quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

"Morte de um Desconhecido", capítulo V


A SECRETÁRIA

"A secretária do Conde Orsini estava agora na frente de Michael Brenner. Chamava-se Paola Neri e era uma jovem mulher interessante.

Não a imaginara assim. Observava-a com atenção. Figura discreta, bem arranjada, bom corte de cabelo muito curto, vestida com um tailleur simples mas de qualidade, com classe.  Pernas compridas, traçadas com elegância, meias finas claras, ligeiramente brilhantes. Lembrou-lhe uma actriz conhecida...

- Era un homme à femmes, foi o que quis dizer?

Tinha-se apresentado, falado e distraíra-se a olhar para ela. Agora tentava resumir a conversa e retomar o fio.
Ela olhou-o com um sorriso trocista, e riu-se.

-Un donnaiolo, dizemos nós em Itália. É a mesma coisa, claro.

Compôs os óculos de aros de tartaruga que lhe davam um ar de professora. Tinha uns olhos azuis cor de água do mar. Não eram os olhos da actriz em quem pensara.
Modigliani, "Mulher com olhos azuis"

Inquérito sob o signo dos olhos azuis”, pensou Michael e sorriu. De facto, todas "elas" tinham os olhos azuis...

Ela continuou, irónica:

-Era uma questão de estética, dizia o Conde, apenas uma questão estética! Gostava das raparigas novas, vistosas, não lhe importava muito se eram bonitas ou mesmo inteligentes. Queria-as decorativas...

Uma ironia que era desprezo. Via-se que se considerava muito superior a tal categoria e que talvez se tivesse sentido preterida por essas insignificantes peças decorativas.

Ela é inteligente, ou considera-se tal”, pensou Michael. Reparou que havia um certo ressentimento na atitude dela.

-Talvez as preferisse estúpidas, simples. Ou, mesmo, ingénuas..., concluiu.
-O que acha a Paola?

Ela respondeu, sem hesitar:

-Sabe, neste trabalho de public relations, chamemos-lhe assim, podem bem nem ser inteligentes. O que se lhes pede é tão pouco. E não é decerto a inteligência, ou, sequer, a sensibilidade. Boa apresentação, quer dizer bom físico, certo à vontade, isso sim. E desplante, diria eu...

Levantou-se da cadeira, esticou bem a saia e continuou, sarcasticamente:

-E isso elas tinham que chegasse e sobrasse...
-Elas, quem? A quem se está a referir precisamente?
-Às que o Conde escolhia pelos anúncios dos jornais. Eram muitas, estava sempre a trocá-las. Ajudantes, empregaditas, que levam e trazem papéis enquanto se abanam. Sabe como é, não sabe?



-Não, não sei. Não tenho empregaditas dessas a trabalhar para mim. Trabalho sozinho.
Imaginou-se um Sam Spade, ou Humphrey Bogart, tirou um cigarro e pôs o seu ar mais sério.
- Posso?...

Ela voltou ao sorriso trocista:

-Claro que pode... Sabe, elas tinham várias funções...
-Funções?!... 
-Não estou a insinuar nada do que pensa.
-Quem lhe disse que penso?
-Acompanhá-lo aqui e ali, ajudar, distrair. Talvez só isso. Ou talvez não...

Audrey Hepburn, em "Sabrina"

Ficou a olhar para o ar, com um sorriso enigmático. Viu-a triste de repente. Ciúmes? Algum desgosto? Em que pensaria? Saberia mais do que se preparava para lhe dizer? O quê?

-Foi a Paola que encontrou o cadáver...
-Eu não! Foi a mulher dele. Eu cheguei depois.

“Por que se abespinhava?”

-E o que viu?
Monica Vitti, "La ragazza con la pistola", de M.Monicelli

-A senhora Orsini estava de joelhos, inclinada sobre o corpo do marido, com uma pistola na mão. Como num filme policial...


Lauren Bacall

Sacudiu a cabeça, como quisesse apagar a imagem.

-O que pensou? Que ela tinha disparado sobre ele?
Reagira rapidamente, controlando a emoção, e afirmou, fria:

-Sou como você: não penso...

Com um ar decidido, levantou-se e foi buscar à malinha de mão uma chave e abriu uma gaveta da secretária. 

"Muito elegante e fina", pensou Michael. "Porque terá aceitado trabalhar com o Conde?"

-Leia. Eu já li. É interessante, como vai ver. Recebia muitas dessas.
-Sempre da mesma pessoa?
-Não, de várias! Com estilos diferentes, mas batendo na mesma tecla da exploração sentimental, do abandono...económico, se calhar. Ele desaparecia de repente...


Voltara a sentar-se e olhava-o outra vez com ironia enquanto lhe estendia uma carta dobrada em várias pregas. Admirou a frieza dela.

-Ele leu-a?
-Não, esta nem sequer lha dei, não valia a pena maçá-lo, era igual às outras. O meu trabalho também é, quero dizer era, “poupá-lo”, tirar-lhe as maçadas inúteis.

