segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Histórias de 4 Mulheres: A História de Susie H., a quarta mulher...















Susie, Gelsomino e Pizzy, à esquerda; eu e o meu cão Zac, à direita, no Jardim Ben Gourion.

A história de Susie H.

Há sítios que não se esquecem, pela força que têm, pelas marcas que deixam, pelas situações que neles se vivem, ou, ainda mais importante, pelas pessoas que se encontraram.
Por isso, Telavive, onde vivi cinco anos, me vem sempre à memória.
A vida em Telavive era vivida de modo intenso, como se houvesse a consciência de que cada minuto era precioso, cada dia único, porque, ali, se sentia mais do que noutros lugares, que a vida não dura sempre, ao contrário dos famosos diamantes do 007; é um momento efémero, um sopro, uma passagem, como diz o Salmo 39, e nem sempre e fácil encontrar um sentido para essa fragilidade e precariedade da vida humana


Em Telavive, ao viver-se o momento que já passou, espera-se que outro venha, igualmente intenso porque igualmente precário...



Ali conheci pessoas, vi algumas vidas dilaceradas, senti dúvidas, surpresas, esperanças.
Vou contar a história de uma pessoa que conheci bem, Susie , cuja vida sai fora de tudo o que se possa imaginar.




Costumava ir de manhã com o meu cão, ao jardim da Sederot Ben Gourion. A essa hora limpavam o jardim com longas vassouras metálicas, e ouvia-se o arrastar das folhas, sobre a areia.

Virávamos às vezes para o lado da Rehov Hayarkon e atravessávamos o pequeno viaduto que conduzia à Kikar Atarik, a praça, para ver do alto das escadarias o mar espreguiçando-se ao longo da Promenade. Depois voltávamos para trás até à esquina da Ben Yehuda.
Havia sempre pessoas a passear os cães, muita gente nova, conversávamos, e o meu cão adorava aquele passeio porque também ele se divertia.

Numa dessas manhãs, vi chegar uma senhora, de alguma idade, figura pequenina, frágil, com um olhar vivo, que andava virando a cabeça para todos os lados, curiosa, enquanto ralhava com os dois cães que levava pela trela.

- Gelsomino, non fare questo! Lascia la Pizzy! Vieni qua...

Gelsomino quer dizer “jasmim” em italiano, ora eu tinha vivido muitos anos em Itália e essa melodia da voz dela fez-me bem. Além disso, chamar jasmim a um cão achei que era uma ideia poética e muito especial...

Estava em Telavive há uns meses, não sabia ainda hebraico, recorria ao inglês e ao francês para comunicar e ouvindo aquela língua tão minha conhecida parecia-me quase impossível depois de tanto tempo.
Decidi ir ter com ela...
Era de facto uma pessoa especial! Conversámos uma, duas vezes, encontrámo-nos frequentemente no passeio dos cães, fui a casa dela passar o serão, e ficámos amigas. Amizade que se foi aprofundando, crescendo. Ainda hoje nos escrevemos, ela em Paris há uns anos, eu onde quer que esteja...

Era uma mulher culta que, pela agitação da vida que fora a sua, falava oito línguas! E tudo a interessava, tudo queria estudar, tudo criticava nem sempre com a devida justiça.
A nossa amizade foi-se cimentando, como disse.

Eu contava-lhe coisas da minha vida em África, ela falava-me dela, dos filhos. Um vivia na América, casara, tinha uma filhita, a outra vivia no Japão porque se apaixonara pelo professor de japonês na Universidade, pela cultura japonesa, e fora para lá viver.
Tinha uma relação muito complicada com essa filha, Leah, que adorava. Relação de ódio/amor, prepotência e ressentimento, por parte da filha, e sentimento de culpa de ambas.
Comecei a conhecê-la melhor, o seu feitio difícil, contestador, duro. A aceitar as suas mudanças de humor, a generosidade e, logo, a vontade de agredir, a impaciência, como se alguma coisa a espicaçasse dentro. Eu sou uma pessoa calma, ouço, e comigo ela entregava-se um pouco, confiada.

Ouvi-a.
Ouvi-lhe as queixas da sua Leah, o sofrimento da incompreensão mútua, e dava-lhe um pouco de mimo.
Era uma mulher torturada, marcada.


Um dia abriu-se mais e, levantando a manga da blusa (só depois reparei que usava mangas compridas até aos pulsos, mesmo de Verão), mostrou-me o braço.

Na parte de dentro, na pele muito branca, tinha um número tatuado, em caracteres pequenos mas que se viam bem.
Ergui as sobrancelhas, numa pergunta muda.

Respondeu simplesmente, numa voz neutra, controlada:
- Estive em Auschwitz... Dos doze aos catorze, quinze anos, estive em campos de concentração.
Arregalei os olhos, sustive um pouco a respiração, mas não consegui dizer nada em resposta.

