segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Barbara canta o mal de viver ( "Le mal de vivre")






























































Barbara canta: Le mal de vivre





3.http://www.youtube.com/watch?v=6Llpdzx4dSU

Barbara e outras canções










BARBARA morreu em Novembro de 1997, nascera em 9 de Junho de 1930, segunda de quatro filhos. O pai era alsaciano, a mãe viera de Odessa, na Ucrânia, e, como tantas famílias de judeus, durante a 2ª Guerra Mundial, fugiram de terra em terra, de hotel em hotel, com as malas na mão. Depois da guerra, a família estabeleceu-se numa pensão em Vesinet.
Foi aqui que uma professora de canto, percebendo o seu talento musical, começou a dar-lhe lições. Mais tarde, em 1947, com esta ajuda, pôde entrar para a Escola Superior de Música, onde estudou música clássica. Ia ganhando para viver cantando num coro de raparigas no Théâtre Mogador em Paris, na revista “Vilettes Impériales”. Foi também nesta altura que conheceu as estrelas da canção francesa, Piaf, Trenet.
Inspirada neles, decidiu cantar. Em 1949, foi ouvida com Pierre Prévert que era o director do cabaret "Fontaine des Quatre Saisons", na rue de Grenelle. Infelizmente o negócio andava mal e Prévert contratou-a para lavar os vidros... Aceitou porque lhe permitia à noite, detrás do bar, ouvir as grandes estrelas do tempo: Boris Vian e Mouloudji.
Barbara deixou Paris em 1950 e mudou-se para Bruxelas onde viveu até 1952. Aí encontrou um grupo de escritores, pintores e artistas que a convidaram para viver com eles numa casa enorme transformada em ateliers e sala de concertos. O grupo instalou um piano e Barbara apresentou-se em público tocando pela primeira vez. Encorajada pelos amigos, abre um cabaret, "Le Cheval Blanc". Não teve sorte, o dinheiro acabou e teve de voltar a Paris. À chegada foi chamada para cantar no cabaret "L’ Ecluse" oito dias.
Em 1954, Barbara aparece no "Le Moineau", cantando um novo repertório de canções de Léo Ferré e do escritor Pierre Mac Orlan e alguns dos primeiros trabalhos de Georges Brassens.
Em 1957, grava o primeiro single em Bruxelas, com "Mon pote le gitan" e "L’oeillet blanc". Só em 1959 apresentará as suas próprias composições em público, cantando "J’ai troqué" e o clássico "Dis quand reviendras-tu".
Em 1960, Barbara grava um album para a marca Odéon, com uma selecção de canções de Brassens. Esse album é um sucesso : ganha o "Grand Prix du Disque" e também "Le Prix d’interprétation". A partir daí, a sua carreira começa a ter outro estilo: a Philips publica um album novo, "Barbara chante Barbara", em 1963, mas foi só no ano seguinte que a jovem cantora cria realmente um nome, depois de ter actuado como "segunda" num concerto de Georges Brassens, no Bobino, em Dezembro de 1964. Continua a marcha gloriosa.
Em 1965, o album "Barbara chante Barbara" ganha o prestigioso prémio da "Académie Charles Cros" .
É a serie de concertos no Bobino que lhe inspiram a canção "Ma plus belle histoire d’amour" que dedica dedica aos fans.
Em 1967, Barbara embarca num Tour pela Europa, com grande sucesso. Em Janeiro de 1968, Lucien Morisse, director da estação de radio francesa Europe 1, convida-a para um espectáculo no Plympia que será transmitido em directo pela estação. No ano seguinte, volta ao Olympia para um concerto memorável, onde Georges Moustaki se junta a ela no palco para cantar o dueto: "La dame brune".
Em 1970, Barbara tenta um papel numa peça de teatro para auqa escreve a música e representa o papel principal. Não tem sucesso comercial e volta à sua carreira de cantora, gravando um novo album, orquestrado por Jean-Claude Vannier. Ainda nesse ano grava outro album "L’Aigle Noir", que logo foi o “hit desse Verão.
Em 1971, o cantor belga, Jacques Brel, que encontrara Barbara nos anos 50, pede-lhe que entre num filme dele, "Franz". Barbara não só aceita o papel como decide escrever o tema do filme, "Eglantine".

Em 1972 decide retirar-se para o campo, e vai viver na aldeia de Précis (Seine et Marne).
Volta em 1974, embarca num “tour” pela Europa e, logo, uma série de concertos em Israel. Continuará errante até 1978 quando François Reichenbach produz um filme com um seu concert no Olympia, documento que procura de certo modo explicar a atracção magnética que a cantora exerce no público.
Um novo album de Barbara, "Seule", sai em Fevereiro de 1981. Depois de grande sucesso do album, vai dar um espectáculo em Pantin (nos subúrbios de Paris), em 28 de Outubro, um verdadeiro triunfo. Em Dezembro de 1982, o Ministro da Cultura, Jack Lang, dá-lhe o "Grand Prix National de la Chanson Française" para a carreira. E continua o sucesso com outros espectáculos em Paris até no grande Zénith".
Barbara, a quem a imprensa passou a chamar "La Dame en noir" ("A Senhora de negro”) volta ao Théâtre de Châtelet em 1987, onde apresenta a nova canção "Sid’ amour à mort". Tributo da cantora aos que sofrem de SIDA.

Em 1990, Barbara foi considerada uma das mais importantes figuras da canção francesa.
Penso que nunca mais acabaria… Avanço um pouco.
Em 1996, o album "Barbara 96" foi um enorme sucesso comercial e crítico. Mas, sofrendo de problemas respiratórios, e para desilusão dos seus fans, não se realiza nenhum concerto. Convalescente, na sua casa de Précy-sur-Marne, a cantora dedica-se a escrever as suas memórias, que será publicado mais tarde, pela Fayard, com o título: "Il était un piano noir..."

Em 24 de Novembro, Barbara é levada de urgência para o hospital, sofrendo de problemas respiratórios graves. Morre nessa noite.


Barbara

le mal de vivre

Ça ne prévient pas quand ça arrive

Ça vient de loin

Ça c'est promené de rive en rive

La gueule en coin
Et puis un matin, au réveil

C'est presque rien
Mais c'est là, ça vous ensommeille

Au creux des reins

Le mal de vivre

Le mal de vivre

Qu'il faut bien vivre

Vaille que vivre

On peut le mettre en bandoulière

Ou comme un bijou à la main

Comme une fleur en boutonnière

Ou juste à la pointe du sein

C'est pas forcément la misère

C'est pas Valmy, c'est pas Verdun

Mais c'est des larmes aux paupières

Au jour qui meurt, au jour qui vient

Le mal de vivre

Le mal de vivre

Qu'il faut bien vivre

Vaille que vivre
Qu'on soit de Rome ou d'Amérique
Qu'on soit de Londres ou de Pékin

