quinta-feira, 29 de julho de 2010

"A sangue frio", de Truman Capote


A granja de River Valley onde viviam os Clutter

Foi com certeza um dos livros que mais me impressionou ultimamente. Gostava de vos falar dele, dizer o que senti: a emoção, a pena, o choque.

Tantos sentimentos contraditórios...
Pensei se valeria a pena falar nele. Porque o livro saiu há tantos anos, porque os acontecimentos de que fala referem-se ao ano 1959, tantos anos, não é?
E passa-se tão longe, na América, no Sul, no Kansas, fora até do mundo americano, ou noutra realidade do mundo americano?

Depois vi que tinha aparecido uma edição portuguesa (Biblioteca Visão, Colecção Lipton, 2010) e pensei que gostaria de vos falar nele, agora que é fácil encontrar o livro...


E aqui começa a história horrível deste livro: o assassínio inexplicável de dos jovens Nancy e Kenyon e dos pais deles, toda a pacífica família Clutter, na bela herdade de River Valley, por onde corre o rio Arkansas...

Em cima, os dois assassinos no momento da prisão; em baixo, o

actor Robert Blake que, no filme de Richard Brooks (1967), é Perry Smith

Por que razão a família Clutter foi, barbaramente, assassinada na noite de 14 a 15 de Novembro de 1959?

Não haverá resposta, até ao fim do livro.

A revolta, o espanto dos vizinhos quando os cadáveres foram encontrados é enorme.

Quem pode ter feito uma coisa tão brutal?

E, tal qual sempre acontece nestes casos, instala-se a dúvida, o medo, a desconfiança do próximo, ainda ontem um amigo.

É com tristeza que vemos as pessoas modificarem-se. O pânico transforma-os em bestas desumanas, deixam de reagir como pessoas...

O medo gira pelas ruas de Holcomb, como os novelos de palha seca, no verão.

Ao cair da noite, as chaves que dantes ficavam nas fechaduras, do lado de fora, e as portas apenas no trinco, são recolhidas, e as casas fechadas a sete chaves.

As luzes permanecem acesas durante a noite, ninguém repousa, todos velam, as crianças choram.

O antigo equilíbrio das gentes da aldeia fraqueja. Têm medo.

Quem foi? Alguém que invejava o lavrador Clutter? A maioria inclina-se para esta hipótese...

Tinha de ser alguém da terra, que o conhecia bem e conhecia bem a casa...

E então começava a “caça às bruxas”, mas em voz baixa, sem dar um nome preciso...

E se amanhã calha a nossa vez? Se nos acontece a “nós”? Se entram na “nossa” casa?

A suspeita passa a fazer parte do dia a dia. O quotidiano altera-se, degrada-se...

Paralelamente, o autor vai comunicando ao leitor outros “dados” que eles ignoram...

“Nós” sabemos quem foi, desde o princípio, o autor alterna cenas em que intervêm ora os assassinos, ora a família condenada.

Antes dos factos acontecerem, e depois.

Passado e presente cruzam-se.

À nossa revolta perante a violência de mortes gratuitas, a esse inexplicável, sucede-se o desejo de compreensão. E vai-se descerrando o véu.

O autor apresenta os factos simplesmente.

De certo modo, ele vai explicar o que nós queremos “perceber”.

Aos que imediatamente pensaram: “À forca já! À morte!”, segue-se dentro de nós, uma espécie de “recuo”.

Aquilo não podia ter acontecido... Então, por que aconteceu?

É a razão da existência do livro.

Perry Smith e Dick Hickcock, os assassinos, quem são?

Pequenos ladrões, acabaram na cadeia juntos. Delinquentes comuns, doentes mentais?

Pessoas doentes, com certeza. Há perversidade, há maldade, mas há também uma inconsciência enorme.

Truman Capote viveu esta história de perto, como repórter contratado pelo The New Yorker.

O assassínio provocou grande celeuma, pânico, confusão de sentimentos na América.

Aconteceu na região de Kansas City, no ano de 1959.

