sexta-feira, 12 de julho de 2013

Ainda os livros policiais e o Shangri-la, o paraíso perdido...

"Shangri-la", fotografia internet

“Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).”

Miguel Torga (*)


Voltando atrás, quase a chegar ao fim do livro de que já aqui falei (“Como duas gotas de água”), pus-me a pensar que a literatura policial é literatura para todos os efeitos e que, pelo facto de falar de crimes e de assassinos, isso não impede que fale da vida e do Homem.

Basta lembrar Hammett, Chandler e Simenon que não fizeram outra coisa...

Refiro-me ao livro da escritora irlandesa, Tana French. Um livro que faz pensar.

fotografia MJF 

É literatura que “distrai”, dizem. 

Muitos me acusam:
“O quê? Mais um livro policial? Não sabes ler mais nada?

Sei, claro que sei, adoro ler. Adoro ler tudo...
Distrai, claro que distrai, mas faz-nos pensar -como os outros livros- , basta que o escritor seja bom, seja um escritor e tenha coisas para dizer. 

Importante: que tenha nível.


Este livro fala dos tempos de hoje. Ainda me lembro do que disse há dias uma cara amiga minha:

“Há livros que parecem perdidos para sempre, neste mundo de cifrões, cifrões em que nos vimos metidos. Livros que falam de outras coisas que não economia, finanças e dinheiro, riqueza e sexo... Os sentimentos profundos parece que hoje não contam...”

É verdade, mas também é verdade que muita gente continua à procura desses livros e que talvez o mercado não seja tudo na vida, como há quem queira.

"Vender ou não vender, eis a questão", pode ser a bitola para algumas editoras, mas há as que continuam a publicar os grandes romances, os clássicos e os modernos...
Há muitas, ainda!

Neste livro, contam muito os sentimentos. E a recusa desse tal mundo dos cifrões...

Toda a história gira à volta dessa recusa e o “plot” é consequência dos sentimentos "ofendidos”, da desilusão sentida por ver desmoronar-se um sonho...

O sonho do Shangri-la, o paraíso perdido de Milton (Lost Horizon, 1933)perdido, para os homens que não acreditam nele.

Shangri-la a terra da Utopia possível existia na velha mansão arruinada que um grupo de 5 jovens procura para se isolar do mundo que não amam.


Estes cinco preferem outro mundo, aquele em que o sonho talvez ainda seja possível. 

Um mundo em extinção?, perguntamos. 


São eles pessoas que pertencem aos "animais em perigo de extinção? 


Estes têm um sonho ainda!


Poderiam dizer, como Miguel Torga:

“Aparelhei o barco da ilusão/E reforcei a fé de marinheiro. /Era longe o meu sonho, e traiçoeiro/O mar...”

Se o Shangri-la não existe, houve alguém que acreditou que ele era possível e tudo apostou nele.


fotografia MJF 


O Shangri-la, neste caso, era a velha mansão arruinada que, amorosamente, aqueles cinco tentam restaurar: Whitethorn House, o refúgio seguro... 


fotografia MJF 


Sentem-se protegidos pelos muros da velha Whitethorn House, a propriedade que Daniel March herda, “por milagre”, como ele diz, e onde se encerram para viver em paz.

A vida continuava lá fora, mas o pequeno grupo vivia de longe a vida dos outros, distanciando-se deles.  Sabiam que, ao regressar a casa, bem fechado e acolhedor, ali estava a "casa", o seu mundo...


Quando se encontram os dois primeiros membros do (futuro) grupo, é no “hall”  da Universidade de Trinity, em Dublin. Amy acabara de dizer, alto, mas para si apenas:




“Não quero crescer e ficar como aquelas carcaças velhas”. (p.443)

Referia-se aos “lúgubres” retratos de antigos mestres que enfeitavam o salão.

Daí nasce o entendimento com Daniel que, por sua vez, confessa, mais tarde:


L. S. Lowry, os homens-fósforos 

“Odeio a sociedade moderna. (p.426). A sua vulgaridade, a sua incultura, a sua obsessão do dinheiro e o seu frenesim de consumo revoltam-me.”

Para ele, é fácil compreender quantas vezes os governantes desejam manter os homens no “embrutecimento da cultura de massa, na servidão, nos medos do amanhã, na angústia de perder o emprego e de não poder pagar as contas no fim do mês”. Escravizando-os, dando-lhes um pouco de coisas, para adormecer as exigências.