Qu'on soit d'Egypte ou bien d'Afrique

Ou de la porte Saint-Martin
On fait tous la même prière

On fait tous le même chemin

Qu'il est long lorsqu'il faut le faire

Avec son mal au creux des reins

Ils ont beau vouloir nous comprendre

Ceux qui nous viennent les mains nues

Nous ne voulons plus les entendre

On ne peut pas, on n'en peut plus

Et tous seuls dans le silence

D'une nuit qui n'en finit plus

Voilà que soudain on y pense

A ceux qui n'en sont pas revenus
Du mal de vivre

Leur mal de vivre

Qu'ils devaient vivre

Vaille que vivre

Et sans prévenir, ça arrive

Ça vient de loin

Ça c'est promené de rive en rive
Le rire en coin

Et puis un matin, au réveil

C'est presque rien
Mais c'est là, ça vous émerveille

Au creux des reins

La joie de vivre

La joie de vivre

Oh, viens la vivre

Ta joie de vivre

( o "mal de viver" que chega de repente, sem aviso, uma manhã ao acordar, que nos faz ficar tristes, perder a vontade de viver, o mal de viver que entra pelo corpo e nos faz chorar quando o dia nasce ou quando a noite cai. E não nos larga. E temos que viver com ele, trazê-lo connosco, ou a tiracolo...ou como uma jóia na mão... ou como uma flor na botoeira ou pendurado do seio. Não é a miséria nem nehuma tragédia mas são as lágrimas ao canto do olho sempre. Que atinge todos, sejamos de Roma ou da América, de Londres ou Pequim, do Egipto ou de África ou apenas da Porte de Saint-Martin e nada nem ninguém nos consola. Até que, sem saber como, nem porquê, um manhã ao acordar, tudo nos encanta, voltou a alegria de viver... )

1./2./3. fotografias de Barbara

4. a capa da revista Télérama, número especial sobre Barbara, sítio onde está enterrada, com a mãe, no cemitério de Bagneux. O pai com quem teve uma relação dolorosa e difícil, morre, e está enterrado, em Nantes (é a ele que se dirige na canção, belíssima e triste, "Nantes".

5. O livro autobiográfico "Il était un piano noir: mémoires interrompues", publicado depois da sua morte, em 1998, pela Librairie Fayard, tem o mesmo nome da canção que escrevera antes.

6. capa da edição inglesa da autobiografia de Barbara

domingo, 30 de agosto de 2009

Poemas da insatisfação: Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca e Reinaldo Ferreira



















FLORBELA ESPANCA
Neurastenia

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Marias!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...

Alma perdida








Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...



MÁRIO DE SÁ CARNEIRO






















Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardada,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


REINALDO FERREIRA


Rosie




























Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.
















Ilustrações:
1. Claude Monet, paisagem de neve
2. fotografia de Florbela Espanca
3. um rouxinol
4. retrato de Mário Sá Carneiro
5. Chagall, cavalo vermelho alado
6. dois retratos de Reinaldo Ferreira
7. Renoir, baile
8. Van Gogh, autoretrato com orelha cortada

sábado, 29 de agosto de 2009

Edith Piaf, Juliette Gréco, Gainsbourg, o acordeão, o jazz manouche e outras músicas...










EDITH PIAF











Edith Piaf canta "L'accordéoniste"
http://www.youtube.com/watch?v=E4B6sf5nPTs














Serge Gainsbourg canta: "L'accordéon"
http://www.youtube.com/watch?v=U6oj6XbvwVY
























O grupo de jazz "manouche" (cigano) de Cristine Tassan e as impostoras, no Téâtre de la Marjolaine, 2007, toca "Olhos Negros"

http://www.youtube.com/watch?v=AMAjdsa3XFg


História de um grupo de jazz manouche na América:
http://www.youtube.com/watch?v=s_hQTHxOmbk

Músicas francesas em acordéon, num "bal musette":
http://www.youtube.com/watch?v=MzvoNipdRMU


La Rouquiquante e "La Marine", de Georges Brassens:
http://www.youtube.com/watch?v=dhouTLGKS3Q


Georges Brassens canta "La Marine"
http://www.youtube.com/watch?v=d2AoRkmZ874




Juliette Gréco







Juliette Gréco canta "Parlez-moi d'amour"
http://www.youtube.com/watch?v=PtXzVFYPkyc

e

"Sous le ciel de Paris"
http://www.youtube.com/watch?v=0GynZHYDbKk


"Piaf criança: hino ao amor"




Edith Piaf : um hino ao amor...

Nascida num bairro popular, o de Belleville, em Paris, Édith Giovanna Gassion demorou a conquistar prestígio como cantora. Vida difícil, cantando aqui e ali às esquinas das ruas de Paris. Após anos na estrada, acabou por ser descoberta por um caça-talentos que lhe deu o nome de Piaf (passarinho, em francês) e lhe deu a oportunidade de cantar em alguns cabarés bem frequentados.

O nome Edith Piaf passou, então, a ser reconhecido por toda a Europa, região que vive um período de guerras e tristes canções. É esta história que conta o filme Piaf, um hino ao amor, filme de Olivier Dahan que sai em 2007 e tem no papel da protagonista Marion Cotillard.
Não conta como Piaf ajudou outros cantores, dando a mão a todos, muitas vezes o coração também: Mouloudji, Montand, Aznavour, Georges Moustaki.
Um hino ao amor...
É uma homenagem a Piaf, ao acordeão, à canção francesa, à música tout court...

Um poema de Cesário Verde um pouco original: Manhãs brumosas



Um poema de Cesário Verde


"Aquela, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que línguas fala? Ao ouvir-lhe as inflexões inglesas,
- Na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! -
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas;
E o meu desejo nada em época de banhos,
E, ave de arribação, ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandesas têm soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentidões ufanas,
Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos;
E como aquelas são marítimas, serranas,
Sugere-me o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um rural boy! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda."

Foz do Tejo, 1887
Porto, Renascença, 1879
Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, 1886.
Ilustrações:
1.
foto de Cesário Verde
2. Claude Monet, a praia em Sainte Adresse, 1867

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Yasunari Kawabata: "Mil Grous" publicado na Dom Quixote



Vi hoje na Livraria Galileo em Cascais (porque foi lá que fui...) um livrinho de Kawabata "Mil Grous", traduzido em português, e publicado pela Dom Quixote.
Foi uma belíssima escolha! Parabéns à Dom Quixote.

Lamentava eu há dois dias que não estivessem publicados aqui em Portugal os "Contos na palma da mão", ou "Arco-íris", sabia que havia apenas uma tradução de "A casa das belas adormecidas" e de "Terra de Neve". Agora fico mais contente. É mais um livro para oferecer, aconselhar...

Publicado por Kawabata, em capítulos, entre 1949 e 1951, o romance Mil Grous (ou Mil tsurus, Mil Garças) o célebre Senbazuru ("Nuvens de Pássaros Brancos", na tradução brasileira), poderia parecer, a uma leitura superficial, mero louvor da tradicional cerimónia do chá.
O próprio autor advertiu: "Ver o meu romance Mil Grous como uma evocação da beleza formal e espiritual da cerimónia
do chá é uma leitura falsa. É, pelo contrário, uma obra negativa, uma expressão de dúvida e um alerta à vulgaridade em que a cerimónia do chá caiu."
Narrativa de desencontros, como tantas outras histórias do seu autor, Mil Grous relata uma passagem na vida do jovem Kikuji, que reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai: Chikako, ardilosa mestra da arte do chá, e a frágil viúva Ota, com quem Kikuji inicia uma relação amorosa.
Chikako, intrigante, tenta afastar Kikuji da viúva Ota e casá-lo com a jovem aprendiz Yukiko - dona de um lenço em que se estampa uma revoada de grous brancos. O quarteto feminino completa-se com a presença perturbadora de Fumiko, filha da viúva Ota.
O grou, ou tsuru, é uma ave sagrada no Japão. Simboliza a longevidade, pois nas lendas vive mil anos. Diz-se que confeccionar mil tsurus de origami traz a realização dos desejos.
No romance de Kawabata, porém, os mil grous não são garantia de sorte, saúde, paz ou longevidade. As personagens não contam com as graças da ave mítica.
E a arte do chá, que promove tanto aproximações quanto desencontros, também não escapa à perversão do tempo.
"A morte está persegue-nos sempre. E isso apavora-me" - diz Fumiko.

