Auto-retrato, no atelier
Quem era? O que desejou? O que perdeu? O que ganhou?
Desde pequena, são os quadros dele que me atraem, nas estampas
que via enquadradas nas paredes da casa dos meus pais: “Os girassóis”, por
exemplo, e uma paisagem de árvores castanhas, de ramos como loucas.
E vêm outros: Pissarro, Manet, Monet (o mais próximo de mim),
muito Renoir, Cézanne, Degas.
Que importa isso?, é de Van Gogh que queria falar.
Voltei a pegar num livro sobre a sua vida, livro muito humano,
escrito com respeito e amor: “Le secret de Van Gogh”, de Pierre Maurois.
E reli algumas cartas da sua correspondência com o irmão "Lettres à Théo" (Gallimard, L'Imaginaire, 1956).
E reli algumas cartas da sua correspondência com o irmão "Lettres à Théo" (Gallimard, L'Imaginaire, 1956).
Auvers e a sua Igreja, 1890
Choupanas em Auvers, 1890
casa natal de Van Gogh
Vista de Auvers, 1890
Morre em Auvers-sur-Oise, onde chegara em Maio, para mudar de ares e consultar outro médico. Era o dia 29 de Julho de 1890. Tinha 37 anos.
Depois da tentativa de suicídio, a morrer, dirá ao irmão bem-amado e tão próximo durante tantos anos de vida, seu outro “eu”:
“Não chores. Fi-lo para o bem de todos. A tristeza ia durar sempre.” (pg.193)
De facto, Van Gogh escolhe morrer quando percebe que, se continuasse a viver, o
sacrifício de Théo seria enorme e poderia vir a destruir a sua “vida
verdadeira”, a vida pessoal, com a sua pequena família.
Jardim florido, em Arles
E, finalmente, Auvers, perto de Paris, para estar mais perto de Théo, onde encontra algum repouso e se sente mais calmo...
Vista de Auvers, 1890
E Théo sempre preocupado. Vincent escreveu-lhe um dia : “
És tão bom, queria poder fazer alguma coisa boa para te provar que não sou ingrato” (pg.166).
Pouco antes de morrer, pintara o quadro que mais revela o seu
desespero: “Champs de blé avec corbeaux”, e escreve ao irmão:
Champs de blé aux corbeaux, 1890
desenho de Van Gogh, nas Cartas a Théo
Sempre segundo o livro de Maurois, é fácil ver como a natureza o influenciava
e lhe fazia bem.
Dissera ao irmão:
“Gostaria que a família fosse para ti o que a natureza é para mim... a natureza, a terra revolvida, a erva, o trigo amarelo, o camponês...” (pg.163) E enviava ao irmão desnhos, esboços de temas que lhe interessavam.
Théo, que se preocupa, escreve à mulher, Jo, contando que tinha recebido carta de Vincent e perguntava-se:
“Terá alguma vez um pouco de felicidade? É tão bom...”
Planície em Auvers
Dissera ao irmão:
“Gostaria que a família fosse para ti o que a natureza é para mim... a natureza, a terra revolvida, a erva, o trigo amarelo, o camponês...” (pg.163) E enviava ao irmão desnhos, esboços de temas que lhe interessavam.
Théo, que se preocupa, escreve à mulher, Jo, contando que tinha recebido carta de Vincent e perguntava-se:
“Terá alguma vez um pouco de felicidade? É tão bom...”
Vincent admirava a vida e a humanidade dos quadros de Millet
e escrevia:
Millet, "Trovoada na montanha"
"Primavera com arco-íris", de Millet
Quem somos nós, impressionistas, para querer ser como eles? (...) As nossas fraquezas, as nossas doenças, os nossos turbamentos actuais... Pensando nisto (...) vem-me o desejo de me refazer e de pedir desculpa por os meus quadros serem um grito de angústia, em que o girassol simboliza, apesar de tudo, a gratidão.”
Angústia, desespero, tristeza, sim.
Em Abril de 1890, três meses antes do suicídio, escreve a Théo:
“Desespero quase -ou completamente mesmo- comigo próprio. Meu pobre irmão, aceita as coisas como são e não te preocupes comigo. Saber que governas bem a tua casa, encoraja-me e dá-me forças.”
“Desespero quase -ou completamente mesmo- comigo próprio. Meu pobre irmão, aceita as coisas como são e não te preocupes comigo. Saber que governas bem a tua casa, encoraja-me e dá-me forças.”
Oferece-lhe os quadros que acabara de pintar, agradecendo tudo
o que Théo fazia por ele.
