óleo da autoria do pintor Nèzó, São Tomé
Chove na Rua Morta, ao lado da minha casa. Vejo passar em frente da janela, indiferentes, cobertos com sombrinhas sem varetas, tapando-se com sacos de plástico, uma simples folha de bananeira na cabeça, as pessoas da minha rua.
É a estação das chuvas.
Com ela vem o fascínio das histórias lidas na adolescência, a sugestão de aventura e de perigo.
Chove sempre. A chuva fina cai, sem parar, a humidade entranha-se no corpo, nos cabelos, forma pequenas gotas que pingam devagar ou se prendem, como diamantes minúsculos, nas teias de aranha dos ramos das árvores.
Pela rua abaixo, erguem-se caroceiros de troncos rugosos e folhas acetinadas, verdes e tenras, que as cabrinhas selvagens tentam roer junto às raízes salientes. Têm frutos como amêndoas grandes que os miúdos cobiçam e vão buscar, trepando pela árvore até ao alto, equilibrando-se em malabarismos assustadores, ou fazem cair dos ramos lançando-lhes pedras. Pedras que, tantas vezes, ferem outro miúdo parado à espera.
É a estação das chuvas.
A chuva cai forte, bate nas caixas dos ares condicionados, com um ruído que lembra tambores de guerra. Torrentes de água suja descem pela rua inclinada.
Longe, detrás de tudo, mas sempre presente, a floresta impenetrável, com a sua névoa eterna envolvendo a copa das árvores e, mais longe ainda, os picos das montanhas das quais nunca se vê o contorno definido. Em cima, o céu cinzento, a alternar com azul, nos dias sufocantes, quando a chuva cai e é sorvida pela terra barrenta, gretada e seca. A floresta parece então afastar-se de nós e, no limiar do horizonte, o ôbô brilha em todos os tons de verde.
Em São Tomé, minha terra de passagem, que não aceitei ao chegar. Que me fascinou, mais tarde, no mistério da vegetação, na doçura dos coqueiros inclinados sobre a areia branca das praias. Na água azul, verde, ou cor de leite da baía Ana de Chaves, rubra ao poente.
Quantas vezes a renegarei? Quantas vezes me deixarei fascinar?
É a estação das chuvas.
Parece-me ouvir o mar, embravecido, lá longe, onde o céu escurece. Os barcos baloiçam doidos no branco intenso da espuma.
Da janela vejo passar as gentes da minha rua.
Continua a chover na Rua Morta.
Belas lembranças, muito bem lembradas! E também gostei muito do quadro.
ResponderEliminarAbraço
Oi olha você vai me dar licença, mas eu tenho q colocar este conto na postagem...é maravilhoso =D
ResponderEliminarNazaré, você pode colocar tudo! É sempre um prazer para mim... Ainda lhe mando um dia uma história do Sr. Semedo...Pessoa linda!
ResponderEliminarBeijinhos
M.J
Muito bem escrito,parabéns!
ResponderEliminarÉ curioso que não tenhas aceitado ao chegar, o que hoje recordas como uma grande experiência: acontece muitas vezes, e o contrária também, que as coisas mais desejadas,nem sempre sejam afinal as mais satisfatórias. Beijinhos
Como diz o Eclesiastes, que uma amiga hoje citou: "há um tempo para tudo..."
ResponderEliminarSão Tomé foi como todas as experiências são na vida.Com o tempo é que se vê!
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Há tempo para aprender etc etc
Beijinhos
Pequeno post mas com muita substância. Um quadro adulto que não me importava de ter no meu quarto.
ResponderEliminarParabéns minha Senhora.
MFonseca
Obrigada, São Tomé merece os seus parabéns...
ResponderEliminarAbraço
Boa noite, Maria José, que lindas palavras. Senti tudo o que escreveu. Adoro a chuva...linda. Bjs
ResponderEliminarObrigada, Elzenir! Ainda bem que gostou... Só que me chamo Maria João...
ResponderEliminarbjssss
Tal como o poeta Francisco José Tenreiro, também o meu coração está em São Tomé - Até nas copiosas chuvas, que apanhei na roça e nos mares - E preso ao lindo canto do Ossobó
ResponderEliminar"A cavalo do vento
a chuva chegou.
A chuva chegou
e o ossobó cantou.
Cantou o ossobó
seu canto molhado.
«Tchuva já vêo?
Já vêo si siô»" - Excerto do poema O OSSOBÓ CANTOU