domingo, 11 de abril de 2010

Viagem à "minha" Rússia...


Moscovo ...

... e, inevitavelmente, começo pela "Guerra e Paz", de Leão Tolstoï... Esta acima foi a edição onde li pela primeira vez o romance. Tem uma belíssima tradução (integral) do grande professor José Marinho.
Existe hoje uma tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, na Assírio e Alvim.
Assinalo, aliás, que estes dois tradutores estão a fazer um trabalho importantíssimo na "re-introdução" de obras de escritores russos esgotadas, ou inexistentes (Gogol, Dostoievski, Tolstoï são alguns dos muitos exemplos). E a fotografia abaixo é a capa da primeira edição russa.


A MINHA RÚSSIA...

Chegámos a Moscovo numa noite de tempestade do ano 2004, em Abril. Eram as férias da Páscoa e tinha conseguido uns dias a mais, na escola. Ficámos perto de três semanas dessa vez.

Praça Komsomolskaya, ou das Praça das Três Estações

Não sabia nessa altura que, entre 2004 e 2005, passaria cerca de 4 meses na Rússia, vivendo em Moscovo, na Bolshaya Spaskaya Ulitsa, perto da Praça das Três Estações: Kazan, Lelingrado e Yaroslav, junto da entrada do metropolitano Komsomolskaya. Estação de metropolitano de Komsomolskaya (vestíbulo de acesso aos comboios)
Uma das primeiras -e mais importantes estações- do metro de Moscovo, cuja primeira linha foi terminada em 1935. Em 1939 havia já vinte e duas estações. Um metropolitano "de luxo" para o povo, dizia Staline, construído pelo povo...

De facto, foram recrutados em toda a União Soviética homens e mulheres para trabalhar ao lado dos soldados do Exército Vermelho e de mais de 13.000 voluntários (diz no "Guia" da Hachette sobre Moscovo) das Juventudes Comunistas, daí o nome da primeira estação ser Komsomolskaya, de "Komsomol".
Talvez seja das poucas coisas sérias que Stalin disse e fez...


É um metropolitano fascinante pela grandiosidade, brutalidade das distâncias percorridas a velocidade impressionante. Enfeitado por toda a parte por candeeiros de cristal, escadarias, mármores, dourados, lustres, frescos ou mosaicos nas paredes e nos tectos de uma riqueza nunca vista.
Sem dúvida, um metropolitano de luxo.

Mas também rápido, eficiente, grande, um dos cinco mais vastos do mundo.
Estação de Arbatskaya
São lindas, por exemplo, as estações de Arbatskaya, Komsomolskaya, Maïakovskaya, etc...

Estação Maïakovskaya

É um metropolitano, cuja imagem nos fica nos olhos, bem abertos para ver tudo.
Muito se poderia ainda dizer do Metropolitano de Moscovo. As estações “principescas” com pinturas em mosaicos, frescos, tectos polícromos, candelabros de cristal, escadas com corrimão de madeira brilhante, candeeiros arte-nova e lustres de todos os tipos, fontes de luz que iluminam de modo quase absurdo todo o percurso. As escadas rolantes que sobem das entranhas e das profundezas da terra, de onde nós próprios emergíamos, até ao alto!

Deixo-vos estas imagens porque acho que vale apena ter uma ideia.
Era Abril e, poucos dias depois de termos chegado, numa manhã o termómetro assinalava 11 graus negativos. A neve voltou a cobrir a cidade, gelou, fartei-me de escorregar, mas felizmente nunca caí.
Moscovo, à noite
***
À chegada, dessa primeira vez, o Aeroporto de Moscovo Sheremetyevo pareceu-me misterioso na noite, com qualquer coisa de provinciano e, ao mesmo tempo, o ambiente de certos filmes de espionagem.
Viktor Vasnetsov, o tapete voador
A minha filha fôra esperar-nos e tinha-se perdido na tempestade de neve, o que só soube, depois de estarmos bem instalados no carro, a caminho da cidade.

Mais tarde, quando conheci a pintura de Viktor Vasnetsov, "A donzela na Neve", lembrava-me dessa imagem lindíssima quando a imaginava perdida pelos campos brancos, perto de Sheremetyevo... Viktor Vasnetsov, a Donzela na Neve
Todas as referências que ela conhecia da estrada tinham sido “apagadas” pela neve. Verifiquei mais tarde que as indicações eram sempre poucas e mal assinaladas (além de serem apenas escritas em cirílico) quando se saía da auto-estrada.
Como se enganou e saiu antes do tempo, perdera- se simplesmente...