Estivera internado no asilo de Saint-Rémy, na Provença, devido a mais uma crise de
desespero, ideias de suicídio, e lamentava não ter podido pintar as árvores em
flor, nessa Primavera.
Em Auvers desde Maio tentava curar-se.
Em Auvers desde Maio tentava curar-se.
Estivera em Paris em Maio, fora ver o filhinho de Théo, nascido
em 30 de Janeiro, e que se chamava Vincent como ele. Ao lado do irmão,
comovera-se a ver aquela coisa pequenina e indefesa. Para ele pintou as
últimas flores de amendoeira, o belíssimo quadro que todos conhecemos.
o último ramo de amendoeira florida, para o pequeno Vincent
Aguenta dois ou três dias, apenas, em Paris, sofre com o barulho e a agitação da cidade. Volta para Auvers-sur-Oise. E escreve logo, a dizer como lhe agradara voltar a casa e rever “a terra, as casas com
tectos de colmo, a suavidade dos campos, a vegetação bem ordenada...”
Mas esse equilíbrio, esse sentimento de harmonia e paz, duram pouco. Seguem-se várias tentativas de suicídio, algumas bebendo
as tintas com que pinta, ou, até, petróleo.
Escada em Auvers, 1890
Ceifeiro no trigal, ao sol nascente
“A morte, continua Pierre Maurois, era a única coisa que
podia oferecer aos que amava. Pensava nela sem tristeza. Escrevera sobre a morte: “tal como se apanha o comboio para ir viajar,
também se apanha a morte para ir até uma estrela”.
Noite estrelada em Auvers
“No último ano de vida pinta como um verdadeiro possesso.
(pg.160) O “expressionismo” de algumas das últimas telas, antes do suicídio, como “Seara com corvos”, são quadros pintados em momentos de lucidez, que revelam desespero mas não loucura.”
Casas em Auvers, 1890
"O seu suicídio foi um acto de lucidez, perfeitamente
reflectido”, insiste Maurois. (pg.153)
desenho incluído numa carta de Vincent a Théo
Nesse ano escrevera ao irmão:
“Sinto que as histórias das pessoas são como as histórias do trigo, se não for semeado em terras onde possa germinar, que importa?, seremos todos moídos para fazer o pão. A diferença entre felicidade e infelicidade? São as duas igualmente necessárias e úteis, e a morte e o desaparecimento... é tudo tão relativo – e a vida também”. (pg.161)
“Sinto que as histórias das pessoas são como as histórias do trigo, se não for semeado em terras onde possa germinar, que importa?, seremos todos moídos para fazer o pão. A diferença entre felicidade e infelicidade? São as duas igualmente necessárias e úteis, e a morte e o desaparecimento... é tudo tão relativo – e a vida também”. (pg.161)
E em 27 de Julho, tenta o derradeiro gesto. O
irmão é chamado e, quando o vê, tem esperança que sobreviva, tenta animá-lo e persuadi-lo
que se vai curar. Vincent sabe, no entanto, que “curar-se” não resolveria nada:
a tristeza dele continuaria.
Nessa mesma noite, velando Vincent, Théo escreve a Jo:
“Nunca teve muita felicidade na vida e não tem esperança em coisa nenhuma; a solidão pesa-lhe tanto...”
“Nunca teve muita felicidade na vida e não tem esperança em coisa nenhuma; a solidão pesa-lhe tanto...”
Vincent Van Gogh morre, na madrugada de 29 de Julho. É enterrado em Auvers.
Foi difícil encontrar-lhe um carro funerário - porque o padre de Auvers recusara-se a ceder o da paróquia para um suicida - e teve de vir de outra aldeia. O silêncio cerca o caixão porque o pároco recusara também o ofício dos mortos, o "Requiem aeternam..."
Théo provavelmente terá no bolso a última carta do irmão:
"Meu querido irmão, obrigado pela tua boa carta e pela nota de 50 francos que trazia (...). Quero voltar a dizer-to que tu és muito mais do que um simples "marchand" dos quadros de Corot, tu, por meu intermédio, participas nas minhas próprias telas que mesmo na sua desordem guardam uma certa calma. (...) Pois é, o meu trabalho é aí que arrisco a vida, e o meu juízo perdi-o ali em parte (...) Mas o que queres?..." ("Lettres à Théo", pg.5)
Que responder a essa última pergunta? "Mas o que queres?!...
Théo vai escrever à velha mãe, desolado, inconsolável:
" É impossível descrever a sua tristeza e encontrar consolo. A dor que sinto nunca me deixará. A única coisa que poderemos dizer é que encontrou o repouso a que aspirava."
Seis meses depois, morre de uma nefrite crónica de que sofria há dois anos.