Capote segue os acontecimentos, nesta longa e minuciosa reportagem, que, no fim, resulta um romance “não-ficcional”, como ele lhe chamou...

O detective do KBI (Departamento de Investigação do Kansas), Alvin Dewey - ex-sheriff do condado de Finney- é destacado para a investigação.

Não abandona o caso um minuto, pensa nele de manhã e de noite.

À sua volta, reúne-se o “grupo” dos agentes especiais Church, Dutz e Nye.

Uma única coisa conta neste momento: Prender os culpados das mortes horrendas.

À medida que as páginas correm, vai-se recortando a figura de um dos assassinos - muito bem “desenhada” pelo autor.

Surge uma personagem contraditória: grande fragilidade, sensação de frustração, pessoa capaz de sensibilidade até às lágrimas, e de violência, ódio e paixão.

E de ternura. De compaixão, como vai notar o detective Dewey, diante de alguns “pormenores” do assassínio.

Perry vai surgindo do nada, vêmo-lo “crescer”, enquanto ele próprio recorda a sua vida.

Perry, o menino meio-índio, de olhos espantados e doces, batido, criado num orfanato, indesejado, onde pela mais pequena coisa lhe batiam chegando a “torturá-lo”.

O rapaz que queria estudar, ser culto, que aprendeu quase sozinho a ler e a fazer a sua bela caligrafia desenhada, mas que o pai “prendeu” como um escravo, “mula de carga” e nunca deixou ir estudar.

O homem que chorava ao ver a beleza de um pôr do sol, ou da lua cheia, que se comovia ao ouvir uma melodia bela. Que compunha versos e cantava I’ll be seeing you, com letra sua, ao som da guitarra.

Perry, que recorda a mãe, a jovem e bela cherokee, amazona, estrela nos “rodeos”, mais o loiro irlandês com quem vai casar. Sucedem-se os locais onde actuam, de terra em terra, o nascimento dos filhos. As cenas desfilam perante os nossos olhos de “leitores/observadores” atentos.

E, pouco depois, a degradação, a imagem da mãe alcoólica, gorda e deformada, que foge de casa.

Os irmãos, a separação, o orfanato, a vida com o pai que não recebe os outros filhos em casa, e destrói a vida de Perry.

Resta-lhe a irmã, Barbara, que prefere não ouvir falar dele. A outra irmã e o irmão mais velho suicidaram-se, anos antes.

Mas que importância tem isso, dirão. Assassinou, ou não, pessoas indefesas?

As cenas alternam-se: os momentos do passado de Perry e de Dick, e o presente.

A vida da família Clutter : Bonnie, a mãe doce e assustada, encerrada na sua depressão; o pai, o rigoroso, honesto e respeitado na terra, Herb Clutter; Nancy e Kenyon em plena juventude...

Aparecem os amigos, o namorado dela, o cão Teddy –um rafeirinho coollie, que tinha um medo enorme das espingardas-, a velha égua Babe, a vida tranquila de poucos dias antes em Holcomb.

Holcomb, a aldeia situada nas altas planícies de trigais a oeste do Kansas, perto de Garden City.

Holcomb, a desconhecida, onde os que passavam perto na auto-estrada, nunca paravam...

Mas –como dizia Perry- “tudo pode mudar de repente!”

Perry acredita no destino, na fatalidade. Saído da prisão há pouco, decidira voltar ao Kansas só para vir esperar o único amigo que tivera na vida.

Willie-Jay, um homem bom, ia sair da prisão, por essa altura.

“Willie era a única pessoa em quem confiava”. Na cadeia, ajudara-o a perceber os erros que cometera, a tentar resolver os seus problemas, aconselhara-o:

Perry, queres coisas de mais, és sedento de coisas que não tens, e ressentido por isso, tens inveja da felicidade que não é tua. Não te deixes dominar por “paixões extremas”.

Perry contava com Willie. Esperara-o, sem se meter em sarilhos, como lhe prometera...