O que poderia dizer? Que palavras existem para querer interrogar, saber mais? Com que direito?
Deixei que ela falasse, e ela continuou com o mesmo tom impessoal com que começara a conversa:
- Eu, os meus pais e a minha irmã mais velha.

- Como foi possível, Susie?, gaguejei.
- Vivíamos na Polónia, numa pequena cidade onde o meu pai era médico. A minha mãe ajudava-o no consultório. Nos as duas estávamos a estudar no liceu quando a Guerra começou. Depois, os alemães chegaram...

Sem querer, eu ia imaginando a cena, como nos filmes: a chegada das tropas alemãs, as brutalidades, as coronhas das espingardas, o espanto e o medo nos olhos, os comboios onde os judeus eram metidos como gado. Sim, já tinha visto isso tudo!
Mas ela? A Susie que eu conhecia? A minha amiga? Como podia ser?

“Esta” figura era de carne e osso, estava ali ao meu lado, era como nós, eu, a minha família... Uma como eu, como as pessoas que eu conhecia e de quem era amiga...
Olhava para ela, via os seus cabelos branco muito curtos, aos caracóis, que lhe davam uma aparente doçura, os óculos redondos de aros finos.

Com um olhar provocador e um sorriso forçado, ela continuou:
-Tinha doze anos e a minha irmã dezassete. Ficámos dois anos nos campos de extermínio. Primeiro, estivemos num campo de trabalho, numa fábrica de armas. A ironia da sorte, viste? Estávamos a fazer armas para eles nos virem bombardear, e matar a todos!
Sim, como tudo era absurdo!, pensei.
Mas, e ela?
- E tu, depois? Os teus pais? A tua irmã?

Sabia, como todos sabemos, a separação impiedosa das famílias, lá me vinham as imagens de tantos filmes, as barracas, o frio, a neve, a dor...
- Conseguimos ficar todos juntos, quase um milagre... O meu pai servia-lhes, era médico, podia ser útil, como os químicos ou engenheiros e outros que tivessem “utilidade” prática. A minha mãe fingiu que era enfermeira... Enfim. Isso ajudou-nos...

O principal era deixá-la falar, pensei.

- Tu não podes imaginar, Maria, dizia-me, como se adivinhasse as imagens que eu ia vendo passar na minha cabeça... Ninguém pode calcular! Fico toda arrepiada só de olhar para o braço...
Depois, olhava-me com o ar irónico de sempre, abanando a cabeça, desta vez triste.

- Ninguém...
Do primeiro campo seguiram para outro, a situação nos campos era cada vez mais dura, inumana. Até que acabaram em Auschwitz.
Lembrava a chegada, o choque, as mulheres nuas à sua roda, com a cabeça rapada, os duches...
- A fragilidade das mulheres... Nuas, sem defesa... Não consigo esquecer o sangue que corria pelas pernas de algumas delas, como fios finíssimos, na pele muito branca... Esta imagem persegue-me! Os braços tatuados eram uma parte só...

Repetia, agitando o corpo todo num arrepio:

- Ninguém pode saber. Tão desprotegidas!

Ela era minúscula com os seus doze anos, magríssima, contava, e a mãe ia conseguindo escondê-la nos sítios mais improváveis, abandonando-a como morta durante as deslocações, à beira da estrada, e conseguindo carregá-la às costas, escondida numa trouxa de roupa, em aventuras cujas peripécias parecem irreais.

Dizia-me sempre, enquanto ia relatando aquele horror:
- Quem me salvou foi a força da minha mãe... Deu-me a vida duas vezes!

No final, foram levados para a Suécia, o governo sueco recebeu na altura muitos desses sobreviventes. Estudou lá, casou com um judeu egípcio, seu colega, e foram viver para Milão. Era feliz. A vida parecia voltar a ter sentido.
Nasceram os filhos, Leah a mais velha e John.

Mas um dia, o marido, ao levantar-se da cama, teve um aneurisma cerebral e morreu...

Para Susie o pesadelo recomeça: mergulha numa depressão profunda, ignora os filhos, abstrai-se de tudo, tenta suicidar-se várias vezes.
- Louca..., dizia
Entra e sai em várias casas de saúde e não melhora. Falava-me do "litium" que passara a tomar, sem nunca parar.

- A minha droga para esquecer... Tudo voltava na minha cabeça vazia, tudo se misturava outra vez...

A irmã levou-a para Telavive onde passara a viver, pensando que naquele país novo, ainda a crescer, pudesse encontrar alivio entre outros que como ela tinham sofrido.

Mas não foi isso que aconteceu. Ou, pelo menos, não logo...

Deborah, nessa altura com doze anos passou a ser a sua enfermeira.