Enquanto olhava os caminhos que ladeavam a estrada que levava a Moscovo, via os descampados, de um lado e de outro, terrenos infindáveis, neve e branco, as bétulas e os olmos dos quais mal se distinguia a brancura dos troncos, levemente salpicados de preto ou de verde muito escuro.
De longe em longe uma casinha de madeira, uma datcha, com a sua luzinha acesa na noite negra e gelada.
Podia imaginar certos contos populares russos, que, como todos os contos de fadas, tem magos, bruxas, princesas perdidas ou transformadas em sapos, tapetes-voadores das mil e uma noites, tudo o que o pintor russo, Vasnetsov, reproduziu nos seus quadros.
ainda Viktor Vasnetsov, O Príncipe Ivan cavalgando o lobo cinzento

A estepe, como nos Contos de Tchekhov, como no Doutor Jivago, de Pasternak, a natureza, a estepe, a tundra sem fim rodeava-nos, enquanto o carro avançava...

Era a Rússia, a Santa Rússia que, desde a minha adolescência, assim que começara a ler a Literatura Russa, desejara conhecer.
Sonhara com Moscovo -como as Três Irmãs da peça de Tchekhov- e, com elas, dissera:
“Para Moscovo!”

A Sagrada Rússia das estepes, das florestas de bétulas a perder de vista, dos palácios dos condes Rostov, dos príncipes Bolkonskis, do Pedro Besukhov, tal como os imaginara ao ler Guerra e Paz, leitura sempre diferente, sempre enriquecedora, sempre maravilhosa.


E, claro, a São Petersburgo de Dostoievski ou Gogol, de Pushkin, com o rio Neva, as pontes, a Fontanka, a Igreja da Ressurreição (com as cúpulas de várias cores, idênticas às Igreja de S. Basílio-o-Bem-Aventurado, na Praça vermelha...) debruçada sobre o Volga, os palácios do lado de lá do rio, lembrando uma Veneza gelada.



livros traduzidos em várias línguas, Casa-Museu Dostoievski
Mas foi Guerra e Paz o primeiro amor russo.
Da primeira vez “saltei” toda a Guerra, tinha talvez uns 11 anos; das outras (duas mais...e ainda não desisti de reler o romance!) não saltei nada, e encantaram-me as passagens dessa Guerra horrível.
Os acampamentos, o frio, a dor, os soldados na neve e no gelo...
A Campanha da Rússia, de Napoleão, que o leva a Moscovo, depois da retirada do Marechal Kutusov, em Borodino. Moscovo que é incendiada pelos moscovitas -que tudo incendeiam e fogem- antes da chegada das tropas francesas

A morte do Príncipe Bolkonski é um momento superior.

(Como, anos depois, me prendeu a visão da Guerra de outro escritor -ou os bas-fonds da guerra, de todas as guerras, sempre iguais?-, a descrição inesquecível de Stendhal, na Cartuxa de Parma, dos exércitos, a angústia dos jovens soldados, a louca desgraça das vivandeiras, toda a miséria física e moral que as guerras traziam atrás, lá bem atrás, longe da fanfarra, para se não ver...
Deixemos este aparte... )

Um dia deixei de sonhar Moscovo. Pensava que nunca lá iria. Os acasos do destino, ou seja lá o que for, decidiram de outro modo.

fotos da autora: duas vistas da casa da Bolshaya Spaskaya Ulitsa
E, sem o imaginar, acabei por passar quase cinco meses na Rússia, na rua Bolshoya Spaskaya.


outras fotos minhas: o metro e a Agência Tass

No carro, pensava: "estou no meio da estepe russa!"
Estepe, ou fosse o que fosse, estava na "santa Rússia"...
A 71 kms da cidade de Moscovo!

E se nos perdêssemos por ali outra vez?, imaginava.
Entrava-me o terror retrospectivo de lembrar a minha filha perdida, poucas horas antes, na imensidão da neve, naquelas distâncias. Sem comunicações, sem telefones (os telemóveis não têm rede era evidente), sujeita a ficar por aquelas florestas até de manhã, gelada.
Estremecia ao pensar nisso.

Mas logo a atracção, a curiosidade, a alegria de ali estar voltavam a fazer-me sorrir, lá atrás no carro, encostada a ver a neve cair em flocos suaves...

Era um choque de emoções muito fortes. Tinha vontade de chorar. Vinha-me à memória tanta coisa da minha infância e dessas leituras, do entusiasmo, mais tarde, a vermos todos, com a Florinda, a série da BBC tirada do romance Guerra e Paz.