Mas o destino decidiu de outro modo: desencontraram-se e a Perry resta Dick Hickcock, e o louco plano de Dick para serem ricos e nunca mais terem que pensar na vida!

Resignado, Perry pensa: “o destino é que decidiu ...”

Depois do “golpe”, sabe que tudo vai correr mal, tem a premonição da tragédia, mas aceita-a como se aceita um “determinismo”.

Dick é um homem muito inteligente, mas um “tarado”, um perverso, mal formado. Mostra a raiva, quando começa tudo a correr mal, com risos histéricos, “espumando da boca”.

Depois do assassínio, em que os dois participam, Perry percebe que nada daquilo foi “normal”, que foram longe de mais, e diz a Dick:

“Há alguma coisa errada em nós, para termos feito o que fizemos. Vamos ser castigados”.

Willie-Jay dissera sobre Dick: “é um fanfarrão depravado”...

Dick diz-se "incapaz de matar as pulgas dum cão..."

Perry dirá dele, mais tarde: “Nunca se esquecia de matar os cães que lhe passavam por perto...”

Perry espera o castigo, “sabe” que as ilhas encantadas onde julgara poder viver e trabalhar –ter um barco, transportar turistas a pescar nas águas azuis profundas-, não existirão para ele.

Intui que os sonhos não existem...

Perde o respeito a Dick, quando o vê agir. Despreza-o, mas “les jeux sont faits”, nada há a fazer. Mais vale não se separarem agora, talvez assim exista alguma hipótese de se salvarem...

Um dia dissera à irmã: “Julgas que gosto de ser assim? Oh! Meu deus, o homem que eu poderia ter sido...!”

Agarrado à sua bem-amada guitarra Gibson, toca, canta tentando esquecer o horrível da vida, e as canções que canta são poesias que falam da morte.

Vais pôr flores quando eu morrer/ mas por que não mas deste em vida?

Também não larga o caixote cheio de recordações de “um solitário, sem um amigo de verdade”, das quais, mais tarde, o detective Nye, dirá:

“Que vida solitária e miserável a deste homem, se são estes os seus bens...”

De facto, não valem nada, coisas insignificantes. Um cobertor de bébé cor de rosa, uma almofada suja, comprada em Honolulu, fotografias amarelecidas num caderno, um molho de papéis velhos, cartas de Willie, da irmã e do pai, de que não conseguira separar-se.

Sim, “um solitário, sem um amigo de verdade”, pensa também Perry, ao guardar o seu tesouro.

“Para quê viver?”

Lembra a frase do Chefe índio, Pata de Corvo, da tribo dos Pés Negros: “a vida é como um alento de búfalo no Inverno, a breve sombra que perpassa pela erva antes de se perder no crepúsculo...”

“Sim”, pensa Perry, “o homem não é nada, uma névoa apenas, absorvida pelas sombras”...

Ele não era nada.

Perry era um assassino! Indignam-se as “ boas consciências”, as pessoas comuns, “normais” (ou formatadas?) mais a opinião pública!!

Sim. Mas Perry era também muitas outras coisas.

Perry é com certeza a personagem mais forte do livro “A sangue frio”, aquela que o autor quer compreender, descendo no mais fundo dele.

Deixemos de lado o velho tema da desculpa da “infância maltratada”, e voltemos ao da pessoa pisada, afastada, ignorada, posta de lado e que tanto quis, tanto ambicionou.

Acontece a tantos. Ontem, em 1959, como hoje em 2010...

Qual diferença? O desapontamento entre o que se sonhou e o que a sociedade deixou fazer desses sonhos é o mesmo.

Perry que, ao ódio e a uma frustração doentia, alia a poesia e a ternura, o sonho de beleza num corpo de anão, os olhos sonhadores perdidos no horizonte, agarrado à guitarra, pensa ainda nas ilhas perdidas que um dia irá ver com Dick...

Perry, que quis guardar um pouco do seu lado “bom” -entre a infantilidade retardada e uma certa ingenuidade, arrastando atrás as amarguras, penas, e desejos irrealizados- é levado pelos actos (pelo destino, diria ele) a pender para a “face escondida da lua” que existe em todos os homens.

