sábado, 14 de novembro de 2009

"Os Olhos de Jade": capítulo 10





No ferry que se aproxima de Newhaven, a sul da costa inglesa, um homem novo está encostado à amurada. Fuma nervosamente. Tem os cabelos ruivos, os olhos castanhos, e as olheiras fundas de quem não dorme há muitas horas.
-Que pesadelo!..., diz em voz baixa.
E continua a pensar:
“Como é possível voltar a casa e saber que está morta...!? Saber que não a volto a ver...”
Olha fixamente a costa cada vez mais perto, respira fundo.
“Pouca sorte com as ilhas. Nesta, onde nasci, vou encontrar a minha mãe, morta. Quando deixei a outra ilha, perdi a minha infância, o meu pai...”
Revia os espaços de África, o verde infindável da floresta na bruma, o mar dum azul sempre vivo, a chuva a bater no telhado da casa, as torrentes de lama vermelha descendo a rua na estação das chuvas. O jardim tropical e os frutos que lhe pareciam de todas as cores do mundo...


E a imagem da mãe vinha, no seu vestido branco com papoilas, a segurar o chapéu de palha com uma das mãos, as fitas vermelhas caídas atrás, sobre os cabelos ruivos, e os olhos azuis a brilhar, divertidos.
-Meu Deus! Como foi possível!? Ela não podia morrer! Não podia...
Voltara a falar alto, gritava sem dar por isso.
Sacode a cabeça mas as imagens não o largam. Via os pais e a irmã no jeep atolado, num caminho deserto. Eles, miúdos, com o pai e o Zurigo a tentarem tirá-lo da lama, pondo enormes folhas de palmeira debaixo das rodas...
A mãe, agarrada ao volante, a rir-se.
“Desapareceu tudo num instante...”
Esse mundo maravilhoso de espaços abertos desaparecera e, de repente, o sentimento de perda, tremendo e doloroso, quando chegara à cinzenta Inglaterra.
“O que é que eu vou fazer? Morreste... A vida parou... Separados para sempre, mãe... E calo-me? Aceitei já a tua morte?”
Uma angústia enorme invadira-o. Vinham-lhe à memória uns versos de que a mãe gostava de Hanoch Levin:
Silent…meaning you did not rise, did not rebel…”
Aceitar a morte dela?
Meaning you go this way, I go that...”
Aceitar, sem gritos, nem protestos?
“Sem me revoltar? Em silêncio, mãe?! Não é possível!” No entanto, ali estava ele, aceitando, sem se rebelar, sem gritar...
Tinhas razão quando dizias que aceitaria a tua morte em silêncio...
“Inelutável”, repetias, “todos aceitamos... Vais ver... "
Parecia-lhe ouvir a voz doce e com um pouco de tristeza: “Fica só o pensamento, a lembrança, mais nada...”
Recordava bem a sua voz, declamando, devagar:
"... you burst out crying and then were silent,
meaning you did not rise, did not rebel,
meaning you were reconciled, meaning
I go this way, you go that."

