domingo, 17 de janeiro de 2010

O enigma do regresso? Impossível não voltar ao Haiti!














Gauguin



Sim, impossível não voltar a falar e falar e falar...
Pode pensar-se que voltar a falar é “aproveitarmo-nos” dessa tragédia para nos mostrarmos bons, generosos, preocupados com o sofrimento dos outros, cheios de boas intenções que não levam a nada.
Pode ser.
Mas não falar pode ser outra coisa: cairmos numa forma de comodismo, egoísmo, indiferença. E eu prefiro os bons sentimentos –o que se está neste momento a fazer no mundo para ajudar o Haiti- à conversa pequeninazinha de se dizer: "Ah! Foi uma tragédia... É um país marcado. Não se pode fazer nada...”
Pode fazer, sim. E está-se a fazer!
E fico contente que, à frente desse movimento, se encontre Barack Obama, o novo Presidente, quando diz: "Quero falar directamente à gente do Haiti. Não serão abandonados, não serão esquecidos! "
E , atrás dele, a América que tantas culpas teve no passado, pela sua atitude em relação ao Haiti e a toda a América latina, confessemos...
E outros.

Eu não quero ser indiferente!

Lembro uma frase de Quentin Ritzen (in Tchekhov, Colecção Classiques du XXe siècle) sobre Tchekhov:
É-lhe sempre necessário encontrar uma moral, uma ética, uma religião, um equilíbrio seja a que preço for. Mas a religião mete-lhe medo, e as morais generosas são inúteis.”
Como poderá “salvar-se”?, interroga-se Quentin Ritzen.
A que outros valores poderá recorrer?

Conclui que a vida de Tchekhov vai ser nesse aspecto uma eterna conquista (ou reconquista?) de valores: da dignidade, por exemplo.
Um estranho movimento apodera-se do seu ser, movimento que seguirá durante a vida; uma aplicação incessante; um reflexo obstinado: a procura da dignidade.
E continua Ritzen: " Quer dizer: o controle e o respeito por si-próprio, pela sua própria independência, ou mesmo um certo afastamento perante o drama do mundo:
A dignidade, que para ele significa: a decência
, o domínio dos instinctos, a conquista da liberdade(...)!”

"Devemos ser, de certo modo, “educados”, diz ele ao irmão Nicolas. Decentes..."

E enuncia alguns princípios:
- respeitar os outros...
- não ter só pena dos pobres e dos gatos...
- sofrer, dentro da alma, por tudo aquilo que se não vê a olho nu...

Enfim, conselhos vários que saíam da alma daquele de quem Gorki costumava dizer que emanava da sua presença apenas um pedido mudo: sejam decentes!”, continua Ritzen.
E cita esta passagem de uma carta da sua “Correspondência” (1894).
Temos que acreditar nos processos pacientes que começam com o “saber”, o alfabeto, o vapor, a electricidade...
O raciocínio e o sentido da justiça dizem-me que há na electricidade e no vapor mais amor pelo próximo do que na castidade e na recusa em comer a carne dos animais...”
A que propósito vem isto aqui, perguntarão?
Talvez porque a atitude dos haitianos perante a desgraça me fez lembrar certos princípios, os tais da decência, da procura da dignidade, de que falava Tchekhov.
E pergunto:
Quem é o verdadeiro justo?
Poderia citar o Salmo XIV, um dos textos mais belos:


[Salmo de David].

(Tirei dum livrinho dos "Psaulmes" em inglês cujo texto acho lindíssimo. A tradução em português, livre, é minha)

1.
Lord, who may sojourn in thy tent? Who may dwell on the holy mount?
Senhor, quem habitará a tua tenda? Quem morará no santo monte?
2.
He that walketh, and workhed righteousness, and speakhed the truth in his heart;
Aquele que vive sinceramente, e pratica a justiça, e fala a verdade no seu coração.
3
That huttered no calumny with his tongue, that doth no evil to his neighbor, and bringeth no reproach on his fellow-man.

Aquele que não difama com a sua língua, nem faz mal ao seu próximo, nem aceita nenhum opróbrio contra o outro;
4
In whose eyes the despicable is despised; but that honoreth those who fear the Lord; that sweareth to his own injury, and changed not;
A cujos olhos o que merece desprezo é desprezado; mas respeita os que temem o Senhor; aquele que jura com seu próprio dano, e não muda.
5
That puteth out not out his money for interest and taketh no bribe against the innocent. He that doth these things shall not be moved to eternity.
Aquele que não põe o seu dinheiro na usura, nem recebe subornos contra o inocente. Quem fizer isto nunca sofrerá -até à eternidade.

E, para terminar, gostava de vos aconselhar o "post" no o blog "sobreorisco" (dia 16 deste mês) que transcreveu do jornal "Le Monde" uma entrevista (completa) muito interessante com o escritor, de origem haitiana, Dany Lafferrière.



















"Escritor com a nacionalidade canadiana, mas de origem haitiana é também poeta e cineasta.
Escritor atípico e cativante, Laferrière, nascido Windsor Kléber em 1953, em Porto Príncipe (Haiti), vive hoje no Quebeque (Canadá)".

