quarta-feira, 26 de agosto de 2009

John Le Carré, "Um homem muito procurado" (Dom Quixote, 2008): vale a pena ler!






Há muitos anos que não lia John Le Carré, mas encontrei no início deste ano à venda em Porto Côvo um livro dele que saíra há pouco: "Um homem muito procurado" ("A most wanted man", o título inglês talvez tenha pouco mais de subtileza), publicado pela Dom Quixote, em 2008, com uma bela tradução de Isabel Veríssimo.
Revoltou-me, fiquei indignada como certas vezes, quando era miúda, alguma coisa me chocava porque injusta e eu não a queria aceitar.
A velha injustiça, sempre pronta contra a inocência, até a bondade (ou boas intenções?) sempre castigada, ofendida, espezinhada. Indignada porque as pessoas sofrem. Porque há injustiças. Alguns sofrem e não deviam sofrer. As pessoas são iguais, seja onde for, têm direito a ser ouvidas, seja quem forem, ou isto será só utopia? Então, ainda bem que a utopia existe!
Habituada aos seus livros de espionagem mais "evidentes" como "O espião que veio do frio", "A casa da Rússia", "O espião perfeito", com a velha "cortina de ferro" os bons de um lado, os maus do outro e os que saltam de um lado para o outro, os contra-espiões, os transfugas, "traidores" para uns, "normais" para outros, este livro surpreendeu-me.
Este romance fala de assuntos mais próximos de nós, assuntos que nos dilaceram às vezes quando temos a preocupação de "perceber" ou de ser justos: quando é que um homem é culpado? Até que ponto é justificado entrar dentro da vida de alguém e destruí-la? Até que ponto tudo é permitido? Afinal os fins justificam os meios? É lícita a tortura, o desprezo pelo ser humano?
Ou, desde o 11 de Setembro, com a nova ideia do "eixo do mal", tudo é permitido? Ou foi sempre tudo permitido?
Talvez a utopia em que acreditamos hoje nos venha a salvar. Porque eu acredito que Obama é diferente e (utopicamente?) acredito que vai mudar muita coisa. Porque "não são todos iguais". Há quem faça "estradas" diferentes, conheça outros mundos e, por eles, fique marcado!

O que acontece a Issa não pode ter sido -apenas- estar no sítio errado, num momento errado?
Quem é Issa? Um terrorista, apanhado em Hamburgo, onde entrou clandestinamente uma noite, saído de uma prisão algures onde foi torturado sem saber porquê? Ou, apenas, o jovem russo que aparenta ser, magro, esfomeado, cheio de frio, com o seu sobretudo negro que nunca larga, e um saquinho ao pescoço com algum dinheiro?
E que procura desesperadamente uma pessoa, Tommy Brue, dono de um banco britânico, hoje em declínio, em Hamburgo.
Os serviços secretos de vários países investigam, espionagem e contra-espionagem jogam ao gato e ao rato com a vida do rato.
Terá razão a advogada alemã, uma jovem idealista que quer protegê-lo, e o vai defender legalmente?
Será verdade que, como sabem os serviços secretos alemães, é filho do coronel russo Karpov que, ao longo dos anos, criara uma conta super secreta (ilegal/legal) em Hamburgo que queria deixar ao filho? É isso, no fundo, que os serviços secretos procuram? O que está por detrás do coronel Karpov? Quem é a mãe de Issa?
E por que razão Melik (de nacionalidade turca) que recebe Issa em casa, por solidariedade e sem saber nada dele, acaba por ser considerado seu cúmplice e deixa de ter direito à nacionalidade alemã que ia "receber" nesse ano?
Só Annabel, Tommy Brue e os agentes secretos Erna Frey e Bachaman (que muito sabem do que está por detrás da super-reunião de espiões em Hamburgo) é que, arriscando a própria vida, tentam ajudar Issa porque acreditam que está inocente.
Livro cheio de acção, de suspense, até de humor, sem um momento de paragem, e que nos deixa no final um amrgo gosto na boca: e se ele estivesse inocente?
Acabamos o livro sem respostas e com muitas interrogações. Comovidos, revoltados, cheios de esperança.
A máquina, seja ela qual for -normalmente são outros homens, com pseudo- ideologias- trucida os homens, destrói neles a capacidade de sonhar, de acreditar ou de viver com dignidade, ou mesmo de viver apenas...
A máquina -ou os outros?- destrói em todos a vontade de justiça, o sentido do bem que existe em cada um enquanto criança e jovem, e que às vezes resiste toda a vida, mas que outras vezes se perde com a passagem do tempo: envelhecendo. E isto não é uma questão de idade...
Annabel, Issa, o inglês, Edna e Bachman, Melik e a mãe: John Le Carré fala deles com humanidade e quase com ternura. São pessoas que não esqueceremos.




Ilustrações:
1. fotografia de John Le Carré, fantástica
2. capa do CD (Guns) sobre um livro de Chandler
3. Bellini, S. Jorge e o dragão
4. Paolo Ucello, S. Jorge e o dragão

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