quinta-feira, 15 de julho de 2010

Lembranças de São Tomé: O Senhor Semedo e a lua...



A minha casa de São Tomé, na rua de Goa

A noite caía. O senhor Semedo, encostado ao ancinho, falava. Apontou a lua que começava a despontar.

- A Dôtôra viu a lua?
Olhou para mim, talvez com medo que eu o interrompesse, e continuou, logo:

- Vê a lua de hoje? Pois bem, quando ela tem este bico a apontar para a terra, quer dizer que vem tempo bom para semear...

E esticava bem o dedo, para mostrar melhor.
- Não sabia, senhor Semedo...
De facto nunca pensara nisso. A lua para mim era a beleza do luar, era o mistério das sombras, as noites mais claras, a contemplação do céu. Até o "Cruzeiro do Sul" que descobrira nos céus do equador...
- É como eu disse... É assim. E quando o bico está para o lado do mar, é porque há peixe...

Olhava-o, incerta da sua ciência, ignorante eu do que um pescador podia saber do mar e da lua. Nunca pensara nisso. Não o queria contradizer, apesar da dúvida.

Depois punha-me a pensar:
“E por que razão não há-de o senhor Semedo ter razão? O que sei eu?...”

Naquele dia sentia-me inclinada a acreditar no saber do senhor Semedo, na sua intuição, na crença. Como noutros tempos acreditara no empirismo da gente do campo, o tal saber de experiência feito de que fala o poeta.

O senhor Semedo vivera muitas vidas até chegar a São Tomé. Vidas que me fora contando aos bocadinhos.

Nascido na cidade da Praia, em Cabo Verde, viera com a mãe, ainda criança, acompanhando-a, para trabalhar numa roça do Príncipe.

Mais tarde, rapazinho, chegara à “cidade capital”, como em São Tomé gostavam de chamar a cidade.
Conhecia o trabalho do campo nas roças, entre o café, a cana do açúcar, o cacau e a banana.
Tudo aprendera, trabalhando duramente.
O rio Água Grande, no meio da cidade de São Tomé

Depois, fizera-se pescador, casara, tivera filhos, outras mulheres. Cada vez se afastava para mais longe nas pescarias, em barcos grandes, até que um dia naufragara ao largo do Gabão, em Punta Negra.
Dessa vez, a morte rondara à volta dele, arrepiara-se-lhe a pele de medo, encolhera-se no fundo do barco à espera, com os outros.
Primeiro, esperançosos todos, depois desesperando, dividindo os restos de bolachas uns com os outros, fumando um cigarrinho entre todos, passando-o para uma fumada só, “para durarem mais tempo”, como ele me contava.
Barcos na praia de Santana

Vira amigos desistir de lutar, e desaparecerem nas vagas que se alteavam, ali e noutros lugares, homens como sombras que passam.

Um filho suicidara-se engolindo vidros pisados, veio um dia contar-me, de olhos molhados.
- Foi-se embora! Deixar-me assim, o sacana!
Foi este o seu desabafo.

Muito aprendera. Muito vivera. Sabia do efémero que têm os momentos felizes.
E tudo guardara no olhar, sério e pensativo, com o qual contemplava as coisas e as pessoas, absorto nos pensamentos íntimos, observando apenas, e sem falar.
Aquele olhar com que olhava para lá do jardim, para além de mim, como se “visse” qualquer coisa ao longe, enquanto falava.
Calava-se de repente, nesses momentos.

Como agora, a olhar para a lua. Depois continuou, no seu ar bom e tranquilo, num sorriso aberto:
- É assim, Dôtôra...
E havia um tom fatalista na sua voz.
- É assim...

O senhor Semedo, arranjado para sair, num domingo, fotografado no jardim...

O que pensara naqueles breves segundos em que se ausentara? Nunca o saberei.
Poderia ter-me ensinado tantas coisas mais!

Durante os anos em que vivi em São Tomé foi o nosso guarda e jardineiro: o meu companheiro fiel, o meu mestre das coisas da ilha, e a sua conversa fazia-me bem.


Era o meu contraponto, o meu apoio, o meu conselheiro com o “pessoal” do quintal: a Milly, a Nina, a Tina. E com a miudagem traquina...
Sempre presente, sempre disponível.


O meu cão Zac na varanda da casa de São Tomé, ao pé dos degraus onde, de noite, se sentavam os dois...
Ele e o meu cão Zac, foram inseparáveis desde o primeiro momento, sempre de acordo aqueles dois...

- Não é cão, Dôtôra! É pessoa. Percebe tudo... Quer falar comigo.

E acrescentava, com pena:
- Só que não pode...

