domingo, 21 de julho de 2013

Dando a palavra aos outros... No mesmo barco?



“Para ti, que partes,
Para mim, que fico,
Há dois Outonos”
(Haiku de Masaoka Shiki)

Falo de Inácio Steinhardt que, por sua vez, fala de Yaakov Raz, que, pelo seu lado, fala do "outro"

“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes. Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.” (Yaahov Raz)

Henri Bressenbrugge, 1910, Amsterdão

Rua Direita, Portalegre

Importante é falar, para nos "ouvirmos"... Mesmo que às vezes tudo pareça tão diferente, a rua deles nos pareça um lugar tão estranho, e nos custe tanto "dar o salto" para o outro lado, para o lado onde está o outro, claro!


Graffiti


Este é um excerto de um artigo de Yaakov  Raz, que foi traduzido por Inácio Steinhardt. 

Inácio Steinhardt, que conheço bem e de quem me considero muito amiga. Judeu polaco que viveu em Portugal, se nacionalizou português, depois israelita e vive há uns 30 anos em Givat Savion, perto de Telavive. Pessoa de uma humanidade extraordinária, de uma abertura de espírito enorme, pessoa generosa como poucas conheci...

Judeus Azeris

“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes. Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.”

Rua da Guarda

Mas não é isso que nos deve impedir de continuar!...
O Professor Yaakov Raz escreveu este artigo em 2003, Steinhardt traduziu-o em 2005, mas é tão actual ainda hoje... 
Em Israel? Não só em Israel... Como cá, como em França, como nas Primaveras árabes, no Madrid dos indignados, na perseguição aos ciganos e tantos outros casos! É tão difícil "ver" e "ouvir" o outro!

"Neste tempo, a força fala e já não se preocupa em justificar-se. Está aqui, e faz o que faz, como se assim fosse desde os tempos imemoriais da Criação, como um poder da Natureza, um tufão, por exemplo, devastador, mas compreensível.
 Neste tempo, já não é preciso ver o outro. Dizem-nos: agora não há tempo. Porque "ele", o outro, não nos dá tempo para que o vejamos, para que o escutemos. 
Ele, o outro, sempre ele, é que nos trouxe para a situação de utilizarmos a força. Pois foi ele que começou. Nós só reagimos. Talvez um dia, quando ele compreender [à força e pela força, porque ele só compreende a força], talvez então falemos uns com os outros. Se houver então com quem falar.
 Entretanto não se pode ver o outro nem escutá-lo. 
O outro tem sempre um nome genérico 'judeu, árabe, ortodoxo, colono, laico, "tsfoni" [habitante da zona exclusiva do norte de Telavive], russo..'.
E eu teimo em acrescentar "outros", por cá também...


O preto, cigano, homosexual, do Sul, do Norte, sem eira nem beira, pobre, etc. (Sim, porque os pobres também são o outro para muita gente...)


“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes. Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.”


Se fosse possível perguntar à rua, ela contaria a minha história. Como atravessei a rua com um certo receio, como comprei rebuçados na mercearia, como receei os tiros, como gostei do aroma do café.

Victoria Béhar e eu, em Telavive

Como passeou por aqui o meu avô, passando as contas de um rosário de contas atrás das costas, e apontou com a mão o outro lado da rua, como se fosse além-mar, e contou coisas estranhas sobre as pessoas que lá moravam. 

Telavive hoje


Como aprendi aqui a minha língua da boca de vendedores ambulantes, de caixeiros, de homens sentados nos cantos da rua, bebendo café, de rabinos, de amigos, de carregadores.


uma festa, perto de Rabat (MJF): a mesma alegria
A Mesquita Grande, em Casablanca

Se fosse possível perguntar à rua, ela contaria a tua história. Como atravessaste a rua com um certo receio, como lambias o mel na loja dos doces, como festejaste no pátio do santuário ao som dos instrumentos de corda, como tinhas medo das orações, como te apontaram para a minha casa e te contaram coisas estranhas sobre mim e sobre a minha família. 

Marraqueche na bruma

Como aprendeste a tua língua dos vendedores ambulantes, dos carregadores, dos homens sentados nos cantos, a fumar a "narguila", dos livros de histórias do Haj, dos amigos.”

Burrinhos em Fez (MJF)

(...)
“E o outro lado, ouve, mas não compreende. Pois não é o mesmo "lugar"!
Mas o que nós pretendemos dizer é: sim, a natureza do mundo é haver nele histórias diferentes e opostas, na mesma colina.

A "mesma colina", de Claude Monet...

A natureza do mundo é ele criar um lugar consoante o tempo, as circunstâncias e a origem do homem e consoante a história pessoal e colectiva do contador.

em Essaouira, olhando para o lado de lá... (MJF)


Por isso deve ser da natureza do mundo que as diversas histórias coexistam, umas ao lado das outras, e que uma não seja melhor, definitiva, superior, mais bela, mais verdadeira do que a outra. 

Cavalo árabe oferecido por um amigo de El-Jadida

Precisamente a construção das histórias pode fazer com que se encontrem os inimigos, que pretendem ter direitos de propriedade sobre o lugar, num encontro doloroso de imaginação.

"Projecto Abraão": crianças palestinas e israelitas aprendem na mesma escola

Os meus pesadelos são, por vezes, os teus sonhos. Os meus sonhos - os teus pesadelos.
Mané-Katz, Matrimónio judaico

Nós pretendemos dizer: Pode-se contar, pode-se escutar as histórias diferentes, sem que haja nelas lemas, amotinações, presunções, rejeições, fingimentos, ignorância, ameaça, ilusão de exclusividade.
É difícil de suportar. Como se não houvesse solução para a contradição. Só que  talvez  aí mesmo esteja oculta uma fonte de graça, a lição que o lugar dá aos que contam as suas histórias: Vivam uns com os outros com as vossas histórias diferentes.

alunos da escola hebraica, em Paris


Escutem o outro lugar que está exactamente neste mesmo lugar. Não há solução para a contradição, senão no conhecimento de que todos estão aqui.

Marc Chagall, o Circo

Nós pretendemos dizer: na faculdade infinita de escutar, que existe em todos nós, pode-se dar mais força aos contadores das histórias, e tornar as comunidades, que vivem no lugar, mais ricas, mais sólidas, mais diversas, mais nobres.

Myra Landau, azul


Pode ver-se a graça: uma colina é uma pluralidade de lugares, abre-se como um útero para todos os lugares que contem.”

E eu digo: estamos todos no mesmo barco, ou no mesmo "circo": A colina está cheia de pequeninas flores diferentes que fazem uma enorme mancha da mesma cor!

Claude Monet, pormenor




(Traduzido da revista “Haim Aherim” de 14/05/2003, do Professor Yaakov Raz, da Universidade de Telavive)





4 comentários:

  1. Um post intenso.
    Cada pessoa tem a sua definição de uma mesma rua.
    Na diferença podemos encontrar igualdades e muitas surpresas boas.
    Beijinhos meu Belo Falcão Lunar

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  2. Olá menina!
    Palavras sábias. As fotos lindas. Muita tristeza , mas também esperança. Vou escrever un mail, até já!

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  3. Maravilhosa esta história.
    A Maria João sabe contar tão bem as suas vivências.
    Parabéns. Gostei de tudo e da rosa de Myra Landau encantou-me.
    Beijinhos! :)

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  4. Ontem tinha aqui vindo, mas vi o post a correr. Hoje já li com atenção.

    Estamos todos no mesmo barco e devíamos TODOS ser mais tolerantes uns com os outros.

    É tão difícil às vezes acreditar que o mundo pode mudar...
    Um beijinho grande!

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