domingo, 23 de agosto de 2009

Yasunari Kawabata e os "Arco-íris" (Niji ikutabi, 1951)

Yasunari Kawabata



























Deslumbram-me os livros de Kawabata, pela sua sensibilidade. Leio-o há muito tempo, e foi a minha filha que me indicou, pela primeira vez, o seu nome e os "Racconti in un palmo di mano" (Contos na palma da mão, dos quais não creio que exista tradução em português e é pena...) que leio e releio, sem nunca me cansar e descobrindo sempre pequenas coisas importantes nos pequenos nadas de que fala.
Agora, foi ela, também, que me emprestou o seu "Arcobaleni" - Arco-íris- também em tradução italiana, de Lydia Origlia, extremamente bem feita e cuidada -mas disse-me logo:
"Tens que mo devolver..."
Sei que guarda, religiosamente, os livros de Kawabata.

Breve notícia: vida e obra de Kawabata
Nasce em 1899 em Osaka e morre em Zuschi, sucidando-se, durante um período de depressão, em 1972.
É o primeiro escritor japonês a ganhar -em 1968- o Prémio Nobel.

Muito jovem, foi marcado por acontecimentos familiares trágicos, e pela solidão, ficando órfão com três anos, passando então a ser criado pelos avós, no campo. Perdeu a avó com apenas sete anos, a única irmã com nove anos, vive com o avô, cego, que morre quando ele tem catorze.
Criança, desejava ser pintor mas depois de ter escrito - e publicado- alguns contos ainda no liceu, decidiu ser escritor.
Entre as primeiras obras de Kawabata, temos “A bailarina de Izu” (1926) no qual se contam as andanças e a educação sentimental de um estudante universitário na península de Izu e dos seu encontro com uma companhia de artistas ambulantes.
A seguir, surgem as primeiras antologias dos “Contos na palma da mão” (Tanagokoro no Shôsetsu), rápidos esboços de vida, muitas vezes apenas poucas páginas, em que o autor consegue exprimir-se com um estilo que representa a marca do seu “estilo”: lacónico, seco e cristalino.



Durante a sua vida, Kawabata escreve mais de cem destes contos breves, forma literária a que ficou especialmente ligado afectivamente.
A primeira obra de fôlego é “A Banda escarlate de Asakusa”. Vivendo em Asakusa, um bairro popular de Tokyo, centro de divertimento popular em que se misturavam elementos da tradição japonesa (o templo do Sensoji, as festas tradicionais anuais) à distracção moderna que chegava do ocidente: cinema, barracas de tiro, salas de baile –do jazz ao charleston, Kawabata tentou reproduzir esta atmosfera única.

É uma narrativa fragmentária e voluntariamente des-estruturada. Usa vários tipos de estilo, do sketch à crónica jornalística, do conto na primeira pessoa ao romance realista, da “canzonetta” popular à citação culta...
Em 1929, o escritor japonês liga-se à revista “Literatura” que dá a conhecer, no Japão, escritores ocidentais do século XX, como Proust, Henry James, André Gide, James Joyce, Valéry e a literatura psicologista, a análise do inconsciente (the stream of consciousness) –sobretudo de “À la recherche du pemps perdu”, de Proust, ou de “Ulysses”, de Joyce, que muito o interessam e de que sofre a influência.
Começa então a série de contos, publicados nessa e noutras revistas, quase como folhetins, esboços de momentos, instantes, nos quais a vida quotidiana, a vida do universo, são fraccionadas, acontecimento por acontecimento, emoção por emoção procurando descer fundo na análise psicológica.
Por detrás da fachada do quotidiano, há a cristalização de episódios, sensações e mesmo deformações da existência humana.

Nos seus romances do pós-guerra, segue o mesmo ritmo de segmentos justapostos.
E n' O Mestre de Go (Meijin, 1952), Gentes de Tokyo -como não recordar o título do livro de contos, Gentes de Dublin de Joyce?- (1954-55); A casa das belas adormecidas (1960-61), Beleza e tristeza (1961-63), Kyoto ( 1961-62) -em todos eles persegue continuamente –e continuamente perde- o seu eterno sonho de um romance dotado das qualidades intrínsecas da estrutura do romance clássico...

Outros títulos:
"Primeira neve no monte Fuji", "Terra de Neve" (Yukiguri), (na edição brasileira, O país das neves) que escreve de 1935-37, "Mil Grous", série que inclui "Nuvens de pássaros brancos" e "O som da montanha" (1949) -e de que vi hoje mesmo uma tradução portuguesa da Dom Quixote, saída neste mês de Agosto, o que muito me alegrou-, "O mestre de Go" (Meijin) que o autor considera a sua obra mais importante, e "Arco-íris" (1951), de que vos falo hoje.