Rodeia-se de defesas, de insensibilidades súbitas, mitomania, para sobreviver aos sonhos enormes que sonhara e se desvaneceram.

Ele que quisera tanto...

Salvas as devidas distâncias (mas um homem não é sempre um homem?), lembro outro desesperado, Mário de Sá Carneiro:

"Um pouco mais de sol

-eu era brasa.

Um pouco mais de azul

-eu era além...

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém..."

Entre o além e o aquém, na breve ponte que une e desune os dois, há a zona de sombra em que se move Perry. Nas duas realidades, uma é destruída, de repente, por um acto.

Recorda os irmãos que se suicidaram, o suicídio rondou sempre o seu pensamento.

Não conseguia encontrar muitas razões para continuar vivo.

“Os sonhos ficaram todos para trás...” Podia matar-se...

Mas não será esta a sua escolha...

Poucos livros me entristeceram tanto como este.

Não há saídas, não há explicações, não pode haver justificações para certos actos.

Dir-me-ão: a vida é assim... Os criminosos devem pagar!

A qualidade do livro de Truman Capote é a de mostrar que a realidade não é a “preto e branco” (ou a Technicolor, como nos filmes), nem há só os bons e os maus, nem nada está 100 % certo ou errado.

Nada é definitivo.

Mas há o irremediável.

Que o autor se tenha “deslocado” para esta acção e que tenha acompanhado até ao fim o que era de “acompanhar”, é uma atitude exemplar!...

Mostra que os matizes, os claro/escuros, existem, mesmo nos assassinos.

Sim, é o que Truman Capote (2) nos pretende dizer.

E consegue-o, na sua imensa humanidade: a de quem conheceu o sofrimento.

Segue-o na “missão” a Kansas City, a amiga de sempre, Harper Lee, que conhecemos do livro “Por favor, não matem a cotovia”.

Com 35 anos de idade nessa altura, Truman Capote guarda um pouco da ternura da sua novela “Harpa de Ervas” (The grass harp), livro bom.

Capaz de perceber o mundo da infância e da adolescência -e falar dele-, do mesmo modo foi capaz de falar dos deserdados da vida, heróis negativos, à maneira de Dostoievski : os possessos.

Resta-nos na névoa Perry, crédulo, imaturo e supersticioso, que pensa que tudo aconteceu porque “tinha de ser”...

Ele e a sua falta de sorte...

“Um pouco mais de sol...”

Quem sabe? Talvez.

O sonho não existia afinal...

(1) Um pouco da vida ed Truman capote: nasce em new Orleans, em 30 de Setembro de 1924 e morre em Los Angeles em 27 de Agosto de 1984. Filho de Archulus Persons, advogado que não exerce e da jovem Mae, de 17 anos, vive os primeiros anos na pobreza e instabilidade. os pai separam-se cedo, a mãe volta a casar e ele vive dos 4 com familiares no Alabama.

Deixo-vos o livro, "A sangue frio", meus queridos leitores, para o irem ler...

Com a publicação de “A sangue frio”, T.C reforça a sua reputação de um dos melhores escritores americanos do século XX.

Truman Capote dança com Marilyn Monroe, capa do livro de Capote, "Música para Camaleões".

terça-feira, 27 de julho de 2010

Ainda José Rodrigues Miguéis e "Uma Aventura Inquietante": um contributo...



Gostava imenso que espreitasse um pequeno texto que escrevi sobre o JRM no ano passado (1 página ou por aí).

Há uma ideia a nortear os textos (Viagens, deslocações…).

Mas o convite é para que veja as três citações que retirei da obra dele.”


Li e gostei. Além das referidas "citações", deixo também um excerto breve da introdução de Lurdes Sampaio, no artigo cujo "link" vem no final da página:



JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS


1901 - 1980

"Nasceu em Lisboa, mas viveu expatriado cerca de quatro décadas nos E.U.A., apenas interrompidas por uma estada, entre 1949-50, no Brasil e por regressos esporádicos a Portugal (alguns prolongados como em 1946-47 e 1957-59).