- Querida filha! Vivia como uma mulher crescida e "io ero la sua bambina..." Não esquecia as pílulas que eram a toda a hora... Vinha da escola, acordava-me, fazia-me engolir o remédio, dava-me leite, tomava conta do irmão, ia às compras, e eu dormia, dormia...

Punha um ar humilde, atitude estranha nela:
- Não me perdoo, percebes, Maria? Estraguei a adolescência dela... A minha filha nunca foi uma criança!

Pouco a pouco foi reagindo, contava, o tratamento deu algum efeito.

- Melhorei... E quando acordei, quis outra vez esquecer! Queria só viver a vida, de qualquer maneira, apaixonar-me, ir para a praia, brincar.

Riu um sorriso culpado:

- Voltei a casar... Como uma inconsciente...

Murmurava, baixinho:
- Povera figlia... Dei cabo dela...

- E o teu filho, Susie?
- O meu filho fugiu para a América, assim que fez 18 anos... Dizia que eu era sua sombra negra...

A esta conversa seguiram-se muitas outras, durante a minha estadia em Israel.

Havia, nessa altura, um movimento muito forte no país para se redescobrir esse passado, que fora escondido, como que “engolido” muitas vezes pelos próprios sobreviventes dos campos, na vontade de esquecer, de recomeçar tudo de novo, deixar para trás esquecidos, os fantasmas do tremendo vivido, do inominável.

Calaram dentro, fecharam-se no profundo silêncio das próprias almas, não contando nem aos filhos ou aos netos o que “lhes” acontecera a eles.

Escreveram-se livros, contaram-se histórias. Fizeram-se filmes. Mas o silêncio continuou dentro de muitos dos sobreviventes do holocausto. Incapazes de “pôr em palavras” os sentimentos, numa espécie de incredulidade incompreensível do que tinham vivido...

Agora, tentava-se fazer que essas bocas falassem finalmente, dissessem, ensinassem...
Susie foi convidada, muitas vezes, para ir contar o que me contou a mim, nas escolas, nas Universidades, e até junto dos jovens – e das jovens- soldados, nas casernas.
A sua história foi gravada como outras e juntou-se à recolha de testemunhos que Steven Spielberg filmou e gravou para serem guardados, enterrados algures, para sempre.
Para não se esquecer...
Recordo o olhar de Susie, vejo-a abanando a cabeça.
- Ninguém pode imaginar...

___________________________-
Nota:
1. Encontrei a fotografia de Susie,comigo... e os nossos cães, Zac, Pizzi e Gelso, em Telavive!

1. Auschwitz-Birkenau foi o maior dos campos de concentração da Alemanha Nazi que existiram durante a II Guerra Mundial e “esteve em funções” de 1941 a 1945.
O campo chama-se segundo o nome alemão da cidade de Oświęcim, onde foi construído.
A seguir à invasão da Polónia em Setembro de 1939, esta cidade foi anexada pela Alemanha Nazi e ficou com o nome alemão Auschwitz, nome alemão da terra. Birkenau, tradução alemã de Brzezinka, refere-se a uma pequena aldeia a cerca de 3 kms de Auschwitz que, mais tarde foi destruída pelos alemães.
O comandante do campo, Rudolf Höss (não confundir com Hess), testemunhou no Julgamento de Nuremberga (cidade da Alemanha onde es realizou o julgamento entre 1945-46) que mais de 3 milhões de pessoas morreram em Auschwitz.

5 comentários:

  1. Amiga ainda estou toda arrepiada da história que acabei de ler?
    Com que direito é que nós nos queixamos, ou porque o dia simplesmente não correu da como idealizamos, ou porque nos dói a cabeça etc…Coisas tão pequenas comparado com o que mulheres como Susi passaram.
    Obrigada por partilhar connosco estas histórias verídicas, pois pelo menos por momentos elas não serão esquecidas.

    Um beijo grande
    Da amiga,

    Eugenia Santa Cruz

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  2. Tens toda a razão Eugénia: o importante é não esquecer...
    Obrigada, um beijo

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  3. É uma história de vida bem difícil a dessas mulheres e um capítulo vergonhoso da História da humanidade que, inacreditavelmente, ainda se vai repetindo por esse mundo fora...

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  4. É terrível e assustador só imaginar o que terá passado e terá sido também por isso que depois terá ficado tão mal. Espero que entretanto já esteja bem com os filhos.
    um beijinho

    Gábi

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  5. Penso que agora, com o tempo, a vida dela acalmou. A filha vive em Paris, perto dela, falam-se, o filho vive na Flórida, mas a sorte não tem sido grande para ele.
    Mas vive tranquila.
    C'est la vie, Gábi. Como diziam os meus amigos em Tel Aviv: la vie ce n'est pas un picnic!
    Beijos
    M.J

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