Como ele a olhava sem pegar na carta, insistiu, seca:

-Não lê?
-Depois. Agora prefiro falar consigo.
-Já falámos tudo, não lhe parece?

O sorriso dela significava que sabia muito mais, mas que não estava disposta a contar-lho.

-Pelo menos por agora..., acrescentou, com o mesmo sorriso.
-E a primeira mulher, Erica? O que sabe dela?

Pareceu-lhe que reflectia. Cruzou e descruzou as pernas com cuidado, alisando as meias, e disse-lhe por debaixo das longas pestanas:

-Muitas coisas, claro, mas ficam para outra vez...
-Porquê?
-Porque sim...

E acrescentou, olhando-o com um brilho nos olhos bonitos:

-Quando nos voltamos a ver? Estou sempre livre às sextas-feiras à noite. E nos sábados, é evidente...Conhece alguma discoteca em Roma? Já foi a Le Stelle?
-Não costumo frequentar discotecas...

Ela espantou-se:
-Mas de onde vem?! De Marte?...
-De Brighton...

-E lá não há disso?... Ou ainda vão nos discos de vinil? Ainda não deve conhecer bem os romanos...
-Os romanos de hoje?
-De hoje e de ontem. Viver o dia a dia intensamente!  Divertir-se! Pelo menos aos fins de semana. O dia de hoje é o que conta...

Hesitou e foi como se lhe passasse uma sombra pelo olhar:

-Quem nos diz que estamos cá amanhã?! E o dia de ontem já passou. E morre-se tão depressa.


A tristeza passara e continuou, a sorrir, outra vez, mas sentiu -lhe lágrimas na voz. 

"Ou estou a imaginar?"

-Não conhece a anedota do romano que ganhou a lotaria?, perguntou Paola.

-Não...
-Então, ouça que vale a pena. Um homem ganhou a lotaria, nem muito nem pouco, é a lotaria... 

Ele sorria. Era simpática a secretária do Conde Orsini.

-No dia seguinte gastou quase tudo. Os amigos criticaram-no:  "Gastaste tudo num dia! E o futuro?” Sabe qual foi a resposta dele?
-Não...

Agora era ele que sorria, à espera de uma história.

- Disse: “Hoje estou vivo e  posso gastar tudo! Amanhã sei lá se posso dizer o mesmo...ou se tenho futuro! E fica cá o dinheiro para os outros? Nem pensar!” Que tal esta filosofia?

-Boa. Pura filosofia romana? Interessante.
-O “carpe diem”, não conhece? Não pratica?

Divertia-se com ele?

-Oh! Sim, pratico, mas sem exageros! Não sou como o “seu” Conde!...

-Pura filosofia britânica?

 Riram os dois.

-Tem uma namorada?
-Interessa-lhe saber?
-Sim.
-Tenho.
-Ah!
-Desiludida?...
-Um pouco. Fico a saber que não podemos sair na sexta-feira, nem no sábado...
-Claro que podemos, ela não é ciumenta...

Pensava que poderia saber mais da próxima vez. Aliás toda a conversa de Paola lho sugerira. Sentiu  remorsos. Servia-se dela para ir sabendo coisas. A resposta dela sossegou-o.

-Não se preocupe! Sei o que está a pensar. É normal que haja um pouco de “interesse” da sua parte, neste encontro. Sabe que sei coisas que não lhe contei...

Hesitou:

-Talvez porque queria voltar a encontrá-lo... 

Encolheu os ombros, suavemente, enquanto acrescentava:

-Assim, o interesse é dos dois. Uma saída a  uma discoteca,  dançar, beber uns copos... Uma conversa informal, fora deste “inquérito” policial, entre amigos, não acha melhor?

-Ok! Estou de acordo consigo. Onde quer que a passe a buscar, no sábado?

 Ela estendeu-lhe um cartão. Imaginou-a pronta para sair...

-Depois falamos. Tem aí o número do meu telefonino.
-Telemóvel, não é? Eu telefono-lhe no sábado, dá-me mais jeito, combinado?
-Combinado. Ciao...

E estendeu-lhe a mão, sem o acompanhar à porta.


 (Excerto do capítulo V, de  “Morte de um Desconhecido”,  de M.J.Falcão)

2 comentários:

  1. Muito interessante, e a seguir?!...

    Acho a pintura da Mulher com olhos azuis muito linda!

    Um beijinho

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  2. Havia muito que comentar aqui, tanto, que suponho que já o fiz, e não quero repetir-me.
    Lauren Bacall e Audrey Hepburn, duas mulheres inteligentes, pouco parecidas fisicamente.
    Logo vou sair com uma amiga, sei que à conversa num lugar quentinho, e com a ajuda de um par de bolos, esta tarde será muito menos cinzenta. Pensava ir ver Lincoln, iremos amanhã.
    Beijinhos

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