terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A "Autobiografia" de Agatha Christie e o seu último livro "Postern of Fate"




Agatha Christie e Postern of Fate, o último livro

O romance Postern of Fate (intitulado, em Portugal, Morte pela porta das traseiras, e Portal do destino, no Brasil), 1973, foi o último livro da autora em que entram Tommy e Tuppence Beresford, e também o último escrito por ela, três anos antes de morrer.
Hoje decidi falar deste último livro de Agatha, mas não me vou debruçar nos pormenores ou falhas (*) deste última obra. Reli-o e senti algumas dessas falhas, confusões, mas interessa-me tirar dele o melhor.
Estou a ler a sua “Autobiografia” o que torna a comparação mais interessante: ver, por exemplo, o paralelo entre as duas mulheres, a identificação entre Tuppence, já "crescida", com Agatha, a escrever o último livro.

Na Autobiografia há passagens interessantíssimas que nos abrem uma janela para a criança que foi.
A imaginação criativa constante nas brincadeiras.
"O meu arco foi para mim, alternadamente, um cavalo, um monstro marinho, um comboio. Batia no arco enquanto corria pelas áleas do jardim e era um cavaleiro em busca de aventuras, revestido de armadura, uma lady da corte trieinando o seu corcel branco, era Clover (um dos gatinhos), ou, menos romanticamente, o condutor do comboio.."
A invenção de personagens que a “acompanham” - como a família dos gatinhos.
Como ela própria conta:

"Todas as minhas brincadeiras eram de faz de conta. Tive vários companheiros que eu propria inventava. Os primeiros eram “os gatinhos”. Já não sei como eram, nem se eu pópria era uma gatinha mas recordo os nomes: Clover, Blackie e a mãe deles que era a Sra Benson”.
Ou a atracção pelas coisas que causavam horror, a "atracção-repulsa" por certas brincadeiras.
Lembro a brincadeira da irmã que se “desdobrava” noutra irmã que vinha aterrorizá-la e ela nunca sabia quando era Madge, a irmã, ou a sósia dela, que tinha uma voz melíflua, andava de outra maneira e lhe metia medo...
"A minha irmã - conta Agatha- fazia comigo uma brincadeira que me fascinava e ao mesmo tempo aterrava. Consistia na ideia de que na nossa família havia uma irmã mais velha do que Madge. Era louca e vivia numa gruta em Corbin’ Head e às vezes vinha até nossa casa. Na aparência era impossível distingui-las excepto pela voz, completamente diferente. A dela era uma voz suave e untuosa e assustadora!”
E perguntava, tentando compreender :

"Por que gostava tanto da sensação de medo? Qual será a necessidade instintiva que se satisfaz pelo terror? Por que motivo, na verdade, as crianças gostam das histórias de ursos, lobos e bruxas? Haverá algo em nós que se rebela contra o excesso de segurança? Será necessária à vida humana a sensação de perigo?"

E, depois, há ainda os brinquedos, a casa de bonecas, o cavalinho de pau, que balançava e a que chamou Mathilde ou a carrocinha de madeira que ia empurrar da encosta, entrando nela em movimento e que se chamava Truelove. Na vida real da sua infância e na ficção, no romance.
De facto, Agatha vai, na sua saudade, “buscar” os brinquedos da infância e Tuppence vai recuperá-los....

"Nos dias de chuva eu contava com Mathilde. Era um grande cavalo de balanço, oferecido ao meu irmão e à minha irmã na América. Trazido para Inglaterra, não passava agora de um vestígio amachucado do que fora primitivamente, desprovido já da crina, sem pintura, sem cauda, metido numa pequena estufa, já sem plantas que se chamava K.K. (ou talvez Kai-Kai?). Mathilde em acção era explêndiada –muito melhor do que qualquer cavalo de balanço inglês. Pulava para a frente e para trás, para cima e para baixo, cavalgava a toda a brida, até podia atirar um cavaleiro ao chão”.
Mais adiante:

"O companheiro de Mathilde no K.K. era Truelove, um cavalinho malhado, pequeno que puxava uma carroça com pedais. (...) O meu método consistia em puxar Truelove para o topo da encosta relvada, instalar-me cuidadosamente, soltar uma exclamação encorajadora, e aí íamos nós!”
E a meio da acção do livro aparecem os dois brinquedos!
E é engraçado é ver como Tuppence repete os gestos de Agatha.
Lá vêm Matilde e Truelove e é numa dessas descidas, "desde cima da encosta relvada", que Tuppence, como numa aventura infantil, descobre um dos “fios” perdidos que leva à solução do caso.
O enredo do romance:

Tuppence e Tommy, reformados, mudam-se para uma casa antiga, The Laurels, numa pequena cidade do litoral.
Nessa casa há um sótão com caixotes de velhos livros que Tuppence decide trazer para a sala de estar.
Começa a arrumá-los. Mas, enquanto os tira para pôr na estante, vai dando uma olhadela: encontra alguns dos livros que amara na infância: Alice no país das maravilhas, O prisioneiro de Zenda, e muitos de Stevenson: Catriona, Kidnapped, e o seu preferido, The Black Arrow.
Fazem-na recordar o passado e, não resistindo, lê passagens. De repente, chegada à página 65, como depois contará a Tommy, e “sente” qualquer coisa estranha. Teve de repente a sensação de que algo estava errado.

Transcrevo essa passagem:

“Algumas frases estavam sublinhadas. Mas não eram frases seguidas, não, portanto não eram citações a recordar. Pareciam palavras isoladas e postas em relevo, sublinhando-as a tinta encarnada. Leu, retendo a respiração: «Matcham não pôde evitar um grito. Dick surpreendido deixou cair o Windac da mão. Estavam descalços e metem o sabre e a adaga nas bainhas. Ellis ergueu a mão. O branco dos seus olhos brilhou.»
Tuppence abanou a cabeça. Não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido. Copiou as linhas para uma folha e de repente deu-se conta de haver qualquer coisa em que não reparara.
Isto é que faz a diferença”, disse Tuppence. E escreveu algumas dessas letras no papel.
Tommy entra :
Ah! Estás aqui, parece que o jantar está praticamente pronto. Como vão os livros?”
“Tudo tremendamente confuso
, disse Tuppence. Assustadoramente confuso”
“Qual é o problema?”
Bem, The Black Arrow era o livro de Stevenson que nunca me cansava de ler e reler. Estava tudo a correr bem e, de repente, reparo numa coisa estranha: algumas páginas têm palavras sublinhadas a encarnado.”
E, pouco a pouco, como Tuppence vai explicando a Tommy, vê que as letras sublinhadas a encarnado formavam uma frase.
Primeiro surge um nome “M-A-R-Y”, mais adiante “J-O-R-D-A-N” até descobrir uma frase feita com essas letras: Marie Jordan não morreu de morte natural. Foi um de nós. Acho que sei quem foi.
O livro pertencera a Alexandre Parkinson e aí começa uma história nova, e, logo, um novo enigma a desenredar:
Quem era esta Mary Jordan?
Por que motivo Alex deixa esta mensagem?
Por que motivo Alex morre ainda miúdo?
Tudo se passara entre 1915 e 1916, durante a 1ª Guerra.

Tuppence inicia a investigação, andando de casa em casa, passando pelo asilo dos velhinhos, indagando, recorrendo à memória das velhas senhoras da terra.
À partida, trata-se de um problema de memória, ou de re-memorar o passado. O resto vem por si...

Sempre interessante a semelhança das “recordações” de Tuppence e Agatha, entre a infância de ambas, os brinquedos de Agatha de que falei acima, que aparecem neste romance com os mesmos nomes, como vimos: Mathilde, o cavalo-de-pau, Truelove, a puxar a carrocinha em que Tuppence se deita pela encosta abaixo, do mesmo modo que Agatha o fazia em pequenina...
Leiam. Com todas as críticas que se lhe possam fazer (e fizeram*) é um belo livro! Como não podia deixar de ser...

Nota:
*) Uma das críticas que fazem ao livro, encontrei-a na Wikipedia:

I was expecting to like this novel. First, Tommy and Tuppence have always been my favorites of Christie's detectives. Tommy is slow and sure, Tuppence is quick-thinking and impetuous. They're madly in love with each other and quite devoted. In this book, though, Christie can't seem to remember whether she is writing about the young couple, the middle-aged one, or the senior ones. They never behave consistently and people react to them as if they are wildly different people. Everyone worries about Tuppence, but she never does anything in the book that would give them cause to”.

***
Informações:
A última reedição deste livro, na editora "Livros do Brasil", foi em 2002, colecção Vampiro Gigante.
Entretanto -e para quem não saiba-, a Relógio de Água está a editar a "Obra Completa de Agatha Christie"

2 comentários:

  1. olá!!! feliz 2010!!! boa dica de livro Agatha Cristie!!!!!
    Muita saúde , paz e Que seu blog fique melhor a cada dia !!!

    um grande bjo

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  2. Obrigada querida Tatiana. O mesmo para si!

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