sábado, 3 de abril de 2010

Um Domingo de Páscoa em Portalegre

A minha avó tinha muitas formas de superstição.
Receava acima de tudo o "mau-olhado" e uma das coisas que nos oferecia, logo ao nascer, era uma pequenina figa de ouro, ou de coral, para pendurarmos numa pulseirinha e assim afastar o mal.
Amanhã é Domingo de Páscoa e lembrei-me das idas -com ela- visitar o Senhor dos Passos, ou "Senhor do Calvário", como ela dizia.


Já vai longe o tempo dos "folares", que a Florinda fazia...
Sei que nos entretínhamos a pintar os ovos cozidos (havia uns pós que dentro da água a ferver os coloriam) e eu pintava sempre rostos de chineses, nos ovos cozidos em água de açafrão.

Folares, com três ovos para o meu pai, um ovo para nós as duas mais velhas, e, para a mais pequenina, a Florinda fazia com a massa uns "lagartos" e punha-lhes uma amêndoa na boca...
As amêndoas de chocolate e açúcar, ou só de açúcar, de Portalegre eram famosas. Adorava comê-las. Pareciam ovinhos de pomba, perfeitinhos.

No domingo de Páscoa íamos, então, com a avó, de certeza a pessoa mais “religiosa” da família, visitar "o Senhor dos Passos", à Igreja do Calvário.


A sua devoção pelo Cristo da Paixão parecia-me às vezes uma forma de religião, mais pagã do que católica.
Também foi com ela que visitámos a linda Igreja do Bonfim...

Levava-nos todos os anos ao Calvário, ver o Cristo...
Antes, passara Ele em procissão, descalço, curvo debaixo da cruz de lenho, pensativo.
O meu pai, que era ateu, respeitava as crenças dos outros.

Por essa época, as janelas e varandas da nossa rua ficavam cheias de colchas que iam do cor de rosa mais berrante ao vermelho cardeal mais vivo, do amarelo-dourado, ao azul turquesa, colchas de seda simples, de algodão ou de damasco pesado. Mas o meu pai –que não deixava pôr colchas porque não era religioso-, também nos não deixava ficar a “olhar” como observadoras das nossas janelas.
Assim, íamos ver a procissão em casa da tia Leopoldina, das sacadas enfeitadas de colchas de sedas antigas. Ela morava na rua da Carreira (hoje rua 19 de Junho), logo à saída do Largo da Sé, de onde saía o cortejo.

Lembro a música solene, fúnebre, tocada pela banda, vejo algumas figuras descalças, com túnicas escuras e cabeças baixas, o andor do Cristo passava lentamente e, atrás, seguia-o uma chorosa Virgem, de azul. E muitas velas e os anjinhos brancos, com as asas enormes a abanar.
Havia refrescos na sala de jantar, bolinhos, pão com doce. De cima da janela deitávamos pétalas perfumadas, de rosa, de cravos sobre as pessoas que passavam.

O meu pai nunca se opôs a essa nossa peregrinação com a avó.

Chegávamos à Igreja do Calvário, silenciosas, e ficávamos a olhar o Cristo da Paixão, vestido de roxo sob a cruz de lenho escuro. Lembro a sua testa sangrando, cravada de espinhos, em bagas de rubi, e os olhos pensativos e tristes que tinha. A avó sentava-se um pouco, com o seu véu branco na cabeça inclinada para um lado, e as pontas do véu caídas sobre os ombros. De olhos fixos, cheios de brilho, devia pedir ao seu Cristo muitas coisas.
Depositávamos um beijo no pé direito, e rezávamos uma oração pequenina que esqueci.
Ainda soube muitas orações que a avó nos ensinava.

Lembro hoje com saudade as nossas "visitas" ao Cristo da Paixão...

Junto um poema do grande poeta José Régio. Quero associá-lo nesta recordação, ele que tão bem sabe falar do Cristo da Paixão.

CRISTO











Quando eu nasci, Senhor, já tu lá estavas,
Crucificado, lívido, esquecido.
Não respondeste, pois, ao meu gemido,
Que há muito tempo já que não falavas...

