terça-feira, 20 de setembro de 2011

Histórias de Mulheres: uma amazona da Ucrânia

Zinaida Serebriakova, camponesa deitada


É uma mulher forte e ainda bonita, de pele muito branca e olhos azuis e alegres. Tem os cabelos de um loiro-acinzentado enrolados no alto da cabeça, com farripas despenteadas sobre as orelhas.

Como certas figuras de camponesas da pintora russa Zinaida Serebryakova. O mesmo rosto de malares altos, os cabelos sedosos e claros.

Imagino-a, jovem, com os cabelos loiros e coroada de flores.
Marie Laurencin, jovem com flores


Chama-se Maria, mas costumam chamar-lhe Masha, disse-me.

Faz-me pensar em certas figuras de Toulouse-Lautrec no modo de se pentear, no modo resignado e desafiador de olhar, no modo suave e ao mesmo tempo enérgico como move o corpo, enquanto trabalha duramente.
Toulouse-Lautrec


Ri, sempre, e os olhos ficam pequeninos, acima dos malares eslavos. Pelos movimentos e pela atitude independente, lembra-me uma amazona, sem cavalo, claro. Parece uma mulher guerreira, persistente e corajosa, sempre em luta com os obstáculos que a vida lhe vai pondo em frente. Sempre avançando, nunca pensando em desistir fosse do que fosse.

Gosta muito de dizer: “tudo tem de se arranjar, Maria João!”
E é verdade para ela.
Vamos falando.


Trabalha na minha casa como mulher a dias e nunca a casa brilhou tanto como quando Masha acaba de a limpar.
Nasceu em Lviv, na Ucrânia, perto da fronteira com a Polónia. Mulher de coragem e grande capacidade inventiva, resolve todas as situações que se deparam.


Assim, arranjou-me já um sofá cujo pé mancava, concertou um banquinho que precisava de uma trave lateral para se aguentar, e mudou todos os fios dos quadros que tenho na parede e ameaçavam cair, depois de uma gravura do Hogan ter caído e os vidros ficarem espalhados pela sala toda.

Vamos falando.

Dos filhos, já grandes, que vieram pequenos ainda da Ucrânia. Do marido que só sabia beber.

Zinaida Serebriakova, camponeses


Contava as horas infindáveis que trabalha hoje para poderem viver decentemente os três.
- Um já me ajuda com dinheiro, é jardineiro. O mais novo é que é um malandro, está na escola e não estuda...
Espanto-me a ouvir o seu português, quase correcto, até com as expressões populares. Gosta muito de dizer, quando protesta: “isso é que era bom!”

Quando lhe pergunto:
- Como é que pode trabalhar tanto, Masha?, responde apenas: “quem não trabuca, não manduca!”
E é verdade. Por isso vai de casa em casa, no seu carro muito velho que lhe prega as maiores partidas.

Um dia levou-me a dar uma volta e nunca tive tanto medo!

Porque ela guia como trabalha: a toda a velocidade. Quase sempre em primeira, segunda, “para o carro não se ir abaixo”, ia explicando ela, enquanto eu me encolhia agarrada ao cinto de segurança.

Nunca fala das suas dores. Doente, não se trata porque não tem tempo para perder nas consultas. "Quem não pode, não está doente!"

- Só o tempo que tenho de esperar para ir buscar a “guia”, perco um dia!

E se vai aos médicos particulares (escolhe sempre os russos), levam-lhe muito dinheiro.

Falamos, falamos sempre...
Das florestas da Ucrânia, do cheiro dos pinheiros e da beleza das bétulas e dos olmos, dos arbustos perfumados, da paisagem maravilhosa da sua terra.

Do marido alcoólico que morreu, há poucos meses, lá na terra.
Conta-me:
"Tinha recebido pela primeira vez a pensão, convidou os amigos para beber e por ali ficaram toda a noite".

E comenta, encolhendo os ombros:
"Era só o que ele sabia fazer..."

E morreu no dia seguinte.

- Estás a ver o azar, Maria João, agora que ele ia ter um dinheirinho e podia ajudar os filhos, morre! Nem deu para nos mandar nada...


Indignada, acrescentou:
- Pelo menos aos filhos.

Morreu gasto, e envelhecido precocemente, com pouco mais de cinquenta anos, contava.
- A sorte dele foi morrer...
Fiquei espantada.
- Por quê?
- Porque, se não, ia gastar tudo outra vez e lá tinha eu que lhe continuar a mandar!