Recorde-se que o livro foi escrito nos anos logo a seguir à derrota do Japão na Segunda Guerra. Além de se encontrar devastado, o país ainda esteve ocupado pelos Aliados durante sete anos após sua rendição .
O estilo de escrita de Yasunari Kawabata distingue-se por uma linguagem suave, mais abstracta que descritiva, onde predomina a subjectividade em relação à objectividade, aproximando-se muitas vezes da prosa poética.
Pelo seu tratamento de atmosferas e cores, ficou conhecido como o escritor que "pintava as palavras" de branco irradiante, praticamente sem outras cores, como se vê em "Terra de Neve" e em "Mil Grous".
A solidão, a angústia da morte e a atracção pela psicologia feminina foram os seus temas constantes. Até ao fim.

Livro muito belo sem dúvida que aconselho a irem já comprar...

Ilustrações:

1. capa do livro Mil Grous, publicado em Agosto passado, pela Dom Quixote

2. Imagem da rua e do Museu Yasunari Kawabata

Mais um capítulo de "Os Olhos de Jade", capítulo 5

http://www.youtube.com/watch?v=XPP1pgIFbW8
Sonata de Beethoven, "Appassionata",
interpretação de Arthur Rubinstein


CAPÍTULO 5


Subia os degraus devagar apoiada ao corrimão. Lá fora, o vento soprava, ouvia as rajadas de chuva baterem nos vidros. Imaginou as árvores agitarem-se, ouvia as portadas de madeira das janelas rangerem. Estava ali sozinha.
Sentia-se muito cansada. Equilibrava um copo de leite quente na mão direita e ia olhando para os quadros da parede ao lado, pinturas modernas que a mãe comprara, um pouco mais acima dois quadros de pintores africanos naïfs.
-" Teria feito bem em ter falado daquela maneira?"
A verdade é que se sentia aliviada. Tirara um peso enorme do peito. Dividira-o com elas.
-“Não eram as melhores amigas da mãe?...”
Deviam querer saber o que se passara ao certo. Não se falara de assassínio na altura da morte. Todos tinham pensado que a causa da morte fosse paludismo.
-“Paludismo?! Por que teimo em dizer que não?!... Porque sei que não foi!”
Ninguém se interrogara, ninguém duvidara. Mas ela não aceitara tal explicação, desde o princípio. Lembrava-se do momento em que recebera a notícia, em Abidjan. Tinha sido um choque ouvir a voz de Gabriel:
-“Tenho que te dizer uma coisa horrível, desculpa ser brutal... A tua mãe morreu.”
Sentiu que o mundo lhe desabava em cima:
-“Estás doido? É impossível! A mãe morrer? Nunca!”
Depois, numa voz quebrada:
-“Como? Quando?”
Ele ia dizendo, devagar:
-“Há duas noites. Não consegui encontrar-te antes. Foi de repente. Ninguém esperava. Uma crise de paludismo...”
Ela gritara-lhe ao telefone:
-“Não quero ouvir! Apanho o primeiro avião.”
E desligara, abruptamente. Não podia falar. Sentira-se de repente vulnerável. A mãe que ela julgara eterna como um anjo! Sem ela, tudo lhe podia acontecer. Quem a protegeria agora?
-“E a mãe? Quem a protegeu a ela!?”
Lembrara-se da carta que tinha recebido. Pedira auxílio e não a compreendera. “Lembranças terríveis”, dissera.
-“Alguém que vinha do passado para a destruir. Quem?!”
Devia ter partido logo, deixado tudo e corrido para o pé dela. Mas não o fizera. E chegara tarde demais, nem pudera assistir ao enterro...