Licenciado em Direito Licenciado em Direito em 1924, e em Ciências Pedagógicas em 1933 (Bruxelas), antes de emigrar, José Rodrigues Miguéis exerceu a advocacia, foi delegado do Ministério Público e professor do ensino secundário.

Colaborou activamente, desde os anos 1920, na imprensa periódica, destacando-se a sua militância n’A República e na Seara Nova, tendo, com Bento de Jesus Caraça, dirigido o semanário O Globo (1933).

Menos activa nos E.U.A., esta vocação jornalística recrudesce no pós-25 de Abril, mediante uma colaboração intensa no Diário Popular (1975-1980).

O seu empenhamento político em causas cívicas e humanitárias manifesta-se ainda enquanto estudante universitário e continuará nos E.U.A., sob a forma de artigos e intervenções públicas em defesa dos emigrantes luso-espanhóis e da crítica ao franquismo.

Em Nova Iorque funda o Clube Operário Português e, em 1961, é eleito Correspondente da Hispanic Society of America e da Communità Europea di Scritori.

O caso de “exílio” de José Rodrigues Miguéis é bem eloquente quanto aos estratagemas do Estado Novo na repressão da vida intelectual portuguesa.
Com o nome censurado nos jornais, proibido de escrever na imprensa, desiludido com a advocacia, Miguéis condenou-se, como se sabe, a um auto-exílio nos E.U.A.."


Aqui seguem, em baixo, as "citações" que acho de facto bem interessantes: viagens, exílio, é o tema do artigo que Maria de Lurdes Sampaio publicou nos "Cadernos de Viagens", do Instituto de Literatura Comparada.


Sabemos racionalmente que nunca se volta ao lar, nunca se repete um gesto, acto, situação, emoção ou pensamento, como (…) nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Somos irreversivelmente arrastados, numa curva indefinível, através do ignoto do que somos uma parte mínima. Ora, não voltar ao passado, ou não o perpetuar no presente, é perder o que somos-fomos, até como memória, que é quanto dele nos resta.” (“Nota” a Nikalai, Nikalai: 254).


“Com grande espanto, vejo logo à cabeça da lista esta coisa inesperada:

Sopa de nabos com feijão branco à portuguesa.


Nabos! Em Boitsfort! E feijão branco à portuguesa! Dei um pulo que fez sorrir a criadinha roliça, loira e flamenga a olho nu, que desenvoltamente se viera postar a meu lado.Como a todos os portugueses, sempre me alvoroçou encontrar lá fora, fosse onde fosse, um reflexo da nossa influência civilizadora. Não há português digno do nome que, passando por Paris, não vá abrir a boca de admiração a uma esquina da Rue de Lisbonne ou do Boulevard Pereyre; que não sinta espicaçá-lo uma ponta de orgulho ao ver, em Bucareste ou Nova Iorque, a tabuleta dum mercador chamado Portugal ou Portugalov, ou achar a cada passo, por esses restaurantes, as clássicas ‘ostras portuguesas’ ou a sopa de tomate a que chamam
portugaise, talvez em homenagem à nossa nunca desmentida tesura.

Uma cidade chamada Lisbon, no Ohio ou no Maine (ainda há outras), ou mesmo Angola (Indiana ou Nova Iorque), enche-nos o peito de ufania. Uma simples refeição ao madère num romance de Dumas, ou ao porto numa novela russa; a menção duma personagem cosmopolita de apelido Faria ou Paiva, bastam para nos compensar de infindos amargos de boca patrióticos. Vaidades perdoáveis em quem, como Pedro Sem, já teve e agora não tem. (…) Quando a pequena me serviu a sopa, a fumegar numa funda e portuguesíssima tigela de barro vidrado de Estremoz, o meu assombro cresceu: era a legítima, a insofismável sopinha familiar de feijão branco! Ataquei-a com todo o fervor da minha gastronostalgia, e esqueci por completo o ensaio de bordoada que me preparava para aplicar à nossa culinária.” (Uma Aventura Inquietante, 9.ª ed.: 12-14).



