domingo, 16 de agosto de 2009

Histórias da Casa Amarela: O Carnaval, ratinhos e violetas...





O Carnaval era nesse tempo da minha infância um momento mágico, para nós. Começávamos muito cedo a fazer os preparativos: descobrir os fatos de carnaval, o que, muitas vezes, se reduzia a ir à arca no sótão ver o que lá havia e tudo nos servia: saias de seda, blusas de rendas e as costumadas roupas “à moda do Minho”, lenços garridos, aventais de riscas coloridas, saias vermelhas.
A mim bastavam umas calças de pijama brancas do meu pai, as botas da escola, um pano branco por cima dos cabelos, atado com o cinto de fios torcidos de um velho robe de seda, para me sentir transformada em Lawrence das Arábias e estar preparada para seguir o meu avô nas deambulações dele pela cidade.
Preparávamos com antecedência saquinhos de pano com feijões para, depois, lançarmos, nas matinées do Carnaval, do velho Cine-Teatro.
A Hermínia parava com as suas costuras habituais e cosia à máquina os tais saquinhos que a minha mãe cortava em bocados de seda e de riscado, e alinhavava. O nosso trabalho era virá-los para ficarem do direito e enchê-los de feijão fradinho e atá-los no alto com uma fitinha ou mesmo só com linhas de coser bem apertadas. Pouco a pouco, o cesto da costura era um arco-íris de cores e desenhos variados.
O meu pai afastava-se desses divertimentos. Penso que detestava o Carnaval, considerando-o um período de estupidez e de primitivismo. Tinha razão. Recordo a brutalidade com que, nessas matinées, aparentemente inofensivas, visto que o público era, na maioria, constituído por crianças, se jogava afinal com violência. Contra os nossos saquinhos –que, ingenuamente, fazíamos ligeiros- eram lançadas autênticas pedradas, sacos pesados, cheios de grão, que eram catapultados lá de cima, da galeria ou do 3º balcão. Num intervalo dessas sessões (era no intervalo que a fúria da guerra dos saquinhos se desencadeava), a minha irmã mais velha recebeu um desses projécteis na cara o que lhe causou um derrame num dos olhos e teve de sair com o meu pai, furioso, para ser tratada.
Para nós, pelo contrário, cada dia era uma brincadeira nova a inventar: uma partida à Florinda, as caudas de papel ou de serpentinas penduradas nas costas com um alfinete de cabecinha, igual àqueles que eu costumava usar, dobrados, com uma linha, para tentar pescar os peixinhos encarnados no lago da Corredoura, coisa que nunca consegui, e, no fundo, nem queria.
Ou os sustos dos mascarados que batiam à porta ou amigos que vinham visitar-nos.
No café do meu avô, o Café Central, lembro-me de estar sozinha por detrás de uma grande vidraça sem saída e vir um grupo de mascarados brincar comigo, bater no vidro e assustar-me. Eu sabia que eles não podiam entrar mas a verdade é que eu também não podia fugir deles porque aquela sala estava ao fundo de um corredor que me separava da salvação da cozinha. Encostei-me ao lado do grande cortinado de veludo, fazendo-me pequenina até se esquecerem de mim e irem rua abaixo até ao Arco.
Uma noite, a nossa prima Helena veio pelas escadas e entrou, pela porta da cozinha, vestida com um pijama negro, um barrete de lã na cabeça, luvas brancas e uma máscara branca e dourada que era uma caveira.
Foi uma gritaria. A Florinda metia-se pela chaminé adentro, agachada, de mãos na boca, e aos "ais". A Hermínia encolhia-se detrás da máquina de coser, olhos esbugalhados como se visse o lobisomem de que costumava contar-nos histórias. A Rosalina ia recuando para a sala, escondendo-se no avental, a chamar pela minha mãe.
E nós ríamos, ríamos, um pouco histéricas, agarradas à mão do nosso pai, entre o medo e o prazer da cena. No fim, dávamos palmas quando ela era “desmascarada” pelo meu pai –que deixara a porta da rua aberta para ela poder entrar- e agora com medo que aquela excitação e aquele susto nos fizesse mal.

Mas houve uma história de um carnaval que não esqueci. Uma manhã, ainda cedinho, bateram ao martelo da porta. A Florinda, que andava a varrer as escadas, veio trazer ao quarto uma encomenda para a minha mãe.
Ainda deitada, e nós ao pé dela, começou a abrir o embrulho. Era uma caixa pequena de chocolates, e, dentro, com os chocolates, fitas, papéis de seda e violetas que cheiravam maravilhosamente. De repente, aturdidos, saem do meio das flores três ratinhos brancos minúsculos. A minha mãe largou a caixa e os ratinhos espalharam-se pela cama e saltaram para o chão. Era uma confusão no quarto.
Encostámo-nos ao espaldar da cama, de mãos na boca e olhos abertos: eram lindos os ratinhos, só tinha visto outros assim nas histórias da “Gata Borralheira”. Mas assustavam-nos.
A Florinda com a vassoura empurrou-os para a pá do lixo e levou-os.
- Florinda, não os mates! Por favor...
Ela disse que os ia deitar fora. Matou-os? Nunca soube, não quis saber.
Que culpa tinham os ratinhos das brincadeiras inconscientes dos humanos? Razão tinha o meu pai para não gostar do Carnaval...
Fechei os olhos e deu-me uma grande vontade de chorar.

2 comentários:

  1. Tal como o Dr. Falcão, detesto o Carnaval. Tenho más memórias, irritam-me os mascarados e chateia-me a "obrigatoriedade" de fazer graça e festa... Mas lembro-me de ver o Dr. Falcão chegar, exausto, com uma tábua de passar às costas, mascarado de limpa-chaminés!!!
    Beijinhos

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  2. Era raro que o fizesse. Vê-se que gostava mesmo de vocês e das tuas filhas...

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