quarta-feira, 7 de julho de 2010

Era bom voltar a casa naquele tempo...


O meu pai, a minha mãe, a minha irmã mais velha e eu, em Sesimbra


Era bom voltar a casa, naquele tempo...

Durante anos, longe, senti a falta deles.
É duro viver sempre longe das pessoas que estiveram de um modo qualquer ligadas à nossa vida, ou à nossa infância, ou só às recordações.
Vivia noutros espaços, evoluía noutros mundos e o tempo, inexorável, passava por cima de nós.

Dizia-me uma amiga, em Israel: “não é o tempo que passa, ele permanece, nós é que passamos...”
O que é bem verdade.

Mas nós pensamos que o tempo é que passa, que as coisas mudam e se vão deteriorando na nossa ausência. Sentimos a angústia de não poder parar esse movimento que nos envelhece, a nós e aos outros que ficaram para trás.
Ao voltarmos, toma-nos o medo: seremos ainda os mesmos? A nossa aparência é igual? E eles?

Nenhum de nós é já o mesmo. Por vários motivos, claro.
Nós, porque crescemos, vivemos fora, vimos e vivemos outras experiências. Eles, diferentes também, parados alguns nas suas certezas, na convicção de que nós é que estávamos errados.

- Partir para quê?, perguntavam-me às vezes. Não se está bem na nossa terra?
Outros, que amávamos, tinham envelhecido, atingira-os a doença, estavam fragilizados, por vezes havia um certo susto neles.

Era bom voltar a vê-los.

Sim, era bom voltar a casa dos meus pais nesses tempos...

O meu pai esperava-nos a pé firme, à porta da casa da Serra. Devia ouvir o ruído do carro a descer a azinhaga, apitando para lhe dar o sinal.
Avançava um pouco, hesitante, nas lajes da calçada, aproximando-se de nós.

Via-o logo, assim que o carro dava a curva. Sentia o coração bater mais forte, os olhos molhados. Tinham passado anos...



Retrato do meu pai, na casa da Serra


O olhar vivo, as sobrancelhas grossas franzidas num ar de curiosidade, ou espanto. Os olhos brilhavam e tinha um meio sorriso: tínhamos chegado, a viagem correra bem.
O cigarro, cheio de cinza na ponta, suspenso no ar. Cuspinhava um pouco os bocadinhos de tabaco que se lhe pegavam aos lábios. Recusava-se a fumar cigarros com filtro e o seu tabaco preferido era o mais forte.

Tinha já nessa altura um enfisema, sabia que lhe podia causar a morte, mas quando lhe falavam nisso encolhia os ombros com um ar quase indiferente, ou resignado. A morte viria, de qualquer modo: e ele queria era ser eterno!

- Então?, era sempre a sua primeira palavra.
Outras viriam depois do abraço que eu lhe dava, escondendo, eu e ele, a emoção. Sempre reservados os dois, na nossa timidez, tínhamos acabado por nos entender com poucas palavras.
O nosso entendimento era feito de muitos silêncios e de compreensão.

Às vezes, sentados cá fora, na quinta, ficávamos calados, a ver a paisagem que se espraiava pela serra abaixo, passava por cima da cidade e ia continuar para além, mais para além.
Continuava nas searas sem fim e nas colinas suaves...
Era como se um halo se pousasse ao lado das nossas cabeças e, ao olhar, como em uníssono, “contemplávamos” a beleza do momento, sem uma palavra.

Era o Alentejo que amávamos.



O sol começara a descer no horizonte e ia desaparecer numa bola de fogo ardente no céu vermelho.


Eu dizia:
- Pôr do sol vermelho é sinal de calor ou vento...
E ele respondia logo:
- Calor, vais ver... Sempre calor!

Suportava mal o calor, sofria, transpirava, ficava com a respiração mais ofegante.

Mas, no momento da chegada, a primeira pergunta era:

- E a viagem correu bem?...
Tinha muito medo das estradas no Verão.
- Há novidades?

Recebia, feliz como uma criança, os jornais e revistas estrangeiras que lhe trazíamos sempre.

Ao serão conversávamos, às vezes até tarde. Nós vínhamos de Roma que ele adorava. Queria saber tudo o que tínhamos visto, se voltáramos a ver Florença, a cidade das flores que o deslumbrara um dia.


Florença, pôr do sol sobre o "Ponte Vecchio"


Perguntava-me, sempre:

- Tu não escreves? Tens tanta coisa bonita para falar. Por que não contas o que vês?

Eu sorria. A verdade é que não escrevia, reservando apenas na memória o que via. Talvez um dia...

- Contar as tuas impressões. Tomar apontamentos... Falar do que observas, enfim, um testemunho.