Ouviu a porta da rua abrir-se nas suas costas e fechar-se outra vez, devagarinho. Estremeceu e voltou-se.
-Quem é? Ah! és tu, Gabriel! Assustaste-me!
-Não te queria assustar. Por que é que ainda estás acordada? Como te sentes?
-Ia-me deitar, mas desço um bocadinho para falar contigo.
Desceu as escadas, passou por ele e dirigiu-se ao salão. Gabriel começara a tirar a gabardine, o cachecol e sacudia a cabeça molhada. Os cabelos embranqueciam nas têmporas e olheiras escuras cercavam os olhos azuis. Joan acendera as luzes e, ajoelhada em frente da lareira, tentava reavivar o lume. Pouco a pouco, as chamas brilharam. Apoiava-se agora ao rebordo de mármore da lareira e ia bebendo o leite. Sentia-se melhor. Gostava de ver Gabriel. No fundo pesara-lhe a solidão e o silêncio da casa.
-Está a chover, ainda? Queres comer alguma coisa? -perguntou. A Mary deixou comida para ti. É só trazer o tabuleiro. Eu vou buscar, se quiseres...
-Não, obrigado, jantei em Brighton. Não chove, mas o nevoeiro é tão forte que se sente a humidade nos cabelos, no corpo. Talvez tome uma gota de whisky...
E sentou-se no maple de couro.
-Com gelo ou simples?
-Com gelo.
Como um autómata Joan preparou a bebida e levou-lha. Sentou-se no puff baixinho. Ficou a olhar para ele. O cabelo, que recordava de um louro escuro, estava cheio de fios brancos. Fixava os olhos claros na lareira. A pele flácida e as rugas davam-lhe um ar de palhaço triste. Teve pena dele.
-Tens a cabeça molhada. Aquece-te, não te vás constipar...
- Não faz mal.
E encolheu os ombros.
- Ouve, Gabriel, quero falar contigo. Preciso de falar contigo.
-Nunca quiseste falar comigo. Empurraste-me sempre. Não gostavas de mim.
-Tinha ciúmes de ti. Achava que a mãe devia ser só minha. E tu vivias com ela, todos os dias, enquanto eu estava longe. Sem ela...
-Não querias viver ao pé de nós. Fugias... Foste tu que quiseste ir para o colégio!
-Tens razão, fugia... Mas foi tão difícil voltar, viver aqui... Sabes que não me adaptei nunca, estranhei a terra, tinha frio!
Olhava as chamas, pensativa:
-Era tudo tão diferente do calor de África e da simplicidade dos meus amigos. Custou-me tanto quando cheguei cá... O colégio foi uma tentativa para entrar num mundo novo, metre-me lá dentro. Para me salvar, precisava de mergulhar de repente num sítio cheio de gente da minha idade, de ter amigos outra vez. Num colégio interno era mais fácil...
De repente, mudou de tom, angustiada:
-Ouve, Gabriel, tenho que saber!
-Saber o quê, Joan? Não há nada para saber. Tudo acabou e agora é tarde...
-Como é que a mãe morreu?
- Paludismo...
-Que estupidez! Não acredito... Por que é que não me chamaste, quando ainda estava viva? Ela tinha medo... Senti isso. Escreveu-mo! Podias ter telefonado antes! Há telefones para todo o mundo. Até para África, vê tu! Eu podia ter vindo!...
-Não valia a pena... Quando piorou, foi tão rápido, não chegavas a tempo. Talvez eu não me tivesse apercebido da gravidade. Conhecias a tua mãe, só se lamentava no limite da dor. Queixou-se de vómitos, suores, febre... Era malária... Ninguém percebeu que ela ia morrer.
-Não foi paludismo, Gabriel, a mãe foi envenenada! Ouve o que te digo: ela tinha medo!
-Como é que te veio essa ideia? Medo de quê? Não percebo... Ninguém pôs sequer a hipótese de não ter sido paludismo. Cólicas fortes, febre alta, suores... Teve tantas crises dessas durante toda a vida, tu lembras-te bem!
- Mas quem fez esse diagnóstico?
- Foi o que o Dr. Smith nos disse. Por que havia eu de pensar que ele estava enganado?
Gabriel levantara-se e passeava pela sala.
-Mas envenenada!? Que disparate!
-O Dr. Smith enganou-se! Que diabo de médico é ele? Cólicas fortes, suores pode ser muita coisa! São, por exemplo, os sintomas de um envenenamento! A mãe sabia quando era malária e tratava-se. Desta vez por que é que não se tratou? Por que é que morreu? Porquê? Porque não era malária e ela não podia fazer nada! Alguém a matou! Foi envenenada e tu sabes! Quem foi ? Tu...? Foste tu?!
Quase gritava. Levantara-se, chegara-se a ele e abanava-lhe as abas do casaco. Depois, sem força, encostou-se-lhe ao ombro a chorar, convulsivamente. Gabriel abraçou-a com força:
-Oh! Joan! Pobre Joan! Envenenada!... Mas como é que pode ser? Por quem? E porquê?
Afastou-se dela e continuou, olhando-a nos olhos:
-Eu? Está sossegada, não fui eu, Joan, não sejas parva! Não tinha razão nenhuma para a matar... Só perdia com a morte dela... O dinheiro, a parte dela passou para vocês. Eu tinha o meu trabalho, a Universidade. A galeria era dos dois, é certo... Não ganho nada com a sua morte. Em nenhum aspecto. Só perco...
Afastou-lhe os cabelos da cara e disse, com ternura:
-Outra razão? Ciúmes? A tua mãe só gostou do teu pai e nunca precisou de o substituir, muito menos comigo... Sabes que as mulheres não me atraem. A tua mãe casou comigo... enfim casámos para ter uma aparência de vida normal. Convinha aos dois, era uma forma de respeitabilidade. Uma mulher sozinha é sempre uma mulher sozinha. Protegíamo-nos um ao outro...
-E não gostavas dela?...
Joan olhava-o de lado, atenta.
-Gostar?... Só isso? É pouco...
Gabriel dirigiu-se à estante, escolheu um disco.
-A tua mãe adorava esta música. Conheces? A Appassionata, de Beethoven, tocada pelo Rubinstein. Foi o último recital dele, dedicado a Israel. Ouvia esta sonata vezes sem fim. E eu ouço-a agora. É o que me resta dela...
-E porquê especialmente esta gravação?
-É um óptimo executante, uma gravação perfeita... E sabes que a tua mãe era judia...
-Nunca pensei que desse grande importância a isso...
-Dava...
Gabriel voltara a sentar-se. Começou a falar devagar, fixando para as chamas da lareira.
-Perguntas se eu gostava dela... A Abigail... Admirava-a. Acho que a adorava mesmo... Appassionata. Ouço o disco constantemente e penso nela. Vibrante, cheia de paixão em tudo. Foi a mulher mais interessante que conheci na vida! Era uma amiga, que me protegia e me ajudava. A nossa relação era feita de respeito, cumplicidade, amizade. Podia contar com ela... Sabes o que isso significa para uma pessoa como eu?
-Como tu? Porquê? És uma pessoa como as outras...
-Com as minhas fragilidades?
- Todos temos as nossas fragilidades...
Sem a ouvir, Gabriel continuou:
- Ela era a minha segurança, o meu apoio...
Riu, amargamente.
-Além disso, eu tinha um estatuto!... Numa terra de província, quer dizer, em toda a parte, no fim de contas, o que conta são as aparências. Éramos casados, eu era casado! A maior parte das pessoas só liga a isso. O que os outros são por dentro, a verdade deles, não lhes interessa, nem a querem ver...Se reparares, toda a gente fala, fala... Todos querem é ouvir-se e ser ouvidos, falar de si, dos seus problemas, das suas dúvidas... O ego de cada um alarga-se para todos os lados...O “outro” não existe...
E acrescentou:
-Ou só para dizer mal, para magoar...
-Para que serve isso agora?... Palavras, palavras, palavras... Claro que tudo é egoísmo! Também sou uma céptica, não és só tu... Até amar é egoísmo! Uma forma de termos poder sobre o outro. É a absorção total do outro dentro de nós, abafando-o bem cá dentro, com medo que ele fuja e nos deixe mais sozinhos... O que é o ciúme? Isso. Claro que o outro não existe! Existimos nós! Para que é que o outro há-de querer respirar? Não lhe damos o nosso ar? O ar a que nós achamos que ele tem direito?, pensamos.
Olhou para ele:
- É difícil amar, não é?...
Gabriel olhava para ela, surpreendido. Joan estendeu-lhe a mão e disse, suavemente:
-Desculpa, interrompi-te!
Gabriel, como se retomasse o raciocínio anterior, disse:
-É isso... Poucas pessoas sabem ouvir, ou interessar-se pelos problemas dos outros! Mas a tua mãe ouvia.
Parou, comovido.
-Ouvia, apenas. Reservada, discreta, silenciosa... A sua presença acalmava e bastava uma palavra dela para te sentires bem. Não falava muito de si, não porque se escondesse, não... era antes uma forma de pudor, não sei explicar. Como se isso não fosse o mais importante...
-Eu sei isso muito bem, Gabriel... A mãe ouvia tudo o que dizíamos...
-Esquecia-se de si, calava-se. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor que li há pouco, sim, ela tinha essa superioridade! Ajudou-me, deu-me tanto... E perguntas-me se a amava...
-Assassinaram-na, Gabriel, e tu deixaste!
-Não, não acredito! Não pode ser!
Gabriel levantara a voz, quase gritava. Depois, falou-lhe baixinho, num tom mais doce, como que para a acalmar:
-Se o que dizes é verdade, como é que eu o podia evitar? Não me culpes...
Falava, sem saber o que dizer, como se fosse descobrindo o que pensava.
-Não me dei conta de nada... E assassinada, porquê? Não se mata sem um motivo, não achas?
-É isso que vou descobrir...Que temos que descobrir!
-Mas o quê, Joan? Há provas? De concreto, o que há? Temos que partir de algum sítio...
-Não tenho provas, é apenas uma intuição. Espera que o Michael chegue...
-O Michael? Avisaste-o?
- Sim, tu não lhe disseste nada e ele estava perto...
-Perdi o controle, estava desesperado. Eu, que costumo dominar-me, não era capaz de pensar... Tentei telefonar uma vez ao teu irmão, ninguém respondeu do número que tinha e desisti logo, confesso... Foi muito duro. Via-me sozinho. E, sem ela, estava completamente perdido!
E acrescentou, mais baixo, como se tomasse consciência do que dizia:
-Estou perdido...
Joan apertou-lhe o braço, como se quisesse animá-lo.
-Estamos todos no mesmo barco, Gabriel. Perdidos...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

John Le Carré, "Um homem muito procurado" (Dom Quixote, 2008): vale a pena ler!






Há muitos anos que não lia John Le Carré, mas encontrei no início deste ano à venda em Porto Côvo um livro dele que saíra há pouco: "Um homem muito procurado" ("A most wanted man", o título inglês talvez tenha pouco mais de subtileza), publicado pela Dom Quixote, em 2008, com uma bela tradução de Isabel Veríssimo.
Revoltou-me, fiquei indignada como certas vezes, quando era miúda, alguma coisa me chocava porque injusta e eu não a queria aceitar.
A velha injustiça, sempre pronta contra a inocência, até a bondade (ou boas intenções?) sempre castigada, ofendida, espezinhada. Indignada porque as pessoas sofrem. Porque há injustiças. Alguns sofrem e não deviam sofrer. As pessoas são iguais, seja onde for, têm direito a ser ouvidas, seja quem forem, ou isto será só utopia? Então, ainda bem que a utopia existe!
Habituada aos seus livros de espionagem mais "evidentes" como "O espião que veio do frio", "A casa da Rússia", "O espião perfeito", com a velha "cortina de ferro" os bons de um lado, os maus do outro e os que saltam de um lado para o outro, os contra-espiões, os transfugas, "traidores" para uns, "normais" para outros, este livro surpreendeu-me.
Este romance fala de assuntos mais próximos de nós, assuntos que nos dilaceram às vezes quando temos a preocupação de "perceber" ou de ser justos: quando é que um homem é culpado? Até que ponto é justificado entrar dentro da vida de alguém e destruí-la? Até que ponto tudo é permitido? Afinal os fins justificam os meios? É lícita a tortura, o desprezo pelo ser humano?
Ou, desde o 11 de Setembro, com a nova ideia do "eixo do mal", tudo é permitido? Ou foi sempre tudo permitido?
Talvez a utopia em que acreditamos hoje nos venha a salvar. Porque eu acredito que Obama é diferente e (utopicamente?) acredito que vai mudar muita coisa. Porque "não são todos iguais". Há quem faça "estradas" diferentes, conheça outros mundos e, por eles, fique marcado!