Redemoinhavam, longe, as turbas bravas,
Alevantando ao ar fumo e alarido.
E a tua benta Cruz de Deus vencido,
Quis eu erguê-la em minhas mãos escravas!

A turba veio então, seguiu-me os rastros;
E riu-se, e eu nem sequer fui açoitado,
E dos braços da Cruz fizeram mastros...


Senhor! eis-me vencido e tolerado:
Resta-me abrir os braços a teu lado,
E apodrecer contigo à luz dos astros!

José Régio

Ilustrações:

1.Vista de Portalegre com a Sé

2. Andrea Mantegna, Cristo Morto

3. Igreja do Calvário, Portalegre

3. Igreja do Bonfim, Portalegre

4. Carlo Crivelli, Cristo na Cruz, com dois anjos

5. Giovanni Belllini, Cristo na Cruz, com anjos

5 comentários:

  1. Ops!! Vim aqui agora e vi que escolhemos hoje o mesmo poema de Régio! Seremos almas gémeas desta Portalegre?? Achei graça à coincidência!
    Boa Páscoa!!

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  2. Eu também sou ateia (ou nâo seria tâo céptica...).Da Páscoa da infância recordo especialmente a procissâo do domingo de Ramos,talvez pela alegria dos lilases e desses dias luminosos dos começos da Primavera.Este ano estive em Granada,e o que mais me chega de tudo é a "procissâo do silêncio",a cidade às escuras,um mar de gente,e só se ouve o compasso pausado de uns tambores.Incrivel.Beijinhos.

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  3. Deve ser impressionante...
    Bom regresso!

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  4. Só agora aqui vim e sempre que posso mantenho as trdições dos nosso tempos : Ida à procissão , lagartos com ovos e Ou amendoas.è difícil incutir estas coisa queb nós recordamos com saudade, mas é bom, querida prima vermos que não estamos sós nas recordações. Por preguiça nem sempre te visito...masa verdade é que hoje, já passou um pouquinho do tempo. beijinhos Madade

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  5. Obrigada pelas recordações da minha linda cidade "do Alto Alentejo, cercada
    de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros", que está sempre no meu coração...

    Da Páscoa, recordo a procissão (em que nas minhas recordações nunca participei mas que acompanhava atentamente da janela de minha casa ou no carro, com o meu saudoso Avô Victor e a minha querida Avó Nanda) e a Missa de Domingo de Páscoa em família, à qual se seguia um opulento almoço com o cabrito assado e outras iguarias...
    Recordo o obrigatório passeio à Serra (agora realizado de carro), sempre acompanhado pelas histórias que, felizes por partilharem tradições antigas, Avó e Tios-Avós nos contavam pacientemente, sobre piqueniques e passeios de outrora...
    Recordo a 2ª-Feira de Páscoa, feriado em Portalegre, em que a família se voltava a reunir... ao almoço degustava-se a tradicional Sopa de Miudos e eram distribuídos os Folares da Páscoa, feitos previamente com o carinho da Avó Natália - enquanto eramos mais novinhas, recebíamos o lagarto com o ovo e as amêndoas e, à medida que fomos crescendo, o tradicional folar com o ovo cozido...
    Só já em Lisboa, adulta, descobri que esta é uma tradição só nossa... celebrar a Páscoa essencialmente como um período de Alegria pela ressurreição de Jesus... e daí a troca de 6ª-Feira Santa (em que continuava a ser proibída a carne) pela 2ª-Feira de Páscoa (em que tudo estava fechado e em que ninguém trabalhava)!
    Este ano, em Lisboa, vou tentar recuperar um pouquinho ínfimo da nossa tradição: com uma malandreca de 4 anitos, filha de uma portalegrense inveterada, vamos pintar ovos e fazer folares para oferecer! Espero que ela se divirta e que lhe apanhe o gosto, pois acredito que é importante criarmos com os mais novos memórias das tradições da nossa terra, que um dia eles possam recordar e transmitir de geração em geração...

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