“Para ti, que partes,
Para mim, que fico,
Há dois Outonos”
(Haiku de Masaoka Shiki)
Falo de Inácio Steinhardt que, por sua vez, fala de Yaakov Raz, que, pelo seu lado, fala do "outro".
“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes. Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.” (Yaahov Raz)
Importante é falar, para nos "ouvirmos"... Mesmo que às vezes tudo pareça tão diferente, a rua deles nos pareça um lugar tão estranho, e nos custe tanto "dar o salto" para o outro lado, para o lado onde está o outro, claro!
Este é um excerto de um artigo de Yaakov Raz, que foi traduzido por Inácio Steinhardt.
Inácio Steinhardt, que conheço bem e de quem me considero muito
amiga. Judeu polaco que viveu em Portugal, se nacionalizou português, depois israelita e vive há uns 30 anos em Givat Savion, perto de Telavive. Pessoa de uma humanidade extraordinária, de uma abertura de espírito
enorme, pessoa generosa como poucas conheci...
“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas
a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes.
Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.”
Mas não é isso que nos deve impedir de continuar!...
O Professor Yaakov Raz escreveu este artigo em 2003, Steinhardt traduziu-o em 2005, mas é tão actual ainda hoje...
Em Israel? Não só em Israel... Como cá, como em França, como nas Primaveras árabes, no Madrid dos indignados, na perseguição aos ciganos e tantos outros casos! É tão difícil "ver" e "ouvir" o outro!
"Neste
tempo, a força fala e já não se preocupa em justificar-se. Está aqui, e faz o
que faz, como se assim fosse desde os tempos imemoriais da Criação, como um
poder da Natureza, um tufão, por exemplo, devastador, mas compreensível.
Neste
tempo, já não é preciso ver o outro. Dizem-nos: agora não há tempo. Porque
"ele", o outro, não nos dá tempo para que o vejamos, para que o
escutemos.
Ele, o outro, sempre ele, é que nos trouxe para a situação de
utilizarmos a força. Pois foi ele que começou. Nós só reagimos. Talvez um dia,
quando ele compreender [à força e pela força, porque ele só compreende a
força], talvez então falemos uns com os outros. Se houver então com quem falar.
Entretanto
não se pode ver o outro nem escutá-lo.
O outro tem sempre um nome genérico 'judeu,
árabe, ortodoxo, colono, laico,
"tsfoni" [habitante da zona exclusiva do norte de Telavive],
russo..'.
E eu teimo em acrescentar "outros", por cá também...
E eu teimo em acrescentar "outros", por cá também...
O preto, cigano, homosexual, do Sul, do Norte, sem eira nem beira, pobre, etc. (Sim, porque os pobres também são o outro para muita gente...)
“Eu vejo uma rua. Tu vês uma rua. Eu conto a história dessa rua. Tu contas
a história dessa rua. E temos, por obra de prodígio, dois lugares diferentes.
Até o nome da rua é diferente, na minha língua e na tua.”
Se fosse possível perguntar à rua, ela contaria a minha história. Como
atravessei a rua com um certo receio, como comprei rebuçados na mercearia, como
receei os tiros, como gostei do aroma do café.
Victoria Béhar e eu, em Telavive
Como passeou por aqui o meu avô,
passando as contas de um rosário de contas atrás das costas, e apontou com a
mão o outro lado da rua, como se fosse além-mar, e contou coisas estranhas
sobre as pessoas que lá moravam.
Telavive hoje
Como aprendi aqui a minha língua da boca de
vendedores ambulantes, de caixeiros, de homens sentados nos cantos da rua,
bebendo café, de rabinos, de amigos, de carregadores.
Se fosse possível perguntar à rua, ela contaria a tua
história. Como atravessaste a rua com um certo receio, como lambias o mel na
loja dos doces, como festejaste no pátio do santuário ao som dos instrumentos
de corda, como tinhas medo das orações, como te apontaram para a minha casa e
te contaram coisas estranhas sobre mim e sobre a minha família.
Marraqueche na bruma
Como aprendeste
a tua língua dos vendedores ambulantes, dos carregadores, dos homens sentados
nos cantos, a fumar a "narguila", dos livros de histórias do Haj, dos
amigos.”
(...)
“E o outro lado, ouve, mas não compreende. Pois não é o mesmo
"lugar"!
Mas o que nós pretendemos dizer é: sim, a natureza do mundo é haver nele
histórias diferentes e opostas, na mesma colina.
A "mesma colina", de Claude Monet...
A natureza do mundo é ele criar um lugar consoante o tempo, as
circunstâncias e a origem do homem e consoante a história pessoal e colectiva
do contador.
em Essaouira, olhando para o lado de lá... (MJF)
Por isso deve ser da natureza do mundo que as diversas histórias coexistam,
umas ao lado das outras, e que uma não seja melhor, definitiva, superior, mais
bela, mais verdadeira do que a outra.
Cavalo árabe oferecido por um amigo de El-Jadida
Precisamente a construção das histórias
pode fazer com que se encontrem os inimigos, que pretendem ter direitos de
propriedade sobre o lugar, num encontro doloroso de imaginação.
Os meus pesadelos são, por vezes, os teus sonhos. Os meus sonhos - os teus
pesadelos.
Mané-Katz, Matrimónio judaico
Nós pretendemos dizer: Pode-se contar, pode-se escutar as histórias
diferentes, sem que haja nelas lemas, amotinações, presunções, rejeições,
fingimentos, ignorância, ameaça, ilusão de exclusividade.
É difícil de suportar. Como se não houvesse solução para a contradição. Só
que talvez aí mesmo esteja oculta uma fonte de graça, a lição que
o lugar dá aos que contam as suas histórias: Vivam uns com os outros com as
vossas histórias diferentes.
alunos da escola hebraica, em Paris
Escutem o outro lugar que está exactamente neste mesmo lugar. Não há
solução para a contradição, senão no conhecimento de que todos estão aqui.
Nós pretendemos dizer: na faculdade infinita de escutar, que existe em
todos nós, pode-se dar mais força aos contadores das histórias, e tornar as
comunidades, que vivem no lugar, mais ricas, mais sólidas, mais diversas, mais
nobres.
Myra Landau, azul
Pode ver-se a graça: uma colina é uma pluralidade de lugares, abre-se como
um útero para todos os lugares que contem.”
E eu digo: estamos todos no mesmo barco, ou no mesmo "circo": A colina está cheia de pequeninas flores diferentes que fazem uma enorme mancha da mesma cor!
Claude Monet, pormenor
(Traduzido
da revista “Haim Aherim” de 14/05/2003, do Professor Yaakov Raz, da Universidade
de Telavive)
Um post intenso.
ResponderEliminarCada pessoa tem a sua definição de uma mesma rua.
Na diferença podemos encontrar igualdades e muitas surpresas boas.
Beijinhos meu Belo Falcão Lunar
Olá menina!
ResponderEliminarPalavras sábias. As fotos lindas. Muita tristeza , mas também esperança. Vou escrever un mail, até já!
Maravilhosa esta história.
ResponderEliminarA Maria João sabe contar tão bem as suas vivências.
Parabéns. Gostei de tudo e da rosa de Myra Landau encantou-me.
Beijinhos! :)
Ontem tinha aqui vindo, mas vi o post a correr. Hoje já li com atenção.
ResponderEliminarEstamos todos no mesmo barco e devíamos TODOS ser mais tolerantes uns com os outros.
É tão difícil às vezes acreditar que o mundo pode mudar...
Um beijinho grande!