O que acontece a Issa não pode ter sido -apenas- estar no sítio errado, num momento errado?
Quem é Issa? Um terrorista, apanhado em Hamburgo, onde entrou clandestinamente uma noite, saído de uma prisão algures onde foi torturado sem saber porquê? Ou, apenas, o jovem russo que aparenta ser, magro, esfomeado, cheio de frio, com o seu sobretudo negro que nunca larga, e um saquinho ao pescoço com algum dinheiro?
E que procura desesperadamente uma pessoa, Tommy Brue, dono de um banco britânico, hoje em declínio, em Hamburgo.
Os serviços secretos de vários países investigam, espionagem e contra-espionagem jogam ao gato e ao rato com a vida do rato.
Terá razão a advogada alemã, uma jovem idealista que quer protegê-lo, e o vai defender legalmente?
Será verdade que, como sabem os serviços secretos alemães, é filho do coronel russo Karpov que, ao longo dos anos, criara uma conta super secreta (ilegal/legal) em Hamburgo que queria deixar ao filho? É isso, no fundo, que os serviços secretos procuram? O que está por detrás do coronel Karpov? Quem é a mãe de Issa?
E por que razão Melik (de nacionalidade turca) que recebe Issa em casa, por solidariedade e sem saber nada dele, acaba por ser considerado seu cúmplice e deixa de ter direito à nacionalidade alemã que ia "receber" nesse ano?
Só Annabel, Tommy Brue e os agentes secretos Erna Frey e Bachaman (que muito sabem do que está por detrás da super-reunião de espiões em Hamburgo) é que, arriscando a própria vida, tentam ajudar Issa porque acreditam que está inocente.
Livro cheio de acção, de suspense, até de humor, sem um momento de paragem, e que nos deixa no final um amrgo gosto na boca: e se ele estivesse inocente?
Acabamos o livro sem respostas e com muitas interrogações. Comovidos, revoltados, cheios de esperança.
A máquina, seja ela qual for -normalmente são outros homens, com pseudo- ideologias- trucida os homens, destrói neles a capacidade de sonhar, de acreditar ou de viver com dignidade, ou mesmo de viver apenas...
A máquina -ou os outros?- destrói em todos a vontade de justiça, o sentido do bem que existe em cada um enquanto criança e jovem, e que às vezes resiste toda a vida, mas que outras vezes se perde com a passagem do tempo: envelhecendo. E isto não é uma questão de idade...
Annabel, Issa, o inglês, Edna e Bachman, Melik e a mãe: John Le Carré fala deles com humanidade e quase com ternura. São pessoas que não esqueceremos.




Ilustrações:
1. fotografia de John Le Carré, fantástica
2. capa do CD (Guns) sobre um livro de Chandler
3. Bellini, S. Jorge e o dragão
4. Paolo Ucello, S. Jorge e o dragão

domingo, 23 de agosto de 2009

Yasunari Kawabata e os "Arco-íris" (Niji ikutabi, 1951)

Yasunari Kawabata



























Deslumbram-me os livros de Kawabata, pela sua sensibilidade. Leio-o há muito tempo, e foi a minha filha que me indicou, pela primeira vez, o seu nome e os "Racconti in un palmo di mano" (Contos na palma da mão, dos quais não creio que exista tradução em português e é pena...) que leio e releio, sem nunca me cansar e descobrindo sempre pequenas coisas importantes nos pequenos nadas de que fala.
Agora, foi ela, também, que me emprestou o seu "Arcobaleni" - Arco-íris- também em tradução italiana, de Lydia Origlia, extremamente bem feita e cuidada -mas disse-me logo:
"Tens que mo devolver..."
Sei que guarda, religiosamente, os livros de Kawabata.

Breve notícia: vida e obra de Kawabata
Nasce em 1899 em Osaka e morre em Zuschi, sucidando-se, durante um período de depressão, em 1972.
É o primeiro escritor japonês a ganhar -em 1968- o Prémio Nobel.

Muito jovem, foi marcado por acontecimentos familiares trágicos, e pela solidão, ficando órfão com três anos, passando então a ser criado pelos avós, no campo. Perdeu a avó com apenas sete anos, a única irmã com nove anos, vive com o avô, cego, que morre quando ele tem catorze.
Criança, desejava ser pintor mas depois de ter escrito - e publicado- alguns contos ainda no liceu, decidiu ser escritor.
Entre as primeiras obras de Kawabata, temos “A bailarina de Izu” (1926) no qual se contam as andanças e a educação sentimental de um estudante universitário na península de Izu e dos seu encontro com uma companhia de artistas ambulantes.
A seguir, surgem as primeiras antologias dos “Contos na palma da mão” (Tanagokoro no Shôsetsu), rápidos esboços de vida, muitas vezes apenas poucas páginas, em que o autor consegue exprimir-se com um estilo que representa a marca do seu “estilo”: lacónico, seco e cristalino.



Durante a sua vida, Kawabata escreve mais de cem destes contos breves, forma literária a que ficou especialmente ligado afectivamente.
A primeira obra de fôlego é “A Banda escarlate de Asakusa”. Vivendo em Asakusa, um bairro popular de Tokyo, centro de divertimento popular em que se misturavam elementos da tradição japonesa (o templo do Sensoji, as festas tradicionais anuais) à distracção moderna que chegava do ocidente: cinema, barracas de tiro, salas de baile –do jazz ao charleston, Kawabata tentou reproduzir esta atmosfera única.

É uma narrativa fragmentária e voluntariamente des-estruturada. Usa vários tipos de estilo, do sketch à crónica jornalística, do conto na primeira pessoa ao romance realista, da “canzonetta” popular à citação culta...
Em 1929, o escritor japonês liga-se à revista “Literatura” que dá a conhecer, no Japão, escritores ocidentais do século XX, como Proust, Henry James, André Gide, James Joyce, Valéry e a literatura psicologista, a análise do inconsciente (the stream of consciousness) –sobretudo de “À la recherche du pemps perdu”, de Proust, ou de “Ulysses”, de Joyce, que muito o interessam e de que sofre a influência.
Começa então a série de contos, publicados nessa e noutras revistas, quase como folhetins, esboços de momentos, instantes, nos quais a vida quotidiana, a vida do universo, são fraccionadas, acontecimento por acontecimento, emoção por emoção procurando descer fundo na análise psicológica.
Por detrás da fachada do quotidiano, há a cristalização de episódios, sensações e mesmo deformações da existência humana.

Nos seus romances do pós-guerra, segue o mesmo ritmo de segmentos justapostos.
E n' O Mestre de Go (Meijin, 1952), Gentes de Tokyo -como não recordar o título do livro de contos, Gentes de Dublin de Joyce?- (1954-55); A casa das belas adormecidas (1960-61), Beleza e tristeza (1961-63), Kyoto ( 1961-62) -em todos eles persegue continuamente –e continuamente perde- o seu eterno sonho de um romance dotado das qualidades intrínsecas da estrutura do romance clássico...

