E aqui começa a história horrível deste livro: o assassínio inexplicável de dos jovens Nancy e Kenyon e dos pais deles, toda a pacífica família Clutter, na bela herdade de River Valley, por onde corre o rio Arkansas...
Truman Capote dança com Marilyn Monroe, capa do livro de Capote, "Música para Camaleões".
Em cima, os dois assassinos no momento da prisão; em baixo, o
actor Robert Blake que, no filme de Richard Brooks (1967), é Perry Smith
Por que razão a família Clutter foi, barbaramente, assassinada na noite de 14 a 15 de Novembro de 1959?
Não haverá resposta, até ao fim do livro.
A revolta, o espanto dos vizinhos quando os cadáveres foram encontrados é enorme.
Quem pode ter feito uma coisa tão brutal?
E, tal qual sempre acontece nestes casos, instala-se a dúvida, o medo, a desconfiança do próximo, ainda ontem um amigo.
É com tristeza que vemos as pessoas modificarem-se. O pânico transforma-os em bestas desumanas, deixam de reagir como pessoas...
O medo gira pelas ruas de Holcomb, como os novelos de palha seca, no verão.
Ao cair da noite, as chaves que dantes ficavam nas fechaduras, do lado de fora, e as portas apenas no trinco, são recolhidas, e as casas fechadas a sete chaves.
As luzes permanecem acesas durante a noite, ninguém repousa, todos velam, as crianças choram.
O antigo equilíbrio das gentes da aldeia fraqueja. Têm medo.
Quem foi? Alguém que invejava o lavrador Clutter? A maioria inclina-se para esta hipótese...
Tinha de ser alguém da terra, que o conhecia bem e conhecia bem a casa...
E então começava a “caça às bruxas”, mas em voz baixa, sem dar um nome preciso...
E se amanhã calha a nossa vez? Se nos acontece a “nós”? Se entram na “nossa” casa?
A suspeita passa a fazer parte do dia a dia. O quotidiano altera-se, degrada-se...
Paralelamente, o autor vai comunicando ao leitor outros “dados” que eles ignoram...
“Nós” sabemos quem foi, desde o princípio, o autor alterna cenas em que intervêm ora os assassinos, ora a família condenada.
Antes dos factos acontecerem, e depois.
Passado e presente cruzam-se.
À nossa revolta perante a violência de mortes gratuitas, a esse inexplicável, sucede-se o desejo de compreensão. E vai-se descerrando o véu.
O autor apresenta os factos simplesmente.
De certo modo, ele vai explicar o que nós queremos “perceber”.
Aos que imediatamente pensaram: “À forca já! À morte!”, segue-se dentro de nós, uma espécie de “recuo”.
Aquilo não podia ter acontecido... Então, por que aconteceu?
É a razão da existência do livro.
Perry Smith e Dick Hickcock, os assassinos, quem são?
Pequenos ladrões, acabaram na cadeia juntos. Delinquentes comuns, doentes mentais?
Pessoas doentes, com certeza. Há perversidade, há maldade, mas há também uma inconsciência enorme.
Truman Capote viveu esta história de perto, como repórter contratado pelo The New Yorker.
O assassínio provocou grande celeuma, pânico, confusão de sentimentos na América.
Aconteceu na região de Kansas City, no ano de 1959.
Capote segue os acontecimentos, nesta longa e minuciosa reportagem, que, no fim, resulta um romance “não-ficcional”, como ele lhe chamou...
O detective do KBI (Departamento de Investigação do Kansas), Alvin Dewey - ex-sheriff do condado de Finney- é destacado para a investigação.
Não abandona o caso um minuto, pensa nele de manhã e de noite.
À sua volta, reúne-se o “grupo” dos agentes especiais Church, Dutz e Nye.
Uma única coisa conta neste momento: Prender os culpados das mortes horrendas.
À medida que as páginas correm, vai-se recortando a figura de um dos assassinos - muito bem “desenhada” pelo autor.
Surge uma personagem contraditória: grande fragilidade, sensação de frustração, pessoa capaz de sensibilidade até às lágrimas, e de violência, ódio e paixão.
E de ternura. De compaixão, como vai notar o detective Dewey, diante de alguns “pormenores” do assassínio.
Perry vai surgindo do nada, vêmo-lo “crescer”, enquanto ele próprio recorda a sua vida.
Perry, o menino meio-índio, de olhos espantados e doces, batido, criado num orfanato, indesejado, onde pela mais pequena coisa lhe batiam chegando a “torturá-lo”.
O rapaz que queria estudar, ser culto, que aprendeu quase sozinho a ler e a fazer a sua bela caligrafia desenhada, mas que o pai “prendeu” como um escravo, “mula de carga” e nunca deixou ir estudar.