Sentava-se nos degraus da porta de casa, em frente do caminho que levava ao portão, com o Zac ao lado, e ficavam de guarda, quando nós saíamos à noite.
Ao voltar, ele dizia:
- Estivemos na conversa, eu a ler, e o patrão Zac a ouvir...

Quando partimos de São Tomé, a despedida foi dolorosa.
Lembro-me de o ver, no aeroporto, sem se querer aproximar, mas a olhar para nós, vestido com o fato branco que lhe oferecera.
Com os olhos marejados, vi-o ao longe, agitei os braços a chamá-lo, mas ele continuou ali como uma estátua do desespero, imóvel.

Sabíamos os dois que era para sempre a despedida, que não nos voltaríamos a ver.

E que não veria mais o “patrão Zac”...
E assim foi.
Hoje o senhor Semedo já não existe. O meu cão Zac morreu em Israel e ficou a dormir o sono eterno, perto de Telavive, no moshav dos meus amigos Rina e Eli, mortos também...

Com dor enorme os recordo todos.
E recordo São Tomé.

O senhor Semedo e o meu cão foram dos maiores amigos que tive, os meus companheiros na Ilha, cujo olhar preocupado e doce me animava nos momentos difíceis.

Os das saudades dos filhos, e da terra; da impaciência nos dias de Dezembro, em plena estação das chuvas, com a terra a empapar-se debaixo dos pés; do calor que se pegava ao corpo; dos mosquitos que infestavam o jardim, assim que o crepúsculo descia -escondendo-se nas folhas das bananeiras junto do tronco, ou nos recantos frescos do quarto-, picando-me quando adormecida; das crises de paludismo que me causava o plasmodium falciparum, parasitas dos glóbulos vermelhos que me fragilizavam; dos tratamentos fortes de "halfan" e de quinino, que me enfraqueciam.

De tudo isso os dois foram testemunhas e era no olhar deles que me aconchegava.
E assim foi... O tempo correu, inexorável.

O senhor Semedo morreu em Fevereiro de 2006...
Até ao fim, soube sempre notícias dele, nunca deixei de lhe escrever, de o ajudar como podia.
Guardo as cartas com sua a letra, perfeita, e a assinatura desenhada “Zurigo Semedo”.

Encontraram-no morto numa barraca, perto do Mercado do Ponto, onde tantas vezes fui.
Nunca se soube como morreu.
“Andava doente, estava velho, tinha voltado a beber muito, parecia triste...”, mandaram-me dizer.

O seu amigo, o “patrão Zac”, morrera em Telavive, uns anos antes e ele nunca o soubera. Mandava sempre cumprimentos para o Zac nessas cartas...

E hoje lembro-os associados na memória ... e na ternura.
- A Dôtôra é como mãe para mim, dizia-me.
E ele era um pai, o pai que eu já não tinha.
- Sim, Senhor Semedo, eu também sou sua filha...

Penso que o Zac ouvia... E é assim que os recordo...

6 comentários:

  1. É boa companhia a dum velho que sofreu e calou.
    — E também a dum cão que olha para a gente com essa inocência e esse amor sem condições nem limites. Sei-o por experiência,o meu era um pastor alemão,chamava-se Moro.
    E também sei que quando escreveste este post te caíu alguma lágrima,nota-se...Beijinhos

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  2. No colonialismo nem tudo foi mau. Péssima foi a independência nos moldes em que foi feita - sem um período pré-preparatório. Óptimo foi a mescla cultural.

    Penso que MJFalcão deveria publicar um pequeno livro sobre S. Tomé pós-independência. Todos ganhávamos: nós remexíamos na nossa «alma de povo» recordando um passado recente; MJ satisfazia sua vaidade pessoal*.

    MFonseca

    * - veja bem que a frase não é tão pejorativa como à vista desarmada possa parecer.

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  3. Os anos que vivi em São Tomé (5) passaram-se muitos anos depois do período da Independência! (91-96)
    As amizades que lá fiz foram variadíssimas, uma delas foi esta...

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  4. Fico sempre de alma cheia e olhar húmido, quando mefala das suas memórias pessoais. Hoje, ficou a frase "Sabia do efémero que têm os momentos felizes." a ecoar em mim.
    Obrigada Mª. João!

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  5. a cada vez que leio sobre as pessoas simples e únicas que habitam STP fico mais feliz ainda de estar indo morar nesta terra. já tenho muito orgulho de lá antes mesmo de chegar =D

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  6. Minha cara amiga

    Já conheço São Tomé,pela sua distinta pena,melhor do que tendo lá estado.
    Obrigaram-me,como miliciano,a dois anos na Guiné.
    Guardo,no meio da desgraça,muitas excelentes recordações.
    Saudações cordiais,
    mário

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