Outros títulos:
"Primeira neve no monte Fuji", "Terra de Neve" (Yukiguri), (na edição brasileira, O país das neves) que escreve de 1935-37, "Mil Grous", série que inclui "Nuvens de pássaros brancos" e "O som da montanha" (1949) -e de que vi hoje mesmo uma tradução portuguesa da Dom Quixote, saída neste mês de Agosto, o que muito me alegrou-, "O mestre de Go" (Meijin) que o autor considera a sua obra mais importante, e "Arco-íris" (1951), de que vos falo hoje.

Comecei a ler Arco-íris (Niji ikutabi) e fiquei, uma vez mais, presa às palavras simples, às situações também, aparentemente, banais, e na verdade complexas, que o autor apresenta. Sempre os sentimentos: o amor, a recusa, a lealdade, a dificuldade do amor, a dificuldade de dar, o sofrimento, querer dar e não saber como.
Novela, em vários capítulos completamente independentes uns dos outros, de modo que podem ser lidos como pequenos contos, em que tudo e todos se cruzam e se reencontram, de forma quase banal, e que nos fala da vida das três filhas do arquitecto Mizuhara, filhas de três mulheres diferentes.
Por que razão Mimoko, a mais velha, procura destruir-se afectivamente? Por que razão Asako vai secretamente à procura da terceira irmã? Por que razão o pai lhes escondeu esta terceira filha e a sua mãe?
Tudo começa assim:

Um dia, num comboio de Tóquio para Kyoto, a jovem Asako, a segunda filha, a única saída de um "casamento", agora órfã, viaja, no mesmo compartimento, com um homem jovem que, a dada altura, muda as fraldas à filhinha de meses e lhe explica que a mãe vive em Kyoto e ele vai de tempos a tempos mostrar-lhe a filha.
Mais tarde tudo será explicado e dará origem a um "encontro /re-encontro".

Não resisto a transcrever o início deste maravilhoso livro:










Capítulo I



“Asako viu um arco-íris formar-se na margem oposta do lago Biwa.
O comboio tinha passado em Hikone e avizinhava-se de Maibara. Como muitas vezes acontece no fim do ano, ia meio vazio.
Quando se formara o arco-íris? Distraída, a contemplar a superfície do lago, Asako tinha a impressão de que surgira de repente.
O homem sentado em frente dela também se deu conta do arcoíris.
“Chiiko, Chiiko, olha o arcoíris! O arcoíris!”, exclamou ele, erguendo a criança que tinha nos braços e chegando-a à janela.
Desde que partira de Kyoto, Asako estava sentada num compartimento de quatro lugares diante daquele homem. O homem viajava com uma recém-nascida. Eram, pois, três.
Asako estava sentada perto da janela. O homem do lado do corredor.
Quando saíram do túnel de Higashiyama, ele deitara o bébé no assento, de modo a que estivesse com a cabeça apoiada nos joelhos dele, como numa almofada.
"Alto de mais, " murmurou dobrando o casaco. A criança estava tapada com um cobertorzinho de lã suave, com florzinhas. Agitava os braços e olhava para o pai. Ainda antes de subir para o comboio, Asako notara que o homem viajava sozinho com a menina. Sentara-se em frente dele imaginando que ia ter de o ajudar.
O homem, continuando a segurar a criança à janela e a motrar-lhe o arco-íris, disse a Asako:
“São raros os arco-íris no Inverno."
“Ah, sim?"
Tinha-lhe falado de improviso e Asako ficara embaraçada.
“Não, não é verdade. Não são assim tão raros", corrigiu o homem. "Já chegámos a Maibara. Uma vez, na linha para Horkuriku, depois de Maibara -nessa altura fazia o percurso contrário: de Kanazawa a Maibari e dali para Kyoto- vi pela janela imensos arco-íris. Na linha do Horkuriko não são raros. E eram todos pequeninos e gráceis. À saída de um túnel apareceu um pequeno arco-íris numa colina, depois viu-se o mar com outro arco-íris da colina à praia. Foi há três ou quatro anos, não recordo em que mês, mas era Inverno, estava frio e em Kanazawa caía uma neve como poeira. "
Asako perguntou a si própria se nessa altura o homem também viajava com a menina ao colo. Mas há três ou quatro anos, a criança ainda não tinha nascido. Deu-lhe vontade de rir.
“Quando se vê um arco-íris tem-se a impressão de estarmos entre a Primavera e o Verão.”
“Sim, todas estas cores não são invernais.”
"Vai para Kanazawa?"
"Hoje?"
"Sim."
"Não, volto para Tóquio."
“Acha que ela consegue ver o arco-íris? Não será inútil mostrar-lho?”, perguntou Asako. Era uma dúvida que lhe aparecera há uns minutos.
“Quem sabe?”, reflectiu alto o homem, “é difícil que o distinga, quer dizer, é impossível.”
“Mas vê-o, não?”
“Sim, vê. Mas aos recém-nascidos não interessa o que está longe.”
(...)
“Penso que a sua menina é feliz por viajar tão pequenina com um pai que lhe mostra o arco-íris”.
“Mas não se vai recordar dele.”
“Será o senhor a lembrar-lho.”
“Sim, hei-de recordar-lho. Quando for grande, ela vai ter que viajar muito fazendo este percurso.”
A menina olhava para Asako e sorria.
“Mas quem sabe se lhe acontecerá voltar a ver um arco-íris no lago Biwa!” e o homem acrescentou, logo:


“Disse há pouco a palavra “feliz”. O ano está a acabar e para nós adultos o arco-íris é um auspício de feliciade. Talvez nos espere um ano feliz.”
Asako era da mesma opinião.
Desde que vira o arco-íris tinha vontade de atraversar para o lado de lá. Seria maravilhoso visitar na outra margem as terrinhas do arco-íris. Ou, talvez mais real, viajar ao longo da margem que tinha um naquele momento. Asako viajava bastante naquele percurso do comboio mas nunca se pusera a imaginar nada sobre a margem do lado de lá do lago Biwa.

O arco-íris parecia interrompido. Via-se uma extremidade mas o cume estava coberto por nuvens.
No céu, nuvens de neve escureciam o lago. Assentavam na margem oposta e desfaziam-e em baixo, deixando reflexos de luz, dos quais se filtravam, pousando na água, os fracos raios de sol.
A Asako parecia que o arco-íris se estendia para o céu, chamando as nuvens melancolicamente. Quanto mais o fixava, mais tinha essa impressão. O arco-íris desapareceu antes que chegassem a Maibara".


Meses mais tarde, Asako adoece com uma pneumonia. E, no capítulo XI, fala-se outra vez do arco-íris:


"Era já Outono quando Asako pôde sair da clínica.
Todos os dias tinha contemplado um arco-íris pintado que pendurara na parede em frente da cama. Era a reprodução a cores da Primavera de Millet (*).
Assim que pudera levantar-se, fora ao corredor telefonar ao pai e tinha-lhe pedido:
"Queria que me trouxesses ao menos algum livro de arte para ir olhando, aqui. Por favor, traz-me aquele livro que tem uma colecção dos quadros de Takeji Fijishima".

"O volume grosso? Está bem, mas olha que é pesado: não podes folheá-lo enquanto estiveres deitada. Por que é que o queres ver?"
"Interessa-me um arco-íris pintado num dos seus quadros."
"Um arco-íris pintado? Percebi bem?"