Comecei a ler Arco-íris (Niji ikutabi) e fiquei, uma vez mais, presa às palavras simples, às situações também, aparentemente, banais, e na verdade complexas, que o autor apresenta. Sempre os sentimentos: o amor, a recusa, a lealdade, a dificuldade do amor, a dificuldade de dar, o sofrimento, querer dar e não saber como.
Novela, em vários capítulos completamente independentes uns dos outros, de modo que podem ser lidos como pequenos contos, em que tudo e todos se cruzam e se reencontram, de forma quase banal, e que nos fala da vida das três filhas do arquitecto Mizuhara, filhas de três mulheres diferentes.
Por que razão Mimoko, a mais velha, procura destruir-se afectivamente? Por que razão Asako vai secretamente à procura da terceira irmã? Por que razão o pai lhes escondeu esta terceira filha e a sua mãe?
Tudo começa assim:

Um dia, num comboio de Tóquio para Kyoto, a jovem Asako, a segunda filha, a única saída de um "casamento", agora órfã, viaja, no mesmo compartimento, com um homem jovem que, a dada altura, muda as fraldas à filhinha de meses e lhe explica que a mãe vive em Kyoto e ele vai de tempos a tempos mostrar-lhe a filha.
Mais tarde tudo será explicado e dará origem a um "encontro /re-encontro".

Não resisto a transcrever o início deste maravilhoso livro:










Capítulo I



“Asako viu um arco-íris formar-se na margem oposta do lago Biwa.
O comboio tinha passado em Hikone e avizinhava-se de Maibara. Como muitas vezes acontece no fim do ano, ia meio vazio.
Quando se formara o arco-íris? Distraída, a contemplar a superfície do lago, Asako tinha a impressão de que surgira de repente.
O homem sentado em frente dela também se deu conta do arcoíris.
“Chiiko, Chiiko, olha o arcoíris! O arcoíris!”, exclamou ele, erguendo a criança que tinha nos braços e chegando-a à janela.
Desde que partira de Kyoto, Asako estava sentada num compartimento de quatro lugares diante daquele homem. O homem viajava com uma recém-nascida. Eram, pois, três.
Asako estava sentada perto da janela. O homem do lado do corredor.
Quando saíram do túnel de Higashiyama, ele deitara o bébé no assento, de modo a que estivesse com a cabeça apoiada nos joelhos dele, como numa almofada.
"Alto de mais, " murmurou dobrando o casaco. A criança estava tapada com um cobertorzinho de lã suave, com florzinhas. Agitava os braços e olhava para o pai. Ainda antes de subir para o comboio, Asako notara que o homem viajava sozinho com a menina. Sentara-se em frente dele imaginando que ia ter de o ajudar.
O homem, continuando a segurar a criança à janela e a motrar-lhe o arco-íris, disse a Asako:
“São raros os arco-íris no Inverno."
“Ah, sim?"
Tinha-lhe falado de improviso e Asako ficara embaraçada.
“Não, não é verdade. Não são assim tão raros", corrigiu o homem. "Já chegámos a Maibara. Uma vez, na linha para Horkuriku, depois de Maibara -nessa altura fazia o percurso contrário: de Kanazawa a Maibari e dali para Kyoto- vi pela janela imensos arco-íris. Na linha do Horkuriko não são raros. E eram todos pequeninos e gráceis. À saída de um túnel apareceu um pequeno arco-íris numa colina, depois viu-se o mar com outro arco-íris da colina à praia. Foi há três ou quatro anos, não recordo em que mês, mas era Inverno, estava frio e em Kanazawa caía uma neve como poeira. "
Asako perguntou a si própria se nessa altura o homem também viajava com a menina ao colo. Mas há três ou quatro anos, a criança ainda não tinha nascido. Deu-lhe vontade de rir.
“Quando se vê um arco-íris tem-se a impressão de estarmos entre a Primavera e o Verão.”
“Sim, todas estas cores não são invernais.”
"Vai para Kanazawa?"
"Hoje?"
"Sim."
"Não, volto para Tóquio."
“Acha que ela consegue ver o arco-íris? Não será inútil mostrar-lho?”, perguntou Asako. Era uma dúvida que lhe aparecera há uns minutos.
“Quem sabe?”, reflectiu alto o homem, “é difícil que o distinga, quer dizer, é impossível.”
“Mas vê-o, não?”
“Sim, vê. Mas aos recém-nascidos não interessa o que está longe.”
(...)
“Penso que a sua menina é feliz por viajar tão pequenina com um pai que lhe mostra o arco-íris”.
“Mas não se vai recordar dele.”
“Será o senhor a lembrar-lho.”
“Sim, hei-de recordar-lho. Quando for grande, ela vai ter que viajar muito fazendo este percurso.”
A menina olhava para Asako e sorria.
“Mas quem sabe se lhe acontecerá voltar a ver um arco-íris no lago Biwa!” e o homem acrescentou, logo:


“Disse há pouco a palavra “feliz”. O ano está a acabar e para nós adultos o arco-íris é um auspício de feliciade. Talvez nos espere um ano feliz.”
Asako era da mesma opinião.
Desde que vira o arco-íris tinha vontade de atraversar para o lado de lá. Seria maravilhoso visitar na outra margem as terrinhas do arco-íris. Ou, talvez mais real, viajar ao longo da margem que tinha um naquele momento. Asako viajava bastante naquele percurso do comboio mas nunca se pusera a imaginar nada sobre a margem do lado de lá do lago Biwa.

O arco-íris parecia interrompido. Via-se uma extremidade mas o cume estava coberto por nuvens.
No céu, nuvens de neve escureciam o lago. Assentavam na margem oposta e desfaziam-e em baixo, deixando reflexos de luz, dos quais se filtravam, pousando na água, os fracos raios de sol.
A Asako parecia que o arco-íris se estendia para o céu, chamando as nuvens melancolicamente. Quanto mais o fixava, mais tinha essa impressão. O arco-íris desapareceu antes que chegassem a Maibara".


Meses mais tarde, Asako adoece com uma pneumonia. E, no capítulo XI, fala-se outra vez do arco-íris:


"Era já Outono quando Asako pôde sair da clínica.
Todos os dias tinha contemplado um arco-íris pintado que pendurara na parede em frente da cama. Era a reprodução a cores da Primavera de Millet (*).
Assim que pudera levantar-se, fora ao corredor telefonar ao pai e tinha-lhe pedido:
"Queria que me trouxesses ao menos algum livro de arte para ir olhando, aqui. Por favor, traz-me aquele livro que tem uma colecção dos quadros de Takeji Fijishima".

"O volume grosso? Está bem, mas olha que é pesado: não podes folheá-lo enquanto estiveres deitada. Por que é que o queres ver?"
"Interessa-me um arco-íris pintado num dos seus quadros."
"Um arco-íris pintado? Percebi bem?"

"Sim, um arco-íris sobre o lago"
"Sim. Mas temos em casa também a reprodução de uma pintura de Millet (*), não te lembras?"
"Uma pintura de Millet? Não, não me lembro."
"Deve estar aqui nalgum sítio, vou ver se o encontro e levo-to com o livro sobre Fijishima."
Quando Asako recebeu o livro, leu que a tal pintura de Fijishima (**) com o arco-íris se intitulava "Calma" e tinha sido exposto em 1916 numa Mostra organizada pelo Ministério da Educação quando, naturalmente, Asako ainda não tinha nascido."



O arco-íris tem a sua importância, como se verá, e o motivo porque Asako não se lembra do quadro de Millet, que estivera sempre no quarto de sua mãe, agora morta, também.









(*) Jean-François Millet (4 de Outubro, 1814 – 20 de Janeiro, 1875) Pintor romântico e um dos fundadores da Escola de Barbizon na França rural. É conhecido como percursor do realismo, pelas suas representações de trabalhadores rurais.
Junto com Courbet, Millet foi um dos principais representantes do realismo europeu surgido em meados do século XIX. Sua obra foi uma resposta à estética romântica, de gostos um tanto orientais e exóticos, e deu forma à realidade circundante, sobretudo a das classes trabalhadoras.
Millet era filho de um latifundiário, nascido na vila de Gruchy, em La Hague, na Normandia.


Não consegui o quadro de Fujishima, com o arco-íris, apenas esta paisagem de lago.

(**) Takeji Fujishima was born in September 1867 in the city of Kagoshima as the third son of a retainer of the lord of the Satsuma (Kagoshima) Fief. He entered in 1882 the Kagoshima Middle School, while learning brushwork techniques from Togaku Hirayama, an artist from his hometown. In 1884, Fujishima went to Tokyo, where he became a pupil of Gyokusho Kawabata and studied Japanese traditional painting.
ILustrações:


1/2. retratos de Kawabata
3. capa da edição italiana de "Arco-íris" (Arcobaleni)
4. capa de "Racconti in un palmo di mano" edição italiana, 2º volume
5. capa dos "Contos da palma da mão" (Racconti in un palmo di mano) primeira recolha de contos
6. Jean-François Millet, Primavera
7. Takeji Fujishima, Paisagem com lago

1 comentário:

  1. Foi agora publicado o Arco-íris e antes de o comprar quis saber um pouco mais sobre o livro e sobre o autor. Obrigada e um beijinho

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