"Sim, eu por este caminho, tu por aquele..." Mais sozinho e mais vazio.
"Recomeçar tudo do princípio, sem ti? Sem o teu olhar, o teu cuidado? Habituar-me a nunca mais te ver! Ó mãe, como é possível?”
Com uma das mãos tentou pôr ordem nos cabelos, despenteados pelo vento e pela maresia. Impaciente, segurava o cigarro aceso na outra.
-Não quero! Não posso aceitar!, gritou.
Encolheu-se dentro do duffle-coat, arrepiado e sozinho.
“Mais frio que em Amesterdão! Será sugestão, pelo cinzento do céu? Acho que sou eu estou gelado por dentro...”
A costa parecia aproximar-se rapidamente, o movimento das pessoas começara. Ouviam-se os motores a aquecer.
Entrou no carro, sentou-se e ficou a olhar para o mar, à espera.
Sem ele querer, o pensamento voltava atrás. Soubera da morte da mãe pelo telefone. Joan falara-lhe de Abidjan.
-“Michael querido, vou dar-te um desgosto enorme. Desculpa, tenho de ser eu a dizer-te, só eu é que posso... Uma coisa horrível...”
A voz suspendeu-se por um instante, depois ouvira-a respirar fundo e dizer num arranque:
-“A mãe morreu...”
-“A mãe? Estás maluca?!”
-“Morreu...”
“Não é possível a mãe morrer”, pensara ele...
-“Há três dias. Só soube agora, telefonou-me o Gabriel. Já marquei o voo, parto amanhã à noite.”
Ele calara-se. Como se o coração lhe tivesse parado. Não conseguia entender.
-“Pesadelo?”
Era um sonho aquela conversa. Um pesadelo do qual iria acordar. Não era possível...
-“Michael, ouviste?...”
-“Sim, ouvi, Joan...”
-“E não dizes nada?! Protesta, meu Deus!”
-“Não quero acreditar! Não posso...”
A voz soava metálica, como se não fosse ele a falar.
- “Morreu como?” , perguntara em voz arrastada, impessoal.
Depois percebeu que ela começara a soluçar, primeiro devagarinho, a seguir convulsivamente, sem parar.
-“Oh! Joan, Joan, não chores...”
-“Michael, não sei o que hei-de fazer. Tu vais lá ter comigo?”
-“Vou. Com certeza que vou... O mais depressa que puder.
Parou e perguntou:
-“O Peter vai?”
-“Não, tem estado fora de Abidjan. E, sabes, acho que certas situações temos que as viver sozinhos...”
Engolia os soluços, queria mostrar-se forte, como sempre procurara ser.
“És uma tipa dura”, costumava dizer a mãe, a brincar.
Mas era tão difícil ser forte...
Michael continuou, no mesmo tom:
-“Como foi?! Não estava doente, não tinha nada!”
-“Não sei os pormenores. Foi de repente, disse-me o Gabriel, e confesso que nem quis ouvir mais... "
Não conseguia dizer mais nada.
-“Vou precisar da tua força, Michael. Ajuda-me, por favor! Eu telefono-te quando chegar...”
-“Eu vou depressa, querida irmã!”, tentou animá-la.
De Brighton, ela voltara a telefonar-lhe.
-“Ouve, Michael, tudo isto é esquisito. Não acredito que tenha sido morte natural. Paludismo, dizem. Não acredito.
Hesitou. E disse de repente:
-“Penso que foi envenenada! Não posso dizer porquê, nem por quem, porque não sei.”
-“Mas isso é absurdo! Porquê a mãe?”
-“Não faço ideia, mas tenho as minhas razões. Ela tinha-me escrito uma carta... Alguém a quis matar. E conseguiu!
-“Não é possível!”
-“Ouve-me, Michael: tens de acreditar em mim. Depois falamos. Quando chegas?”
-“ Espero estar aí o mais tardar no fim da semana.”

O barco abrira-se como o ventre de um animal gigantesco. O mar cinzento agitava-se, violento, as ondas batiam com força no casco.
“O Jonas devia sentir-se assim a sair de dentro da baleia...”
Tentava ironizar, mas sentia o rosto esticado no esforço de conter as lágrimas que com a água salgada lhe ardiam nos olhos e na pele.

E ali estava agora, a chegar a casa. De Newhaven seguira a estrada junto ao mar. Em menos de meia hora estaria em Brighton e dali a Arundel era perto. A casa ficava um pouco antes da pequena aldeia.
Ia olhando a paisagem: dum lado o mar, do outro, as doces colinas dos Downs. E lembrava os tempos em que ali vivera.

Não sabia o que o aguardava, qual o mistério que envolvera a morte da mãe.
Sabia só que Joan estava sozinha e precisava dele.
________
(foto do blog "arquivo fotográfico", de DLC)

Sem comentários:

Enviar um comentário