“[A]quela era a América dos seus sonhos de menino; a América dos seus sonhos ilimitados, dos rios diluviais, das pradarias em flor, das manadas de búfalos, dos trilhos sem fim, dos índios livres – a América virgem, primitiva, que ele pressentia e nunca pudera encontrar, que talvez nunca tivesse existido senão nos livros, no sonho…

Não importa, era essa que ele buscava, a sua América, El Dorado só dele, secreto e imenso. (…) Conhecia as estradas onde só há lugar para automóveis, as vias férreas que se desdobram ao infinito, eternamente convergindo para divergir de novo, as cidades cancerosas, as fábricas ciclópicas, os silos e armazéns, o negrume das favelas, o tumulto, os distantes casais ensimesmados em monotonia e desconfiança, as fazendas em ruínas e pó, os negros desalentados, e os brancos reduzidos, como eles, à miséria e à susperstição. (Para que os tinham trazido de além-mar, se não podiam preservar o Sonho?).”


(“A Esquina-do-Vento”, in Gente da Terceira Classe, 6.ª ed.: 112)


Nota nº 1

Deixo este link para os que possam ter curiosidade em "aprofundar" o conhecimento de José Rodrigues Miguéis, nesse artigo muito completo do ILC:

JOSÉ Claudino RODRIGUES MIGUÉIS - Instituto de Literatura ...

(E é só clicar…)

Nota nº 2

Quem é Maria de Lurdes Sampaio?

Jovem Professora Universitária, ensina, além de "Teoria da Literatura" (e outras disciplinas), "Literatura Policial".

Já falei dela algumas vezes, a propósito de "escolhas" ou "consultas" policiais. (1)

De facto, pode dizer-se que é uma "especialista de literatura policial", em Portugal.

(1)

Referi-me já a M.L.S. num "post", no meu blog, a propósito de uma tese (Philip Marlowe) orientada por esta professora:

Título do post (31 de Outubro de 2009): "Citando uma tese sobre Raymond Chandler, Marlowe" (e onde se fala também de Fernando Pessoa e de xadrez...)


Seminário: O Policial na Literatura e no Cinema
Docente: Maria de Lurdes Sampaio
Mestranda: Magda Peixoto Barbeita
Título: PHILIP MARLOWE

Maria de Lurdes Sampaio publicou, entre outras coisas, dois livros de carácter bem diferente:

1) de estudos da "arte do crime":

"Detecção e castigo" ( livro organizado em colaboração com Gonçalo Vilas-Boas, Presidente do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa)

Edição/reimpressão: 2001

Páginas: 248

Editor: Granito Editores

2) de literatura portuguesa:

"Aventuras Literárias de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão"

Edição/reimpressão: 2006

Páginas: 217

Editor: Angelus Novus

domingo, 25 de julho de 2010

Ler, ler, ler...onde quer que estejam!



Penso que mais ou menos todos sabemos o que procuramos para esses dias de repouso que podem ser "vividos" nos mais variados sítios, ou, apenas, em casa... Fazendo um horário diferente, fugindo à mo
notonia dos dias, recusando-nos a isto ou aquilo para esquecer durante um tempo as responsabilidades, numa qualquer forma de alheamento...

E aqui estão os livros...

Para mim são uma companhia nestes momentos de “svago” como dizem os italianos...

Mas não quero que pensem que o digo com presunção!

Não, quem me conhece sabe que não é...claro. É mais uma forma de “comunicar”, dizer: "eu gosto disto, e tu? Aconselha-me, também, diz-me os livros de que gostaste"...

E pode haver sintonias, simpatias, ou não.

Mas a troca de ideias e de leituras é sempre útil...

É verdade, não posso esquecer: descobri um blog que me interessa muito: “ainda é de dia”.

Acabado de “nascer”- e ler-, descobri nele uma verdade, uma sensibilidade, uma simplicidade que me encantaram: vão lê-lo!