"Sim, um arco-íris sobre o lago"
"Sim. Mas temos em casa também a reprodução de uma pintura de Millet (*), não te lembras?"
"Uma pintura de Millet? Não, não me lembro."
"Deve estar aqui nalgum sítio, vou ver se o encontro e levo-to com o livro sobre Fijishima."
Quando Asako recebeu o livro, leu que a tal pintura de Fijishima (**) com o arco-íris se intitulava "Calma" e tinha sido exposto em 1916 numa Mostra organizada pelo Ministério da Educação quando, naturalmente, Asako ainda não tinha nascido."



O arco-íris tem a sua importância, como se verá, e o motivo porque Asako não se lembra do quadro de Millet, que estivera sempre no quarto de sua mãe, agora morta, também.









(*) Jean-François Millet (4 de Outubro, 1814 – 20 de Janeiro, 1875) Pintor romântico e um dos fundadores da Escola de Barbizon na França rural. É conhecido como percursor do realismo, pelas suas representações de trabalhadores rurais.
Junto com Courbet, Millet foi um dos principais representantes do realismo europeu surgido em meados do século XIX. Sua obra foi uma resposta à estética romântica, de gostos um tanto orientais e exóticos, e deu forma à realidade circundante, sobretudo a das classes trabalhadoras.
Millet era filho de um latifundiário, nascido na vila de Gruchy, em La Hague, na Normandia.


Não consegui o quadro de Fujishima, com o arco-íris, apenas esta paisagem de lago.

(**) Takeji Fujishima was born in September 1867 in the city of Kagoshima as the third son of a retainer of the lord of the Satsuma (Kagoshima) Fief. He entered in 1882 the Kagoshima Middle School, while learning brushwork techniques from Togaku Hirayama, an artist from his hometown. In 1884, Fujishima went to Tokyo, where he became a pupil of Gyokusho Kawabata and studied Japanese traditional painting.
ILustrações:


1/2. retratos de Kawabata
3. capa da edição italiana de "Arco-íris" (Arcobaleni)
4. capa de "Racconti in un palmo di mano" edição italiana, 2º volume
5. capa dos "Contos da palma da mão" (Racconti in un palmo di mano) primeira recolha de contos
6. Jean-François Millet, Primavera
7. Takeji Fujishima, Paisagem com lago

sábado, 22 de agosto de 2009

Romance policial: novo capítulo de "os Olhos de Jade"






















CAPÍTULO 4

Joan foi até à janela e ficou a olhar para fora, absorta. Tinha desabafado e era como se tivesse ficado vazia, desinteressada das consequências do que dissera. O céu escurecia e uma ligeira névoa ia cobrindo os arbustos e as árvores despidas do jardim. Algumas folhas, cor de cobre, revolteavam ainda e caíam no chão, devagar.
-“Vai chover”, pensou.
Imaginou os campos verdes lá em baixo, na estrada para Arundel, a serpentear entre os tufos de árvores esguias, com os troncos invernais, cinzentos e sem folhas.
Alice observava-a, calada, mas tinha nos olhos um brilho intenso, como se pensasse nalguma coisa e a não quisesse revelar. De repente, disse:
- Joan, quero que saibas que estou ao pé de ti e que vou fazer tudo para te ajudar. Basta que digas o que precisas. Sinto-me muito sozinha...

Hesitou, como calculando se valia a pena continuar:

- Hoje penso que o Stephen não tem muito que ver comigo. Se é que alguma vez teve... As outras ficaram caladas. Pareciam surpreendidas.
- Tantos anos de vida em comum e vejo que nada sei dele. Aceitei-o, deslumbrada com a pessoa desinibida, extrovertida, que ele era. Era muito mais velho, dava-me uma sensação de segurança... Voltou a parar, hesitante. Custava-lhe abrir-se?

- Sim, vivi numa bola de vidro, fechando os olhos ao resto, nunca me importei... Estava a pensar: será que me deixei seduzir por uma pessoa sem escrúpulos?...
-Sem escrúpulos? Alice! Porquê?...
Emily protestara, espantada.
-E por que não? Ignoro de onde vem o dinheiro...Descobri-me rica, com objectos e roupas dispendiosas, e não sei a origem desse dinheiro. Perturba-me pensar nisso, neste momento, a verdade é que nunca me preocupei... É terrível pormo-nos a pensar... Uma coisa arrasta a outra...
Interrompeu-se, e ficou de boca aberta. Tinha falado como em transe. Helen afastou-se da janela, e tossiu, pouco à vontade. Emily tinha os olhos baixos e ia mexendo nos anéis.
-Enfim, é assim...
E continuou, decidida, encolhendo os ombros:
-Estou a falar demais, não é? Não sei o que me aconteceu, não tenho o hábito de me andar a queixar. Enfim, só queria que soubesses que sou tua amiga, Joan...
-É normal que fales de ti. Ainda bem que o fazes! Qual é o espanto? Todas falamos de nós...
Helen procurara quebrar o mal-estar que sentia, dizendo palavras. Alice continuou, como se não a tivesse ouvido.
-Tudo é mais complicado do que parece na vida... Por que é que se procuram certas pessoas? Dois estranhos, eu e ele. Seres tão diferentes. Afastámo-nos, e parecia que estávamos tão perto. O que é que nos uniu?
Tirou outro cigarro do maço e acendeu-o, abrindo o isqueiro, bruscamente, com um gesto seco.
-Alice...
Joan falava como se despertasse de um sonho. Não ouvira o desabafo dela, e sentiu-se mal. Chegou-se ao pé dela e disse:
-Desculpa, não estava a dar atenção...
-Oh! Não faz mal. Ouvimos tão pouco os outros, não é? Estou habituada, sabes? Normalmente não falo. O Stephen fala o tempo todo. Faz-me sentir insignificante. Se eu desaparecesse da face da terra, era uma coisa perfeitamente irrelevante. Sou um pequeno pormenor à superfície da terra...
E riu-se. Emily quase deu um salto do seu canto no sofá, a protestar:
-Estás parva?! Tu, um pormenor irrelevante? Que ideia!
-Sei muito bem o que digo, Emily. Para que é que eu sirvo? A Abigail faz-nos falta a todas, deixou-nos inconsoláveis, desorientadas... Mas eu? Desaparecia do mapa e era como se não tivesse acontecido nada...
E virando-se para Joan:
-Tu, Joan, sei que não pertences a esse tipo de pessoas egoístas. Sais à tua mãe, ela ouvia...Quero ajudar-te! Só isso...
Hesitou e continuou:
-Ou ajudar-me a mim, fazendo qualquer coisa por ti?
Alice pronunciara baixinho a última frase como se falasse apenas para si.

- Obrigada, Alice. Joan levantara-se e pousara-lhe a mão devagarinho no braço.

