sábado, 7 de novembro de 2009

"Os Olhos de Jade": Capítulo 9







CAPÍTULO 9


No dia seguinte, Joan levantou-se cedo. Desceu as escadas a correr, deixando a mão escorregar pelo corrimão de madeira como fazia quando era pequenina. A luz estava acesa no escritório de Gabriel, que ficava no rés-do-chão, ao fundo do corredor. A porta entreaberta deixava filtrar uma claridade suave.
-“Já se terá levantado? Ou não se foi deitar?”
Sem ruído, Joan espreitou e viu Gabriel, adormecido, com a cabeça apoiada nos braços. Um monte de folhas amarrotadas estavam espalhadas pela secretária. Pareciam cartas velhas. Uns cadernos de capa preta estavam arrumados ao lado. O écran do computador brilhava numa miríade de estrelas. Apagou a luz e deixou-o dormir.
-“Coitado, pensou, devem ter sido dias tremendos! Esqueci-me que teve um desgosto tão grande como o nosso. Ontem fui bruta... Ainda bem que acabámos por falar...”
Foi buscar a chave à terrina, onde Mary a deixava de costume, e saíu de casa pela porta da cozinha.


Dirigiu-se para o jardim. Ao fundo, na descida para a estrada de Arundel, estendiam-se os campos a perder de vista.
Perto do muro que costeava o jardim e dava para uma azinhaga, havia uma pequena casa de tijolos, com um telhado de duas águas, de um vermelho igual ao da vivenda grande, uma janela e uma porta pintada de verde escuro. Era a casa do jardineiro, onde Zurigo vivia e guardava os poucos bens numa mala de couro velha.
Joan caminhava depressa.
“O que teria querido dizer Gabriel sobre a última noite? Que conversa teria tido Zurigo com a mãe, na noite em que morreu?”- pensava.
De repente, por detrás do muro, pareceu-lhe ouvir os passos de alguém que tropeçara nas pedras soltas da azinhaga. Parou e pôs-se a ouvir, atenta. O som afastara-se.
“Como da outra vez?”
Lembrou-se do rosto que vira à janela.
"Será sugestão?"
Podia, claro, mas também podia não ser. Pensou que se alguém matara a mãe, podia muito bem voltar, para matar outra vez... "
Não teve coragem de ir ver por cima do muro, nem de se aproximar da pequena porta de ferro fechada a cadeado.

"E se o assassino estava aqui ao meu lado?!"
Fosse quem fosse, a correr pela vereda inclinada, devia já ter chegado à estrada principal. Pareceu-lhe ouvir um motor arrancar.
“Tal como pensei! Alguém estava aqui e fugiu!”

Estremeceu. Pôs-se a pensar a toda a velocidade, para se acalmar.
Teria sido tudo impressão? Só nervos? Estava a ficar medrosa? Onde estava o seu sangue frio, a sua coragem?
Ontem parecera-lhe ver um rosto que espreitava, agora ouvia passos, ruídos de motores...Estaria tudo apenas na sua cabeça? Os pensamentos sucediam-se uns atrás dos outros. Teve medo e correu para a porta verde, viu que estava apenas encostada e entrou sem bater.
-Zurigo! Não ouviste um barulho? Passos na azinhaga? Ah! Estás a dormir...
Ao lado da mala de couro, roupas espalhadas, um par de sapatos cardados, uns botins de borracha, camisolas de lã, os utensílios do jardim. Zurigo estava deitado em cima da cama, virado para a parede. Deu um salto e virou-se.
-Oh! Menina! Eu cá não ouvi nada! Não estava a dormir. Eu nunca durmo! Só fecho os olhos...

- Então o que estavas a fazer?...
- Estava a pensar... Ontem à noite pensei, pensei até me doer a cabeça. Deixei-me dormir de manhãzinha. Mas estou acordado!
Levantou-se e a camisola de lã grossa descaíu-lhe sobre um dos ombros do corpo magro. Trazia um par de velhos jeans desbotados e uns botins de borracha cheios de lama.
-Deixa estar, Zurigo, não ouviste, não faz mal... Se calhar foi impressão minha...
Olhou-o com um ar sério.
- Ouve, preciso de falar contigo! Tens que me dizer tudo o que sabes.
- O que é que eu sei? Sou um pobre desgraçado...
- Como é que a minha mãe morreu? Sabes quem a matou?
- Matou? Ó mãezinha pequenina... Eu?! Saber quem a matou? Eu não sei nada! Eu não vi nada! Estava aqui deitado!
Começou a chorar.
-A minha senhora morreu e eu só espero a minha hora, que há-de vir depressa! Sei que está marcada!
Abanou os ombros, limpou as lágrimas.
- Não sirvo para nada...
-Zurigo, não chores, não serve para nada... Tens muito para fazer! O meu irmão vem aí. Tu vais ter que nos ajudar!
-Não sirvo para nada é que é...
- Cala-te, não digas isso! Lembras-te de me dizeres que ela tinha medo?
- Eu não sei...
- Medo de quem, diz lá?
-Eu não sei nada... não me lembro!, teimava Zurigo.
-Tu falaste com a mãe nessa noite! Sei que lhe prometeste uma coisa... O Mr. Green ouviu-te prometer!
- Eu não sei, menina...
- Claro que sabes, não me queres é dizer... De que é que estavam a falar?
-Eu não me lembro! Estava aqui, a dormir...
Recomeçou a chorar.
- Ela morreu e eu aqui, um inútil... Eu, que sou o guarda! Deixei-a morrer! Sou estúpido, eu não sabia...
-Sabias, sim!... Sabes muita coisa! O que é que a mãe contou nessa noite, Zurigo? Fala!
Os olhos dele enevoaram-se, parecia que as pupilas fugiam pelas paredes do quarto, escondiam-se nos cantos. Cambaleou e foi sentar-se na cadeira de braços, de madeira, com a cabeça apertada nas mãos.
-Eu não sei! Eu não vi!
O cigarro que tinha na orelha, entalado na carapinha branca, caíu para o chão. Encostadas à parede em frente estavam as suas ferramentas de jardineiro e de guarda, um pau com uma ponta de lança, a tesoura da poda, a vassoura metálica, os ancinhos.
Pendurado por cima da porta de entrada, um machim de ferro, bem afiado. Todas as noites rondava a casa, batia ritmadamente com a lança no chão, tossindo, para mostrar que estava acordado, que vigiava e que os protegia no sono. Nunca perdera essa mania dos velhos tempos de África.
Só se ia deitar com a primeira claridade da manhã, e adormecia então com a sensação do dever cumprido, de os ter defendido. Era a sua maneira de mostrar como os amava.
Joan teve pena dele e não insistiu.
-Está bem, Zurigo, depois falamos quando estiveres mais tranquilo...
Saíu, encolhendo os ombros, desanimada. Sabia que ele lhe escondia qualquer coisa e que tinha medo.
"Não vale a pena insistir..."
Pelo menos para já. Ia esperar que Michael chegasse.

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