O homem que chorava ao ver a beleza de um pôr do sol, ou da lua cheia, que se comovia ao ouvir uma melodia bela. Que compunha versos e cantava I’ll be seeing you, com letra sua, ao som da guitarra.
Perry, que recorda a mãe, a jovem e bela cherokee, amazona, estrela nos “rodeos”, mais o loiro irlandês com quem vai casar. Sucedem-se os locais onde actuam, de terra em terra, o nascimento dos filhos. As cenas desfilam perante os nossos olhos de “leitores/observadores” atentos.
E, pouco depois, a degradação, a imagem da mãe alcoólica, gorda e deformada, que foge de casa.
Os irmãos, a separação, o orfanato, a vida com o pai que não recebe os outros filhos em casa, e destrói a vida de Perry.
Resta-lhe a irmã, Barbara, que prefere não ouvir falar dele. A outra irmã e o irmão mais velho suicidaram-se, anos antes.
Mas que importância tem isso, dirão. Assassinou, ou não, pessoas indefesas?
As cenas alternam-se: os momentos do passado de Perry e de Dick, e o presente.
A vida da família Clutter : Bonnie, a mãe doce e assustada, encerrada na sua depressão; o pai, o rigoroso, honesto e respeitado na terra, Herb Clutter; Nancy e Kenyon em plena juventude...
Aparecem os amigos, o namorado dela, o cão Teddy –um rafeirinho coollie, que tinha um medo enorme das espingardas-, a velha égua Babe, a vida tranquila de poucos dias antes em Holcomb.
Holcomb, a aldeia situada nas altas planícies de trigais a oeste do Kansas, perto de Garden City.
Holcomb, a desconhecida, onde os que passavam perto na auto-estrada, nunca paravam...
Mas –como dizia Perry- “tudo pode mudar de repente!”
Perry acredita no destino, na fatalidade. Saído da prisão há pouco, decidira voltar ao Kansas só para vir esperar o único amigo que tivera na vida.
Willie-Jay, um homem bom, ia sair da prisão, por essa altura.
“Willie era a única pessoa em quem confiava”. Na cadeia, ajudara-o a perceber os erros que cometera, a tentar resolver os seus problemas, aconselhara-o:
“Perry, queres coisas de mais, és sedento de coisas que não tens, e ressentido por isso, tens inveja da felicidade que não é tua. Não te deixes dominar por “paixões extremas”.
Perry contava com Willie. Esperara-o, sem se meter em sarilhos, como lhe prometera...
Mas o destino decidiu de outro modo: desencontraram-se e a Perry resta Dick Hickcock, e o louco plano de Dick para serem ricos e nunca mais terem que pensar na vida!
Resignado, Perry pensa: “o destino é que decidiu ...”
Depois do “golpe”, sabe que tudo vai correr mal, tem a premonição da tragédia, mas aceita-a como se aceita um “determinismo”.
Dick é um homem muito inteligente, mas um “tarado”, um perverso, mal formado. Mostra a raiva, quando começa tudo a correr mal, com risos histéricos, “espumando da boca”.
Depois do assassínio, em que os dois participam, Perry percebe que nada daquilo foi “normal”, que foram longe de mais, e diz a Dick:
“Há alguma coisa errada em nós, para termos feito o que fizemos. Vamos ser castigados”.
Willie-Jay dissera sobre Dick: “é um fanfarrão depravado”...
Dick diz-se "incapaz de matar as pulgas dum cão..."
Perry dirá dele, mais tarde: “Nunca se esquecia de matar os cães que lhe passavam por perto...”
Perry espera o castigo, “sabe” que as ilhas encantadas onde julgara poder viver e trabalhar –ter um barco, transportar turistas a pescar nas águas azuis profundas-, não existirão para ele.
Intui que os sonhos não existem...
Perde o respeito a Dick, quando o vê agir. Despreza-o, mas “les jeux sont faits”, nada há a fazer. Mais vale não se separarem agora, talvez assim exista alguma hipótese de se salvarem...
Um dia dissera à irmã: “Julgas que gosto de ser assim? Oh! Meu deus, o homem que eu poderia ter sido...!”
Agarrado à sua bem-amada guitarra Gibson, toca, canta tentando esquecer o horrível da vida, e as canções que canta são poesias que falam da morte.
“Vais pôr flores quando eu morrer/ mas por que não mas deste em vida?”
Também não larga o caixote cheio de recordações de “um solitário, sem um amigo de verdade”, das quais, mais tarde, o detective Nye, dirá:
“Que vida solitária e miserável a deste homem, se são estes os seus bens...”
De facto, não valem nada, coisas insignificantes. Um cobertor de bébé cor de rosa, uma almofada suja, comprada em Honolulu, fotografias amarelecidas num caderno, um molho de papéis velhos, cartas de Willie, da irmã e do pai, de que não conseguira separar-se.