Helen, incomodada, foi à janela, depois passeou pela sala e começou a falar, agitando os braços e deitando cinzas de cigarro por toda a parte.
-E o teu pai, Joan? Que notícias tens dele? Nós não sabemos nada. É um mistério completo. O que faz, no meio disto tudo? Ainda é vivo, suponho...
Procurara outra conversa, custava-lhe ver a fragilidade de Alice.
-O meu pai?!...Desapareceu na bruma. Como os gorilas...
Ironizava mas a expressão dos olhos era séria e sentia-se amargura na voz.
-Não sejas assim! És tão severa com o teu pai!, protestou Emily.
-Não sou. Procuro apenas ser lúcida, objectiva. Eu tinha treze anos, o Michael dez, e ele foi-se embora. Abandonou-nos! Porquê? Outra mulher... Uma pretinha, como tu disseste!
- Eu?, espantou-se Helen.
- Não tem importância. Sei que andava lá por casa, muito bonita, dizia a mãe. Lembro-me dela vagamente. Ou não me quero lembrar... Acho que o meu pai só pensava nisso...
-Como é que sabes? És injusta! Ele amava a tua mãe!
Emily mexia-se no sofá e com a mão despenteava a franja de cabelos ruivos. Tinha os olhos brilhantes.
-Amava-a, amou-a sempre!, insistiu.
-Amava? É possível...Para mim, acabou... Nunca me escreveu, não quis saber quem é que eu era, se sofria... Está morto há muito tempo...
Afastou-se de Alice e voltou à janela da sala.
-Todos vamos desenvolvendo formas de egoísmo, não é? E arranjamos sempre desculpas... Por que é que eu não hei-de ser egoísta também?
Continuou, baixando a voz:
-O pior é que ainda hoje sofro de abandono. Eu precisava dele...
Parou e respirou fundo, sacudindo a cabeça.
-Mas neste momento não é nele que penso, nem em mim. O que me revolta é a minha mãe ter morrido! Revolto-me! Não aceito! Pensar que ela foi assassinada é-me insuportável! Não posso ficar parada, a olhar. Tenho que encontrar quem a matou e fazê-lo pagar!
Soluçou, enquanto dizia:
- E vai pagar!
-Calma, Joan. Custa-me pensar que a Abigail foi assassinada, mas percebo a tua raiva. Vou ajudar-te!
Alice chegara-se a ela e agarrava-lhe o rosto com as duas mãos, fixando-a nos olhos.
-Eu quero ajudar-te, ouviste? -insistiu.
Depois, foi encostar-se à pedra da lareira, de braços cruzados, de costas para as chamas, fitando as outras.
-E vocês não dizem nada? Falem!
Respirava com dificuldade.
-Não tens para aí uma bebida, Joan? Qualquer coisa mais forte que o chá...! Sinto-me mal...
Joan sobressaltou-se:
-Sentes-te mal? Só tenho estado preocupada comigo! É imperdoável... Alice estendeu a mão, acalmando-a:
-Não é nada, já passou!
-Eu também te vou ajudar! -exclamou Helen. É evidente! E a Emily também fará o que puder, não é? Diz qualquer coisa, Emily! Fala!
Emily, muito pálida, disse:
-É evidente que sim! Mas o quê, exactamente? O que é que nós podemos fazer?
-Pensar. Pôr as rodinhas a trabalhar! Recordar tudo, -explicou Alice, devagar. Não achas, Joan? Pensar nos mais pequenos pormenores. O jantar, por exemplo, foi importante!
-És capaz de ter razão! No jantar...
Emily suspirava. E acrescentou:
-Falou do James Bond... Em espiões, não foi?
Helen irritou-se:
-Por favor, Emily, não comeces a inventar! Espiões, a que propósito?!
-Sim, sim, falou dum filme! Ela referiu qualquer coisa sobre os diamantes. Nada dura para sempre... Só os diamantes...
-“Only diamonds are forever”... A Emily tem razão, é um filme do James Bond!
E Alice acrescentou, pensativa:
-Lembro-me disso. O que quereria dizer? Que tudo é efémero...
Joan olhava para elas, com um ar perdido.
-Pensar, sim, têm razão... Mas estou tão cansada...
-Pois estás, minha querida. Tens que descansar!, disse Emily. Eu dou-te umas gotinhas ligeiras para dormires melhor. Trago-as sempre na mala...
E chegou-se a Joan, solícita.
-Vou esperar que o Michael chegue, tenho tanta confiança nele! Cheguei ao limite dos nervos... Não consigo dormir há que tempos... Desde que soube da mãe... Sim, Emily, talvez as tuas gotinhas...
-Queres que eu fique contigo esta noite? Podíamos falar e dormias mais sossegada. Para não te sentires tão sozinha...
Helen tinha parado também em frente dela e fazia-lhe festas nos cabelos.
-Não, obrigada, fico bem sozinha. Aliás, não estou sozinha... A Mary só sai depois do jantar e o Gabriel à noite está em casa. E o Zurigo dorme na casa do jardim.
Suspirou e disse com ternura:
-E já falta pouco para chegar o Michael, o beduíno-do-deserto, como lhe chamava a mãe. Era o seu Lawrence das Arábias, sempre em aventuras, trocas e vendas... Eu era a princezinha...
A noite caíra e o nevoeiro invadia tudo. Só a luz amarela do lampião, frente à janela, brilhava. Joan olhava, como se a escuridão a atraísse. De repente, estremeceu.
-Está ali alguém!...
E apontava para o vidro da janela.
-Que disparate! Não tiras os olhos do jardim... São os teus nervos, protestou Emily, tens de dormir bem esta noite!
-Mas eu vi um rosto! Não sei, não tenho a certeza... Uma sombra...
O jardim estava vazio. Encolheu os ombros, e voltou a sentar-se.
-Sim, é um disparate! Foi com certeza impressão minha. Não se preocupem, estou bem. Muito nervosa...
E acrescentou:
-É tarde... Querem jantar?...Está tudo pronto...
Não havia convicção no tom com que as convidava. Preferia que se fossem embora, queria ficar só. Elas acabaram por se despedir.
Começara a chuviscar e o nevoeiro adensava-se. Helen abriu a porta do carro, sentou-se e ligou o motor. Emily entrou do outro lado. Silenciosas, apreensivas, não eram capazes de dizer nada. Só Alice procurava reagir e retomara a sua ironia. Entrou no Aston Martin prateado, virou-se para Joan e disse a rir:
-O carro à James Bond já tenho, agora é só entrar em acção!... Anima-te!
Joan sorriu, agitou a mão e ficou a olhar até os carros desaparecerem na curva. Fechou a porta, ficou com as mãos apoiadas na madeira gelada, a cabeça inclinada sobre o peito e os cabelos em cima dos olhos. Não conseguia parar de tremer.


Mary vinha pelo corredor. Era uma mulher de meia idade, baixa e magra, com cabelos deslavados, que precisavam de ser pintados. Tinha uns olhos claros, e uma expressão cansada e boa. Pousou-lhe a mão no ombro:
-Joan, sente-se bem? Quer que lhe traga o jantar, ou espera pelo senhor Gabriel?
-Traga, Mary, janto já. Não sei a que horas virá o Gabriel e quero deitar-me cedo, estou estoirada...
Jantou sozinha, ao fundo da mesa enorme, olhando as velas vermelhas a arder. Perdia-se nos pensamentos. Sombras projectavam-se na parede e ela tremia. Tinha frio. Quando acabou de comer, chamou Mary:
-Pode tirar a mesa e ir para casa, eu trato do resto.
Pensou outra vez que precisava era de estar consigo própria. Levantou-se da mesa e disse, preocupada:
-Mary, quer que a leve? É noite, não gosto que ande por aí sozinha, com o que aconteceu... -Joan, por amor de Deus, não se preocupe! Vou sempre sozinha a esta hora. É descer a azinhaga! Tenho a bicicleta, é um instante... Já fechei as portadas de madeira das janelas.
- Está bem.
- Olhe, Joan, deixo uma chave da porta da cozinha, na terrina da mesa da entrada. Eu levo a outra. Havia uma terceira chave, mas há uns tempos que não a vejo. Deve andar por aí. Até amanhã, Joan. Veja lá se dorme bem.
-Obrigada, vou tentar. Boa noite, Mary.
Mas fora ficando, sentada na sala, à espera que o tempo passasse.

Ilustrações:

1. Zianaida Serebriakova, jovem mulher (não resisti a "roubar" este rosto da Serebriakova, para a minha personagem, Joan...)

2. Hooper (outro "roubo", agora ao maravilhoso Hooper, que tem imagens para todas as circunstâncias: da solidão à ... solidão)