Foi difícil encontrar-lhe um carro funerário - porque o padre de Auvers recusara-se a ceder o da paróquia para um suicida - e teve de vir de outra aldeia. O silêncio cerca o caixão porque o pároco recusara também o ofício dos mortos, o "Requiem aeternam..."
a Igreja de Auvers
Théo provavelmente terá no bolso a última carta do irmão:
Túmulos de Vincent e Théo, em Auvers
Que responder a essa última pergunta? "Mas o que queres?!...
Théo vai escrever à velha mãe, desolado, inconsolável:
" É impossível descrever a sua tristeza e encontrar consolo. A dor que sinto nunca me deixará. A única coisa que poderemos dizer é que encontrou o repouso a que aspirava."
Seis meses depois, morre de uma nefrite crónica de que sofria há dois anos.
“Foi enterrado ao meio-dia
num dia de calor tórrido. O cemitério estava rodeado de searas.” (Pierre
Maurois, o. c. pg. 196.)
E, quase sem querer, recordo outro enterro, na manhã de um 17 de Agosto,
dia de Verão tórrido, em terras do Alentejo. Enterravam o meu pai. Do cemitério, viam-se, ao
longe, as searas douradas.
Searas alentejanas (foto de Stego)
(1) "Le secret de Van Gogh”, de Pierre Maurois, Stock, 1957
(2) "Lettres à Théo", Gallimard, L'Imaginaire, 1956,inclui as cartas que durante 18 anos Vincent escrevera ao irmão (prefácio de Pascal Bonafoux)
(As imagens das pinturas maravilhosas de Van Gogh tirei-as da internet. Impossível dizer exactamente de que sites. Agradeço. Incluí as fotografias que fiz de alguns desenhos reproduzidos no volume da correspondência)
(2) "Lettres à Théo", Gallimard, L'Imaginaire, 1956,inclui as cartas que durante 18 anos Vincent escrevera ao irmão (prefácio de Pascal Bonafoux)
(As imagens das pinturas maravilhosas de Van Gogh tirei-as da internet. Impossível dizer exactamente de que sites. Agradeço. Incluí as fotografias que fiz de alguns desenhos reproduzidos no volume da correspondência)
Gostei muito. Adoro Van Gogh, como tu e tanta gente. Há uma enorme quantidade de pintores fora de série, mas algum antes pintou o céu amarelo e a terra azul?
ResponderEliminar..." vem-me o desejo de pedir desculpa por os meus quadros serem um grito de angustia"...
Nós é que temos de pedir desculpa de não ter sabido tratar a um génio que tanto nos enriquece o espírito e a condição humana.
Beijinhos
Sim, "nós" (eles?) é que não o compreendemos durante a vida. Poucos dias depois da sua morte, conta Théo, já havia alguns "marchands" em Paris a interessarem-se pelos quadros do morto Vincent... E quantos não fizeram fortunas logo a seguir?
EliminarTambém gosto muito de Van Gogh. Li as Cartas a Théo há muitos anos. Ofereceram-me também há muito tempo um livro da Taschen com a obra completa do pintor.
ResponderEliminarVi o filme na Cinemateca: «Van Gogh», de Maurice Pialat que adorei. Não vi o de Alain Resnay que julgo é de 1948.
Parabéns pela postagem tão interessante, Como gostava de ir a Paris...
Ó Ana, vá até Paris ver os seus japoneses! Esses não será fácil vê-los outra vez. E ver Van Gogh... Tentei ver uma grande Exposição dele em Londres mas estavam milhares à espera de entrar todos os dias!
EliminarVi esse filme do Pialat mas pouco recordo. E vi o mais antigo, americano, com o Kirk Douglas (Van Gogh) e o Anthony Quinn (Gauguin).
Gostei muito deste post.
ResponderEliminarGosto de Van Gogh e colocou aqui pinturas lindas.
As searas alentejanas é uma imagem de beleza que certamente Van Gogh poderia ter pintado.
Um beijinho grande
Sei que gostas deste pintor, estas imagens são bonitas e confesso que a maioria delas "descobri-as" agora depois de ler o livro...
EliminarBeijinhos
Maria João, felicitá-la será pouco, por este magnífico pot. Penso que nunca tinha lido nada tão belo, apesar do fim trágico, sobre Van Gogh.
ResponderEliminarE, tão bem ilustrado.
Gostei imenso.
Um beijinho grande.:))
A história dele é tão triste!Eu só passo por alto nessa tragédia... Vale a pena tentar ler mais!
EliminarProcure as Cartas a Théo, são de uma ingenuidade e simplicidade e generosidade enormes!
beijos