quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O meu pai dizia e eu ouvia... Assim ouvi esta música um dia: Beethoven "Moonlight Sonata" (Mvt. 1)



Portalegre, antigo largo do Corro, hoje praça da República




O meu pai dizia:

"No casarão desconfortável –em preparativos para meter-me a caminho, a pé, pela estrada fora, até à cidade- bateram-me à porta àquela hora, já adentrada a noite, era coisa muito séria, sinal de grossa aflição a que urgia dar remédio rápido.


De dia, nunca uma chamada se me prenunciava de gravidade. De noite, não enganava: o caso era sempre desesperado. O som das pancadas repercutia-se na casa toda –assustava os ratos e os gatos vadios- e chegava aos meus ouvidos com uma ressonância medonha que acordava os terrores infantis que em todos nós dormem.


Alumiado com uma fruste candeia –que nem petróleo havia com a escassez da Guerra-, chego à janela que dá para a rua (rua estreita e primitiva, de um empedrado tosco e de casas atarracadas), abro o postigo e em baixo dou com uma esguia figura de camponês:


- Senhor doutor, tenho lá a mulher com trabalhos!


Vou pelo capote e, com a pasta inseparável em semelhantes emergências, desço as escadas e, num ápice, estamos ambos na azinhaga que contorna as muralhas delidas.


Brisa agreste que entra até ao tutano dos ossos. A lua com ensombrações intermitentes de nuvens densas, mais frígidas que com propensão a água.

O passo é estugado e enquanto o diabo esfrega um olho deixamos a perder de vista o casario e só os altos esfarelados do castelo algum tempo ainda negrejam.

Boa caminhada que desentorpece os membros enregelados. Azinhagas lamacentas intérminas. Veredas e mais veredas.


Oliveiras e sobreiros que atiram sobre nós, à passagem, espessas gotas de água com peso de chumbo. Terra molhada com o trigo já aflorado.


Tudo silencioso. Nem vivalma encontramos e os raros casebres avistados não dão sinal de vida."

Sim, o meu pai dizia, dizia. Contava da sua vida. Eu ouvia sempre... Resta-me lembrá-lo hoje que faria 100 anos...


Portalegre, vista sobre a cidade, ao pôr do sol do Outono



a janela do laboratório do meu pai, no antigo Hospital da Misericórdia

A Igreja de São Lourenço, entre a "casa amarela" e o novo laboratório


A única fotografia que tenho do prédio do laboratório, que ocupava todo o 2º andar. Entrava-se do lado contrário, pela rua dos Mexes e tinha esta vista para a Rua Direita...

Casa na Serra de São Mamede, onde o meu pai viveu os últimos anos




Portalegre e a lua, para esta Serenata ao luar



15 comentários:

  1. Querida Amiga,
    Também eu recordo o Dr. Falcão. A sabedoria calma, o sentido de humor, a poesia-viva, o sonho constante, os cabelos desalinhados e a ternura pronta. Homens assim não desaparecem!
    Um enorme beijinho
    Saudades...
    Luísa

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  2. Escolheu uma bela música.
    Não mata as saudades mas ajuda a bem recordar.

    Cordial abraço,
    mário

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  3. Obrigada. è bom recordar com a música, tem razão, Mário.
    O que dizes é muito bonito Luísa! Faz-me bem ouvir. Sei que eras muito amiga dele...
    Abraço

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  4. Bonita recordação e as fotografias estão excelentes. É uma grande fotógrafa. Conheço esta paisagem, podem nem ser os locais exactos mas a paisagem é para mim muito especial.

    Parabéns ao seu pai que deve ter sido uma pessoa excepcional, humana e construtiva.
    Parabéns à filha por o lembrar!
    A sonata é bela e um presente maravilhoso para o seu pai que espreita lá do céu.
    Bjs. :))

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  5. Não conheci o seu pai, mas gostava muito de o ter conhecido.
    Pelo que sei sobre ele no livro que tive oportunidade de ler,sei que era uma pessoa com uma cultura fora do vulgar e duma grande e genuína bondade.
    Junto-me a esta homenagem.

    A música é muito bonita.
    Um beijinho

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  6. Enternecedor...
    Quem é recordado assim nunca desaparece.
    abraço

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  7. Fiquei contente por virem ter comigo. Obrigada. Tem razão, Virgínia: quem é recordado, não morre nunca!
    Isabel, era sobretudo uma pessoa boa e que ajudava os outros, que se preocupava com os outros.
    E acho que espreita lá do céu, Ana, gostava de o pensar de verdade!
    beijos

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  8. Maria, Existe um comentário entre alguns roms - o dia sete de setembro, quem nasceu nesse dia, tem estrela larga, mãos bravas de orgulho pela verdade e pela coragem, assina com caneta de ouro, pois essa é a cor que nos acorda a alma e a necessidade de honrar a Deus todos os dias.
    A este caro senhor e estimado doutor, rendemos uma oração, que Deus o traga junto como filho preferido e que seu voo seje sempre de curar, ainda que do outro lado, os filhos e filhas que dele precisar. Que esteja em paz.

    bjs das 5 - saudade é o amor que fica.

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  9. Parabéns!!!

    Um belo texto, bela a lembrança.
    Ver sítios que conheço tão bem, por onde passo todos os dias. E o mais engraçado, a foto que está no gabinete médico da Patologia Clínica que eu descobri à pouco que é do teu pai, eheheheheh.
    O sr. que dá nome à minha rua eheheh.
    Beijo, meu Falcão Lunar!!!

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  10. Lindas palavras! O Falcão Lunar agradece, Carlota!
    Amigas dos Vurdóns: que bom ouvir esse ditado rohm! Era verdade...Nais tuke

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  11. Belo texto, uma recordação que não tem preço para ti,que terás muitos escritos dele, suponho, porque quem escreve assim escreve toda a vida. Esse "ambos", refere-se a ele e ao capote?
    Acabou os seus dias no lugar que merecia e certamente quis para ele, essa casa maravilhosa em plena natureza.
    !00 anos! O meu fazia-os em 2009. Acho que viveram num momento bonito, que pensariam da vida se estivessem aqui agora?
    Parabéns por ter tido um pai fantástico.

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  12. Quanta beleza, Maria João!Comovi-me com esta evocação do seu pai e com a homenagem a Portalegre. Poesia pura! Parece que o vejo a ele, que eu própria caminho nas ruas de Portalegre... Sim, quem assim é falado é eterno - e está enternecido a ouvi-la...
    Um beijinho,
    lurdes

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  13. Conheci tão bem o Dr. Feliciano Falcão... tenho tantas lindas histórias dele... no Café Facha...

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  14. Amigo anónimo, quem é? Sim, o Café Facha...
    E que histórias tem? fico curiosa... Escreva.

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  15. Olá.
    Obrigado por me recordar da data precisa.
    Vou escrever sobre ele. Mais uma vez!
    Com amizade. Bjs.
    JDACT
    Nota: Só me é permitido o anónimo.

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