Estavam separados há muitos anos. Tinham vindo juntos, saindo de uma Ucrânia em convulsões onde tudo se tornara difícil.

Ele trabalhava numa fábrica.
- Foi o que lhe valeu, ainda teve essa reforma... O pequeninho (diz sempre assim) ainda vai ter direito a uma parte, até aos 18 anos. Só que já só faltam dois anos...

Ela tivera um restaurante que falira "porque o sócio era desonesto", explica, com muitos gestos e irritada.
- Roubou-me tudo, Maria João! Eu vivia bem. Cozinhava, tinha muito que fazer e muita responsabilidade, mas era meu!

E falava da mãe que tinha uma boa casa.
- Cheia de coisas boas... Toalhas de linho bordadas. Loiças boas.

Encolhe os ombros e diz simplesmente:

- Tivemos que partir.
Partiram. Para Espanha, onde ficaram poucos meses, depois para mais longe ainda, para Portugal.
- É gente mais agradável. Não gostei dos espanhóis.

Muitos anos já passaram desde essa primeira viagem.
O marido voltou para a Ucrânia poucos anos depois. Ela ficou. Só vai lá quando consegue juntar o dinheiro para as viagens dos três.
- Foi viver para casa da minha mãe. Sempre com a garrafa de vodka à mão. A beber até cair para o chão... Agora acabou-se.
E faz um gesto com a mão, como se deixasse cair alguma coisa.
Zinaida Serebriakova, esboços de mulheres


Os olhos dela abriam-se, com aquela imagem.

Uma certa nostalgia neles.
- Eu fiquei por cá. Ele não me servia para nada... e sempre era menos uma boca a comer.
Falava com o mesmo tom doce, mas dolorido, irónico.

E logo desatou a rir.
- Tac. Sim, é a vida, Maria João...
Às vezes contava os dias sempre iguais, a trabalhar. Logo às 8 da manhã, num café de um colégio, depois de casa em casa, até às 10 da noite.
- E depois? Ainda tem os seus filhos...
- Eles arranjam-se. Ou faço qualquer coisa a correr. Tenho é de preparar o almoço para o dia seguinte.
- E quando é que dorme?!
- Eu não durmo nunca.

Riu-se.
- Não consigo dormir. Não tenho sono.
- Isso não pode ser. Faz-lhe falta dormir!
- Oh! Depois de comer, às vezes, encosto-me em cima da mesa e então é que durmo...

Sai vermelha, suada, mas sempre com o mesmo sorriso bom.
Como estive doente, habituou-se a dar-me um grande abraço e desejar-me “saúde, Maria João”!
Penso nela e lembro-me de uma frase que ouvi há pouco num consultório:
A vida atraiçoa a gente!”

5 comentários:

  1. Gstei muito de ler sobre Masha.
    Um texto que a Maria João escreve com a sensibilidade de sempre.
    Ficamos a gostar da Masha.

    Um beijinho

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  2. Os anjos podem ter nomes Ucranianos ou portuguese. São dois a conversar.

    Mas discordo da frase, a vida nos dá tanta coisa que deixamos de ver, são belas e diárias. È que por algum motivonão as enxergamos mais que as ruins.

    5 bjs

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  3. Há vidas tão duras, que não se param a pensar, o cérebro está preparado para sobreviver, é incrível o que se aguenta em situações limite.
    Lamento que a Masha não tenha tido boas experiencias na Espanha, contigo vai de certeza estar a gôsto.Desejo-lhe sorte daqui para a frente, oxalá algum dia encontre um pouco felicidade.
    Gosto das pinturas da Marie Laurencin, são muito pessoais, tanto na forma de pintar como nessa obsessão pelas mulheres. Devia ser uma pessoa muito interessante.
    Beijinhos

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  4. Ela é uma pessoa boa, podes gostar dela Isabel! Os anjos minhas queridas acho que não andam por aqui... E, se calhar, até andam. Não sabemos nada disso, mas sabemos que a vida é muito dura para muitas mulheres! Também gosto da Marie Laurencin, Maria-
    bjs

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  5. É triste a história de Masha. Este post é belíssimo quer no texto/história quer nas pinturas escolhidas. Adoro ambientes femininos na pintura.
    De Laurencin, mulher de Rodin, gosto muito da sensibilidade que passa para as telas, desenhos...
    Beijinhos! :)

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