L. S. Lowry, a cidade industrial 


“Esta escravatura era o que eu recusava com todas as forças. Só tinha um sonho: viver livre, longe do mundo.”


L. S. Lowry, estropiados 

Retirar-se para poder ser ele próprio. Recusar as vidinhas medíocres. E foi o que,  tal como Daniel March, escolheram os outros:  Abby, Justin, Rafe e a pessoa que eles conhecem como Lexie. 

A escolha era não aceitar as regras dos compromissos, da hipocrisia do mundo de que não queriam participar.


Era: ler, escrever, pensar, cozinhar, ter uma hortinha de ervas aromáticas– livremente. 


fotografia (MJF) 

Parar o tempo na casa velha. Olhar pela janela e ver o jardim, as árvores e os campos ao longe.





S. L. Lowry, a casa (janela)

Dar a cada um a possibilidade de se escolher: de terem uma vida diferente à medida de cada um.

Há sacrifícios a fazer, há um preço a pagar e eles sabem. Para trás, quebradas as pontes, deixaram o outro mundo. Todas manhãs vão juntos à Universidade e fazem os seus cursos, preparem as suas teses, dão as suas aulas.

fotografia (MJF) 

Protegidos, no entanto, uns pelos outros: almoçam juntos, fazem a viagem para Dublin juntos, vão aos “pubs” juntos, longe da aldeia e dos outros. Glensheky era uma aldeia pobre da Irlanda, onde grassava a ignorância e o ódio pelo que vinha de fora.


fotografia de MJF, Guildford 

E, no regresso, espera-os a casa, cheia de mistérios e de encantos, e o isolamento, no ambiente que amam.Tudo ali para eles era divertido e maravilhoso.

Depressa começam a pagar o preço da distância a que põem os outros. “Desamados” pelas gentes  da aldeia, são criticados mas sobretudo ignorados - porque estrangeiros, com hábitos diferentes dos de toda a gente.


desenho de L. S. Lowry 

Acusam-nos de pertencerem a uma seita, de serem hippies tardios e perdidos. Vêm deitar-lhes pedras às janelas e ameaçá-los.

Mas eles sentem-se fortes: eram uma família forte, porque se tinha escolhido e não fora imposta. Fugiam de passados dolorosos, sem famílias, e saber que podiam contar uns com os outros para sempre era reconfortante.


fotografia (MJF) 

Juntos, podiam tudo!, pensavam, confiantes. Como se vivessem realmente no Clube dos Cinco, da infância.

“Nunca fui tão feliz na minha vida”, diz um dos cinco. “Era o nosso Havre”, diz outro. “Pela primeira vez, apreciava a companhia do meu semelhante...”

Iludiam-se, pensavam que nada os faria ser como os outros, não iam envelhecer, nem ser adultos. Julgavam poder guardar para todo o sempre o espírito de união do clube ...

 “Era uma ideia errada logo à partida”, reconhece um dos heróis. “Repousava sobre dois mitos: a possibilidade da permanência e a simplicidade da natureza humana. Ora esses mitos não existem se não nos livros”. (p.429)


fotografia (MJF) 

Na vida a sério são apenas fantasmas, escorrem-nos por entre os dedos...


Aldo Zari


Tinham abandonado para trás o passado (era proibido falar do passado), famílias, amigos. Aceitaram não ter nunca “uma vida normal” com casamento e filhos, outra família que não esta. Viveriam apenas uns para os outros.

Todos eles pensavam assim? Aceitavam as regras? Veremos que não.

Não era uma coisa simples. Tinham passado quatro anos, havia pequenas brechas que se tinham aberto e das quais não queriam dar-se conta.



Aldo Zari, sem título, 1974-75


“Era uma ideia errada logo à partida”...

As pessoas mudam, tudo é perene, a permanência transforma-se em devir. 

No meio deles havia alguém que fugia, fugia sempre e não se queria fixar. Ninguém podia prender um ser selvagem -  em fuga!



fotografia MJF 


Era uma Utopia viverem daquele modo? Não sei, aconteceu assim...

Um dia, o Shangri-la desmoronou-se.


Aí começou o desastre. Um desastre que foi longe de mais! 

Leiam o livro (**)...