A Praça Vermelha! Krasnaya Ploschad!

duas "visões" da Praça Vermlha (da minha autoria)
Tinham-me dito que seria uma desilusão: que era pequenina, insignificante. Achei-a proporcionada, esbelta diria mesmo, e tão vermelha como sempre a imaginei, agora a sair da neve imaculada...
O grandioso Kremlin, numa pequena elevação (diz um provérbio russo: "Acima de Moscovo só o Kremlin, acima do Kremlin só o céu..."), os Palácios no lado oeste, à entrada de quem chega da Nikolskaya Ulitsa por detrás da Catedral Kazanskyi, perto do "Gum" -o grande centro comercial- e das Galerias Francesas, quando saídos da estação de metro da Ploschad Revolyutsi.
Ao fundo a Catedral de São Basílio, um pouco distanciada, no lado oriental da praça, com as suas cúpulas redondas, de vários tamanhos, coloridas, e bem orientais nos desenhos e nos enfeites. Por detrás, num nível mais abaixo, corre a linda Varvarka Ulitsa.

a Praça do Conservatório e a fachada lateral do Café Mania (da autora...)

Para outro lado, atravessando o Boulevard Tverskay, ficava o Largo do Conservatório, ao cimo da Nikitskaya Malinkaya Ulitsa (a pequena, porque existe também a Nikitskaya Bolchaya), com a estátua de Tchaikovsky, figura delicada, a abrir-nos os braços, e os alunos a passarem com os seus violinos, "viole da gamba", flautas, a caminho das aulas. Ali ensinou Tchaikovski até 1878, ali estudaram -seus alunos- os pianistas-compositores Rachmaninov e Scriabine.

Perto, na Casa dos Compositores, viveu Chostakovitch, e ensinou no Conservatório até ser afastado, "como profissionalmente incompetente", durante as purgas de Stalin.

E, logo ao lado, o "Café Mania", moderno, confortável, elegante, com uma bela decoração, gravuras nas paredes, serviço impecável feito por jovens estudantes.

E, quando chega a Primavera, a esplanada que abre, debaixo das árvores frondosas do Largo, próximas do compositor.

Quase paralela, mais para Norte, a grande avenida Tverskaya, larguíssima, cheia de lojas, que sobe e vai dar à Praça Pushkin (a Pushkinskaya Ploshad), com as suas fontes e, retirada, a figura do amado poeta, no meio ddas árvores, dos bancos, dos canteiros de flores e de gente, muita gente!

vista do Kremlin e o Antik Bar, na Nikitskaya Ulitsa.

E que mais?

Tanta coisa ainda para contar...

A Arbatskaya Ploshad e o seu mercadinho.

O "Teatro Bolshoï", onde ainda vi o Ballet Bolshoï dançar o Lago dos Cisnes, antes de terem começado o restauro do teatro.

O "Teatro Maly", onde assisti à representação de A Floresta, de Ostrovski (com a estátua deste escritor em frente) e onde é sempre representada uma peça dele...

E os Museus (onde conheci Vasnetsov, Serov, Repin) -a fantástica Tretyakova Galeria-, o Museu das Belas-Artes Pushkin, o Museu Maïakovski, a casa-museu Gorky.

Etc. Etc.

Vou contar depois...

Vasnetsov, a pequena Alyonushka

4 comentários:

  1. Extraordinária descrição…

    A Rússia! Do Pedro, da Catarina, dos Nicolaus, do Tolstoi, do Lenine. Da sua música tradicional, Os Olhos Negros, Kalinka, Os Barqueiros Do Volga!

    Convido-a a ver este clip:

    http://www.youtube.com/watch?v=cCoxp9kPtDM

    dedicado à minha amiga russa que me acompanhou na visita a Magadan.

    Спасибо за ваши фотографии.


    MFonseca

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  2. Obrigado por dividir esse momento tão maravilhoso de viajar em perspectivas até então imagináveis pra mim.Bela postagens e fica na paz, parceira.

    PS: Li paz e Guerra no começo de minhas descobertas literaturas e confesso que aprendi a viver nesta selva de pedra que me cerca atraves deste livro.

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  3. Moscovo,Londres,África...que inveja(da MÁ)
    Também eu de miúda devorei dois livrinhos que havia na minha casa,Nietotchka e Pobres Gentes,e quando li Crime e Castigo,já era uma enamorada do Dostoiévski,e da Russia que nunca verei.
    É curioso que me lembre tâo bem destas coisas,mais do que o que fiz ontem...Beijinhos

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