E agora vamos à lista dos livros...

Livros fáceis de encontrar, traduzidos, foi essa a minha ideia hoje...

Primeira escolha:

Harper Lee: “Por Favor, Não matem a Cotovia”, Difel, 2010.

Eu acrescento:

"Por favor, vão ler este livro! não imaginam como é bom lê-lo! Comprem para os vossos filhos também... Ofereçam a toda a gente!" Harper Lee é uma mulher fantástica, basta ler o livro dela. Era a grande amiga de Truman Capote, que também não posso esquecer: "A Harpa de Ervas", "Outras terras, outras gentes" e o -terrível, mas muito bom- "A sangue frio"!

Lev Tolstói: "A Morte de Ivan Ilitch" (Editorial Presença, Portugal, e L&PM, Pocket, no Brasil), “Guerra e Paz” (tradução directa do russo de Nina e Filipe Guerra, respeitando a "pronúncia" dos nomes...)


capa da 1ª edição russa de "Guerra e Paz"

O romance “Ana Karénina” (Relógio d'Água, 2010)

Virginia Woolf: "Rumo ao Farol" (2008) e outros:

"Orlando" (2010), "Os Anos" (2010), publicados -feliz ideia!- na Relógio d' Água, assim como "Mrs. Dalloway" (há alguns anos já);

Nicolaï Gogol: “Avenida Nevski” saiu (Biblioteca Independente, Assírio & Alvim), há mais tempo mas vale a pena procurar esta maravilha do grande Gogol.

Anton Tchekhov: “Contos”. Não posso deixar de referir Tchekhov: é tão bom lê-lo! Há várias traduções, em várias editoras. Presença é uma delas, a Relógio d'Água outra, Assírio & Alvim outra...

O livro "A Minha Mulher" foi publicado pela Quasi. Enfim, não faltam editoras!

Joseph Conrad: “O Agente Secreto” ou outro livro dele, todos os que encontrarem valem a pena...( a Assírio & Alvim publicou alguns, "Histórias Inquietas"?)

Graham Greene: "O rochedo de Brighton" (que eu adorei...); "O Factor Humano" -o imprevisível -e quantas vezes "destruidor" de vários planos políticos e etc- "factor humano", que é o que no fundo nos "move" a todos...

E ainda:

John Le Carré: “Um homem muito procurado”, “O Canto da Missão”, Dom Quixote (a Dom Quixote tem vindo a publicar muitas das obras deste escritor, "As gentes de Smiley", por exemplo, belo livro de espionagem)

John Steinbeck: "Ratos e Homens" (vi uma edição da L & PM, boa colecção de bolso, Brasil); "A Pérola" -sempre!, foi talvez o primeiro livro sério que li, muito novinha, e durante noites até sonhava com a pérola, com o escorpião, e com o pequeno Koyotito!

Marcel Proust: experimentem a ler o 1º volume de "A la Recherche du temps perdu": há uma boa tradução do poeta Pedro Tamen, "No caminho de Swann" ou o 2º, "As raparigas em flor" (?, não tenho a certeza do título...)

Yasunari Kawabata: "Terra de Neve", "Mil Grous". Tantos outros livros dele... Os inesquecíveis "Contos da palma da mão" -espero sempre que alguma editora se decida a escolhê-los...porque contos exemplares!

No Brasil, há uma bela edição (com uma capa linda!), de "Beleza e Tristeza" de Kawabata...


É incompletíssima esta lista, é óbvio... Pretendo que seja apenas um "apoio" para os que estejam hesitantes...

Boa Leitura, onde quer que estejam!

Nota 1: os meus amigos brasileiros não são nunca esquecidos, tento "saber" as edições todas em português (que é só um!). E não estou de acordo com nenhum "acordo ortográfico": é desnecessário!...

Nota 2: A propósito: alguém sabe qual é o nome da edição brasileira de "O Moinho à beira do Rio", da grande George Eliot? Uma leitora brasileira perguntou-me se eu sabia, até agora não consegui informação, mas já pedi...