(*) Miguel Torga, Antologia Poética, 5ª ed., Dom Quixote, Lisboa 

Tana French

(**) http://falcaodejade.blogspot.pt/2013/07/policiais-para-o-verao-os-irlandeses-e.html


10 comentários:

  1. Shangri-la perdido ... acho que podemos reencontrá-lo.

    bj grande

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  2. Parece bem interessante!
    Realmente faz-nos pensar...até que ponto se consegue viver assim quase isolado...e porque aparecerão conflitos ao fim de uns anos de convívio? Se calhar, tal como nalguns casamentos, algumas amizades, porque as pessoas mudam.
    Tem que haver um meio termo, um equilíbrio, entre a solidão que desejamos e o convívio com os outros, não é?...

    Gostei muito das fotos e das pinturas. Gosto imenso das de S.L.Lowry. Algumas acho que não as conhecia.
    Também nunca tinha colocado aqui a segunda do Aldo Zari, pois não? É muito bonita.

    Enfim, gostei muito do post!
    Um beijinho e bom fim-de-semana!

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    1. O livro é muito interessante e põe problemas sérios. Paga-se um preço enorme pelo afastamento total e, depois, quando é que aquele isolamento não passa a ser "prisão"?
      beijinhos

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  3. Se contasses a história toda, já seria perfeito! Não faz mal, porque como despertas a curiosidade muito bem, é só ir a google e chegar até ao final...
    Um beijinho

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  4. Helo! Para a semana vem a minha irmã Toy ( o sogro morreu há 3 dias, para descanso de todos, começando por ele próprio), o meu cunhado Carlos, o meu sobrinho que está de emigrante em Paris, e o filho, o Tomás. Está separado da mulher há anos. Lá para o fim da semana talvez venham também os de Granada, assim que me vou esquecer que isto existe por uns dias...
    Não sei se me dará tempo a escrever qualquer coisa no blog antes, imagina que terrível para os meus leitores!!!! Entretanto podes escrever qualquer coisa, como estás, por exemplo. Eu estou bem, e vou estar muito acompanhada, e ocupada, como deves imaginar. Por um lado dá preguiça, mas por outro compensa muito. A Toy, antes do casamento dos filhos, sempre fez praia na minha casa, com toda a família, os namorados, o meu pai, e até o sogro dela. Era uma grande festa, e no Natal voltávamos a estar todos juntinhos, mais a minha outra irmã e famíla, em Celorico. Era muito bonito, e foi assim anos e anos, até que de repente acabou como acaba tudo!!
    Que te vou eu contar que tu não saibas já!
    Escreve, beijos

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  5. Cara MJ, posso estar errado, mas acho que o problema da casa não tenha sido a inviabilidade da utopia, mas sim algum morador que não era partidário dela. Outra coisa: lendo sua narração, entendi sua defesa do romance policial. Isso porque a parte policial do romance (que, para muitos, sugere uma literatura "menor") parece importante para o enredo, mas apenas um detalhe para a mensagem e a linguagem do livro. Estou certo? Aliás, suas palavras também expressam uma utopia, algo que faz de você uma luz na Internet. Um abração do Mateus (São Paulo, Brasil).

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    1. Caro amigo Mateus! Claro que a utopia pode sempre encontrar-se! Foi um que "cedeu", porque tinha escolhido partir e não teve coragem de o confessar, daí a tragédia.
      A Literatura policial tem escritores muito bons! Nunca mais acabava de os citar! Até Allan Poe foi dos primeiros a inclinar-se para esse género.
      Obrigada pelo que me escreve: " suas palavras também expressam uma utopia". Era a mensagem que eu queria deixar!
      Abração aqui deste lado do Atlântico! Bom domingo!

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  6. Maria João,
    Não conheço Shangri-la. Confesso que me despertou o interesse. Os bons escritores como diz, têm sempre uma mensagem dos tempos que correm e da gente que o envolve. Os policiais distraem mas também informam sobre a época, os costumes, a cidade ou o campo onde ocorre a história.
    Gostei da arte e das fotografias.
    Grata pela partilha.
    beijinho. :))

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    1. Ana! tem de ler o "Horizonte Perdido", do James Hilton! Ali tem o Shangri-la! É lindo! Peça à nossa Cláudia, ela arranja-lho! Li-o na bela colecção Miniatura. Já agora peça-lhe também "Adeus, Mr. Chips", outra obra-prima dele (para mim!).
      beijos

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