Ganhou o prestigioso prémio francês "Médicis" em 2009.
Traduzo algumas passagens dessa entrevista.


"Dany Laferrière fazia parte dos escritores convidados para o Festival "Etonnants Voyageurs en Haïti", que se devia realizar em Port-au-Prince de 14 a 21 de Janeiro. Depois de alguns dias passados na capital haitiana, de regresso a Montréal, onde reside há muitos anos, concedeu-nos esta entrevista na 6ª feira 15 de Janeiro."
- "Estava no Hotel Karibé, que se situa em Pétionville, na companhia do editor Rodney Saint-Eloi. Ele tinha acabado de chegar e queria ir para o quarto. Mas como eu tinha fome, levei-o para os restaurante e foi isso que o salvou...
..............
- " Ninguém ali ao pé de nós tinha notícias da família...
- "Como foi que as conseguiu ter?
- "Foi graças ao meu amigo, o romancista Lyonel Trouillot, que foi admirável.
Apesar da sua dificuldade em andar, veio a pé até ao hotel onde eu estava. Estávamos no campoo de ténis, ele não nos viu. Voltou na manhã seguinte de carro para me levar a casa da minha mãe. Depois fomos a casa do grande Frankétienne [dramaturgo e escritor], cuja casa estava rachada e que tinha lágrimas nos olhos. Antes do sisma estava a recitar um monólogo de uma sua peça de teatro que evoca um tremor de terra em Port-au-Prince. Disse-me: "Nunca mais se pode representar esta peça."
Respondi-lhe: "Não te deixes ir abaixo, vai ser a cultura que nos salvará. Faz o que sabes fazer ."
Mais adiante:

"- Este tremor de terra é um acontecimento trágico, mas a cultura é aquilo que estrutura este país. Disse-lhe que saísse à rua, porque as pessoas precisavam de o ver. Quando as referências físicas caem, restam as referências humanas. Frankétienne, este imenso artista, é uma metáfora de Port-au-Prince!


"-Quando fomos a casa da minha mãe, pelas ruas, viam-se pilhas de corpos que as pessoas depositavam com cuidado, ao longo dos passeios, tapando-as com um trapo, o que havia. Depois do silêncio e da angústia, começaram a sair e a organizar-se, a tapar brechas onde podiam, nas casas.
O que salvou esta cidade foi a grande energia dos mais pobres. Para ajudar, para ir procurar de comer, criou-se uma grande energia em toda a cidade. Deram a impressão que estava viva. Sem eles, Port-au-Prince steria sido uma cidade morta pois os que tinham com que viver ficaram na maior parte fechados em casa..."
-"Foi para ver essa energia que voltou ?
-Sim, também. Quando a embaixada do Canadá me propôs voltar outra vez na 6ª feira aceitei pois receava que uma catástrofe do género provocasse um discurso estereotipado. Deve-se parar de usar o termo maldição!
É uma palavra insultuosa que subentende que o Haïti fez alguma coisa de mal e agora paga... Sofremos ciclones por razões que se sabem, há mais de duzentos anos que não havia um tremor de terra desta magnitude. Ainda vai que os televangelistas americanos pretendam que os Haitianos têm um pacto com o diabo, mas os médias?, esses não… Fariam melhor em falar desta energia incrível, destes homens e mulheres cheios de coragem e dignidade que se entreajudam. Apesar da cidade estar em parte destruída e o Estado decapitado, as pessoas ficaram no seu lugar, trabalham e ajudam. E vivem!
Mais adiante, ainda:

"- Há outra expressão que me choca: empregar a torto e a direito a palavra pilhagem. Quando, com risco da própria vida, pessoas vão procurar nos escombros com que comer antes que as gruas venham destruir tudo o que resta, isto não é pilhagem é sobrevivência. Haverá sem dúvida pilhagens pois uma cidade de dois milhões de habitantes possui a sua quota de bandidos, mas até agora, trata-se sobretudo de sobreviver."


Apreciei nesta entrevista a serenidade, a justiça do que o escritor refere. A ideia de que a cultura é que pode ajudar a "pôr em pé" o país outra vez. Qualquer país, penso eu...
E a solidariedade.

É a palavra "dignidade" que me vem à memória e me remete para Tchekhov. É uma forma de "dignidade" que ouvimos nos haitianos que falam, que vemos nas suas atitudes.
É a palavra que vemos repetida (se repararem bem), na boca dos jornalistas, nos telejornais: a dignidade daqueles que -não tendo mais nada, e tanto sofreram- conseguem ainda pensar primeiro nos outros, e ajudarem-se entre si, dignos.


"Haití ya no existe!", era o título de "El Pays", ontem, na edição online.

Talvez...

Mas o que cai, pode sempre reerguer-se! "Quando faltam as referências físicas, restam as referências humanas!", dizia Laferrière na entrevista.

Restam os marcos culturais e morais!

Resta a vontade, a solidariedade, a tal energia que empurra para a frente os sobreviventes da catástrofe!

E... a dignidade!
Esta é a lição que eu quero tirar da tragédia.

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