Sim, “um solitário, sem um amigo de verdade”, pensa também Perry, ao guardar o seu tesouro.
“Para quê viver?”
Lembra a frase do Chefe índio, Pata de Corvo, da tribo dos Pés Negros: “a vida é como um alento de búfalo no Inverno, a breve sombra que perpassa pela erva antes de se perder no crepúsculo...”
“Sim”, pensa Perry, “o homem não é nada, uma névoa apenas, absorvida pelas sombras”...
Ele não era nada.
Perry era um assassino! Indignam-se as “ boas consciências”, as pessoas comuns, “normais” (ou formatadas?) mais a opinião pública!!
Sim. Mas Perry era também muitas outras coisas.
Perry é com certeza a personagem mais forte do livro “A sangue frio”, aquela que o autor quer compreender, descendo no mais fundo dele.
Deixemos de lado o velho tema da desculpa da “infância maltratada”, e voltemos ao da pessoa pisada, afastada, ignorada, posta de lado e que tanto quis, tanto ambicionou.
Acontece a tantos. Ontem, em 1959, como hoje em 2010...
Qual diferença? O desapontamento entre o que se sonhou e o que a sociedade deixou fazer desses sonhos é o mesmo.
Perry que, ao ódio e a uma frustração doentia, alia a poesia e a ternura, o sonho de beleza num corpo de anão, os olhos sonhadores perdidos no horizonte, agarrado à guitarra, pensa ainda nas ilhas perdidas que um dia irá ver com Dick...
Perry, que quis guardar um pouco do seu lado “bom” -entre a infantilidade retardada e uma certa ingenuidade, arrastando atrás as amarguras, penas, e desejos irrealizados- é levado pelos actos (pelo destino, diria ele) a pender para a “face escondida da lua” que existe em todos os homens.
Rodeia-se de defesas, de insensibilidades súbitas, mitomania, para sobreviver aos sonhos enormes que sonhara e se desvaneceram.
Ele que quisera tanto...
Salvas as devidas distâncias (mas um homem não é sempre um homem?), lembro outro desesperado, Mário de Sá Carneiro:
"Um pouco mais de sol
-eu era brasa.
Um pouco mais de azul
-eu era além...
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém..."
Entre o além e o aquém, na breve ponte que une e desune os dois, há a zona de sombra em que se move Perry. Nas duas realidades, uma é destruída, de repente, por um acto.
Recorda os irmãos que se suicidaram, o suicídio rondou sempre o seu pensamento.
Não conseguia encontrar muitas razões para continuar vivo.
“Os sonhos ficaram todos para trás...” Podia matar-se...
Mas não será esta a sua escolha...
Poucos livros me entristeceram tanto como este.
Não há saídas, não há explicações, não pode haver justificações para certos actos.
Dir-me-ão: a vida é assim... Os criminosos devem pagar!
A qualidade do livro de Truman Capote é a de mostrar que a realidade não é a “preto e branco” (ou a Technicolor, como nos filmes), nem há só os bons e os maus, nem nada está 100 % certo ou errado.
Nada é definitivo.
Mas há o irremediável.
Que o autor se tenha “deslocado” para esta acção e que tenha acompanhado até ao fim o que era de “acompanhar”, é uma atitude exemplar!...
Mostra que os matizes, os claro/escuros, existem, mesmo nos assassinos.
Sim, é o que Truman Capote (2) nos pretende dizer.
E consegue-o, na sua imensa humanidade: a de quem conheceu o sofrimento.
Segue-o na “missão” a Kansas City, a amiga de sempre, Harper Lee, que conhecemos do livro “Por favor, não matem a cotovia”.
Com 35 anos de idade nessa altura, Truman Capote guarda um pouco da ternura da sua novela “Harpa de Ervas” (The grass harp), livro bom.
Capaz de perceber o mundo da infância e da adolescência -e falar dele-, do mesmo modo foi capaz de falar dos deserdados da vida, heróis negativos, à maneira de Dostoievski : os possessos.
Resta-nos na névoa Perry, crédulo, imaturo e supersticioso, que pensa que tudo aconteceu porque “tinha de ser”...
Ele e a sua falta de sorte...
“Um pouco mais de sol...”
Quem sabe? Talvez.
O sonho não existia afinal...
(1) Um pouco da vida ed Truman capote: nasce em new Orleans, em 30 de Setembro de 1924 e morre em Los Angeles em 27 de Agosto de 1984. Filho de Archulus Persons, advogado que não exerce e da jovem Mae, de 17 anos, vive os primeiros anos na pobreza e instabilidade. os pai separam-se cedo, a mãe volta a casar e ele vive dos 4 com familiares no Alabama.
Deixo-vos o livro, "A sangue frio", meus queridos leitores, para o irem ler...
Com a publicação de “A sangue frio”, T.C reforça a sua reputação de um dos melhores escritores americanos do século XX.