uma experiência dessas, que nós não conseguimos sequer imaginar, sem ficar marcado para toda a vida.
ResponderEliminarComo foi possível acontecer?...
Um beijinho grande
Conheci algumas pessoas que sofreram, mas nunca ninguém que tivesse o coração cheio de amargura e de raiva ( não digo ódio, porque imagino que o superam para poder viver). As fotos do holocausto provocam muita dor, todos temos que ver o que passou, mas como não vamos esquecê-lo nunca mais, repetir uma e outra vez parece-me um pouco masoquista. O que é preciso agora é que não volte a acontecer nada parecido.
ResponderEliminarUm grande beijo
Como o Mar Arável refere: "sem palavras". Às vezes o silêncio apesar de pesado é uma homenagem.
ResponderEliminarUma homenagem sem dúvida pertinente. Fez Jus à memória do que se deve rebater.
A Árvore da Vida encantou-me. :) Beijinho.