sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Mais um capítulo de "Os Olhos de Jade", capítulo 5

http://www.youtube.com/watch?v=XPP1pgIFbW8
Sonata de Beethoven, "Appassionata",
interpretação de Arthur Rubinstein


CAPÍTULO 5


Subia os degraus devagar apoiada ao corrimão. Lá fora, o vento soprava, ouvia as rajadas de chuva baterem nos vidros. Imaginou as árvores agitarem-se, ouvia as portadas de madeira das janelas rangerem. Estava ali sozinha.
Sentia-se muito cansada. Equilibrava um copo de leite quente na mão direita e ia olhando para os quadros da parede ao lado, pinturas modernas que a mãe comprara, um pouco mais acima dois quadros de pintores africanos naïfs.
-" Teria feito bem em ter falado daquela maneira?"
A verdade é que se sentia aliviada. Tirara um peso enorme do peito. Dividira-o com elas.
-“Não eram as melhores amigas da mãe?...”
Deviam querer saber o que se passara ao certo. Não se falara de assassínio na altura da morte. Todos tinham pensado que a causa da morte fosse paludismo.
-“Paludismo?! Por que teimo em dizer que não?!... Porque sei que não foi!”
Ninguém se interrogara, ninguém duvidara. Mas ela não aceitara tal explicação, desde o princípio. Lembrava-se do momento em que recebera a notícia, em Abidjan. Tinha sido um choque ouvir a voz de Gabriel:
-“Tenho que te dizer uma coisa horrível, desculpa ser brutal... A tua mãe morreu.”
Sentiu que o mundo lhe desabava em cima:
-“Estás doido? É impossível! A mãe morrer? Nunca!”
Depois, numa voz quebrada:
-“Como? Quando?”
Ele ia dizendo, devagar:
-“Há duas noites. Não consegui encontrar-te antes. Foi de repente. Ninguém esperava. Uma crise de paludismo...”
Ela gritara-lhe ao telefone:
-“Não quero ouvir! Apanho o primeiro avião.”
E desligara, abruptamente. Não podia falar. Sentira-se de repente vulnerável. A mãe que ela julgara eterna como um anjo! Sem ela, tudo lhe podia acontecer. Quem a protegeria agora?
-“E a mãe? Quem a protegeu a ela!?”
Lembrara-se da carta que tinha recebido. Pedira auxílio e não a compreendera. “Lembranças terríveis”, dissera.
-“Alguém que vinha do passado para a destruir. Quem?!”
Devia ter partido logo, deixado tudo e corrido para o pé dela. Mas não o fizera. E chegara tarde demais, nem pudera assistir ao enterro...

Ouviu a porta da rua abrir-se nas suas costas e fechar-se outra vez, devagarinho. Estremeceu e voltou-se.
-Quem é? Ah! és tu, Gabriel! Assustaste-me!
-Não te queria assustar. Por que é que ainda estás acordada? Como te sentes?
-Ia-me deitar, mas desço um bocadinho para falar contigo.
Desceu as escadas, passou por ele e dirigiu-se ao salão. Gabriel começara a tirar a gabardine, o cachecol e sacudia a cabeça molhada. Os cabelos embranqueciam nas têmporas e olheiras escuras cercavam os olhos azuis. Joan acendera as luzes e, ajoelhada em frente da lareira, tentava reavivar o lume. Pouco a pouco, as chamas brilharam. Apoiava-se agora ao rebordo de mármore da lareira e ia bebendo o leite. Sentia-se melhor. Gostava de ver Gabriel. No fundo pesara-lhe a solidão e o silêncio da casa.
-Está a chover, ainda? Queres comer alguma coisa? -perguntou. A Mary deixou comida para ti. É só trazer o tabuleiro. Eu vou buscar, se quiseres...
-Não, obrigado, jantei em Brighton. Não chove, mas o nevoeiro é tão forte que se sente a humidade nos cabelos, no corpo. Talvez tome uma gota de whisky...
E sentou-se no maple de couro.
-Com gelo ou simples?
-Com gelo.
Como um autómata Joan preparou a bebida e levou-lha. Sentou-se no puff baixinho. Ficou a olhar para ele. O cabelo, que recordava de um louro escuro, estava cheio de fios brancos. Fixava os olhos claros na lareira. A pele flácida e as rugas davam-lhe um ar de palhaço triste. Teve pena dele.
-Tens a cabeça molhada. Aquece-te, não te vás constipar...
- Não faz mal.
E encolheu os ombros.
- Ouve, Gabriel, quero falar contigo. Preciso de falar contigo.
-Nunca quiseste falar comigo. Empurraste-me sempre. Não gostavas de mim.
-Tinha ciúmes de ti. Achava que a mãe devia ser só minha. E tu vivias com ela, todos os dias, enquanto eu estava longe. Sem ela...
-Não querias viver ao pé de nós. Fugias... Foste tu que quiseste ir para o colégio!
-Tens razão, fugia... Mas foi tão difícil voltar, viver aqui... Sabes que não me adaptei nunca, estranhei a terra, tinha frio!
Olhava as chamas, pensativa:
-Era tudo tão diferente do calor de África e da simplicidade dos meus amigos. Custou-me tanto quando cheguei cá... O colégio foi uma tentativa para entrar num mundo novo, metre-me lá dentro. Para me salvar, precisava de mergulhar de repente num sítio cheio de gente da minha idade, de ter amigos outra vez. Num colégio interno era mais fácil...
De repente, mudou de tom, angustiada:
-Ouve, Gabriel, tenho que saber!
-Saber o quê, Joan? Não há nada para saber. Tudo acabou e agora é tarde...
-Como é que a mãe morreu?
- Paludismo...
-Que estupidez! Não acredito... Por que é que não me chamaste, quando ainda estava viva? Ela tinha medo... Senti isso. Escreveu-mo! Podias ter telefonado antes! Há telefones para todo o mundo. Até para África, vê tu! Eu podia ter vindo!...
-Não valia a pena... Quando piorou, foi tão rápido, não chegavas a tempo. Talvez eu não me tivesse apercebido da gravidade. Conhecias a tua mãe, só se lamentava no limite da dor. Queixou-se de vómitos, suores, febre... Era malária... Ninguém percebeu que ela ia morrer.
-Não foi paludismo, Gabriel, a mãe foi envenenada! Ouve o que te digo: ela tinha medo!
-Como é que te veio essa ideia? Medo de quê? Não percebo... Ninguém pôs sequer a hipótese de não ter sido paludismo. Cólicas fortes, febre alta, suores... Teve tantas crises dessas durante toda a vida, tu lembras-te bem!
- Mas quem fez esse diagnóstico?
- Foi o que o Dr. Smith nos disse. Por que havia eu de pensar que ele estava enganado?
Gabriel levantara-se e passeava pela sala.
-Mas envenenada!? Que disparate!
-O Dr. Smith enganou-se! Que diabo de médico é ele? Cólicas fortes, suores pode ser muita coisa! São, por exemplo, os sintomas de um envenenamento! A mãe sabia quando era malária e tratava-se. Desta vez por que é que não se tratou? Por que é que morreu? Porquê? Porque não era malária e ela não podia fazer nada! Alguém a matou! Foi envenenada e tu sabes! Quem foi ? Tu...? Foste tu?!
Quase gritava. Levantara-se, chegara-se a ele e abanava-lhe as abas do casaco. Depois, sem força, encostou-se-lhe ao ombro a chorar, convulsivamente. Gabriel abraçou-a com força:
-Oh! Joan! Pobre Joan! Envenenada!... Mas como é que pode ser? Por quem? E porquê?
Afastou-se dela e continuou, olhando-a nos olhos:
-Eu? Está sossegada, não fui eu, Joan, não sejas parva! Não tinha razão nenhuma para a matar... Só perdia com a morte dela... O dinheiro, a parte dela passou para vocês. Eu tinha o meu trabalho, a Universidade. A galeria era dos dois, é certo... Não ganho nada com a sua morte. Em nenhum aspecto. Só perco...
Afastou-lhe os cabelos da cara e disse, com ternura:
-Outra razão? Ciúmes? A tua mãe só gostou do teu pai e nunca precisou de o substituir, muito menos comigo... Sabes que as mulheres não me atraem. A tua mãe casou comigo... enfim casámos para ter uma aparência de vida normal. Convinha aos dois, era uma forma de respeitabilidade. Uma mulher sozinha é sempre uma mulher sozinha. Protegíamo-nos um ao outro...
-E não gostavas dela?...
Joan olhava-o de lado, atenta.
-Gostar?... Só isso? É pouco...
Gabriel dirigiu-se à estante, escolheu um disco.
-A tua mãe adorava esta música. Conheces? A Appassionata, de Beethoven, tocada pelo Rubinstein. Foi o último recital dele, dedicado a Israel. Ouvia esta sonata vezes sem fim. E eu ouço-a agora. É o que me resta dela...
-E porquê especialmente esta gravação?
-É um óptimo executante, uma gravação perfeita... E sabes que a tua mãe era judia...
-Nunca pensei que desse grande importância a isso...
-Dava...
Gabriel voltara a sentar-se. Começou a falar devagar, fixando para as chamas da lareira.
-Perguntas se eu gostava dela... A Abigail... Admirava-a. Acho que a adorava mesmo... Appassionata. Ouço o disco constantemente e penso nela. Vibrante, cheia de paixão em tudo. Foi a mulher mais interessante que conheci na vida! Era uma amiga, que me protegia e me ajudava. A nossa relação era feita de respeito, cumplicidade, amizade. Podia contar com ela... Sabes o que isso significa para uma pessoa como eu?
-Como tu? Porquê? És uma pessoa como as outras...
-Com as minhas fragilidades?
- Todos temos as nossas fragilidades...
Sem a ouvir, Gabriel continuou:
- Ela era a minha segurança, o meu apoio...
Riu, amargamente.
-Além disso, eu tinha um estatuto!... Numa terra de província, quer dizer, em toda a parte, no fim de contas, o que conta são as aparências. Éramos casados, eu era casado! A maior parte das pessoas só liga a isso. O que os outros são por dentro, a verdade deles, não lhes interessa, nem a querem ver...Se reparares, toda a gente fala, fala... Todos querem é ouvir-se e ser ouvidos, falar de si, dos seus problemas, das suas dúvidas... O ego de cada um alarga-se para todos os lados...O “outro” não existe...
E acrescentou:
-Ou só para dizer mal, para magoar...
-Para que serve isso agora?... Palavras, palavras, palavras... Claro que tudo é egoísmo! Também sou uma céptica, não és só tu... Até amar é egoísmo! Uma forma de termos poder sobre o outro. É a absorção total do outro dentro de nós, abafando-o bem cá dentro, com medo que ele fuja e nos deixe mais sozinhos... O que é o ciúme? Isso. Claro que o outro não existe! Existimos nós! Para que é que o outro há-de querer respirar? Não lhe damos o nosso ar? O ar a que nós achamos que ele tem direito?, pensamos.
Olhou para ele:
- É difícil amar, não é?...
Gabriel olhava para ela, surpreendido. Joan estendeu-lhe a mão e disse, suavemente:
-Desculpa, interrompi-te!
Gabriel, como se retomasse o raciocínio anterior, disse:
-É isso... Poucas pessoas sabem ouvir, ou interessar-se pelos problemas dos outros! Mas a tua mãe ouvia.
Parou, comovido.
-Ouvia, apenas. Reservada, discreta, silenciosa... A sua presença acalmava e bastava uma palavra dela para te sentires bem. Não falava muito de si, não porque se escondesse, não... era antes uma forma de pudor, não sei explicar. Como se isso não fosse o mais importante...
-Eu sei isso muito bem, Gabriel... A mãe ouvia tudo o que dizíamos...
-Esquecia-se de si, calava-se. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor que li há pouco, sim, ela tinha essa superioridade! Ajudou-me, deu-me tanto... E perguntas-me se a amava...
-Assassinaram-na, Gabriel, e tu deixaste!
-Não, não acredito! Não pode ser!
Gabriel levantara a voz, quase gritava. Depois, falou-lhe baixinho, num tom mais doce, como que para a acalmar:
-Se o que dizes é verdade, como é que eu o podia evitar? Não me culpes...
Falava, sem saber o que dizer, como se fosse descobrindo o que pensava.
-Não me dei conta de nada... E assassinada, porquê? Não se mata sem um motivo, não achas?
-É isso que vou descobrir...Que temos que descobrir!
-Mas o quê, Joan? Há provas? De concreto, o que há? Temos que partir de algum sítio...
-Não tenho provas, é apenas uma intuição. Espera que o Michael chegue...
-O Michael? Avisaste-o?
- Sim, tu não lhe disseste nada e ele estava perto...
-Perdi o controle, estava desesperado. Eu, que costumo dominar-me, não era capaz de pensar... Tentei telefonar uma vez ao teu irmão, ninguém respondeu do número que tinha e desisti logo, confesso... Foi muito duro. Via-me sozinho. E, sem ela, estava completamente perdido!
E acrescentou, mais baixo, como se tomasse consciência do que dizia:
-Estou perdido...
Joan apertou-lhe o braço, como se quisesse animá-lo.
-Estamos todos no mesmo barco, Gabriel. Perdidos...

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