Para ele era importante. Eu sacudia a cabeça dizendo que não.

Leitor infatigável -dos clássicos Gregos a Musil, dos russos, desde Tchekhov e Gogol e Bunine ao seu “Deus”, Tostoi, a Thomas Mann, Canetti e Svevo-, o meu pai tudo lia, com uma sede de saber que não se esgotou nunca até ao fim.


Não se cansava de ver pintura. Viajava e em Roma, Londres, Paris eram os museus que visitava primeiro.
óleo de Paul Cézanne, um dos seus pintores preferidos, intitulado O homem do Cachimbo



Andrea del Verrocchio, "Tobias e o Anjo"

Na sua Florença amada, a primeira saída era para ir aos Uffizzi ver Verrochio, Botticelli, Leonardo.
Em Roma, o Caravaggio, Rafael. E, na Capela Sistina, procurava a Sibila Delphica, de Michelangelo, para ele a figura mais bela.
Por causa dele, eu parava sempre horas, de cabeça no ar, a olhar a figura doce, pura e majestosa de Daphne, a Sibila.


A Sibila Delphica, de Michelangelo, pintada no tecto da Capela Sistina

E por aí fora...

Andrea Mantegna, "O Cristo Morto", um dos quadros que amava


Ouço ainda a sua voz, insistindo:

- Ver a beleza! Saber! Estudar! Sair da mediocridade... Deixar a amiba que existe em nós...
Botticelli, pormenor d' O nascimento de Vénus


A obsessão dele fora escrever. Sempre que lhe passava um escritor por perto, vinha, numa quase ânsia, e humildade ao mesmo tempo, perguntar:
- Como se faz para escrever um livro?
E continuava, explicando melhor:
- Quero dizer, por onde se começa?

E agitava-se na cadeira como era seu hábito, arrastando inconscientemente, o sapato no chão.
- Não tem medo?

E transpirava, tímido, quase envergonhado. Os olhos castanho claros fixavam-nos por detrás das lentes de míope. Mexia a mão, com o cigarro, entornava a cinza fora do cinzeiro, enquanto com a outra mão mexia no livro que tinha sempre ao lado.
- Eu não sei por onde começar... Ajude-me.

Um dia começou a escrever. Imagino como sofria, porque a sua exigência era grande, e a preocupação de clareza também.
Num caderno escolar, com a sua bic preta, ia enchendo folhas. Tirava dos bolsos pedacinhos de papel dobrados, onde escrevera ideias, rabiscara frases ou guardara uma palavra que o encantara.

E as suas “Evocações das Raízes”, a sua luta, os seus anseios, como num parto difícil, foram aparecendo todas as semanas n’ “A Rabeca”, o jornal semanário mais importante da cidade.

Até que um dia os camaradas o censuraram:
- Coisas intimistas? Ó Dr. Falcão, isso é literatura de burgueses...

O meu pai aceitou a censura, calou-se, não escreveu mais nada.
Alguns anos mais tarde, os amigos lembraram-se de uma homenagem e publicaram, com o apoio da Câmara de Portalegre, os seus escritos num livro ("Feliciano Falcão Memória Viva", edições Colibri, 2003).


Oh! Sim, era bom voltar nesse tempo!

Depois da morte do meu pai, nunca mais a casa e a quinta foram a mesma coisa.

Como se ele tivesse levado atrás o encanto daquele lugar.
Dizem que quando um justo se ausenta da cidade, deixa a cidade às escuras...

A casa ficara sem luz, perdera a vida que tinha. Parecia-me vazia e estranha.
Lá fora, as árvores altas que a minha mãe mandara plantar, quando se tinham mudado da cidade, continuavam a agitar as folhas ao sopro do vento, mas era um som triste agora, e não o tilintar alegre que dantes ouvia nos ramos dos salgueiros!

Eram lindas essas árvores! No largo, havia choupos, magnólias, um cipreste. Noutros canteiros, aos lados dos muros, eram os medronheiros, a trepadeira de glicínias, arbustos de rosas de toucar, os sabugueiros e os pinheiros mansos que enchiam o chão de pinhões...

No varandim, que dava sobre o pinhal, continuavam arrumados os vasos caiados de branco, cheios de sardinheiras ou malvas, de bagas vermelhas do azevinho, de cravos. Perto da porta da sala que dava para o jardim, o alecrim e os perfumados tufos de alfazema, com que eu costumava encher almofadinhas para guardar nos armários da roupa.

As árvores agitam os ramos tristes, melancólicas, como se o Outono se tivesse instalado, de repente, para ficar.


A vela que dera luz e calor, apagara-se, pensava eu.

A minha mãe, silenciosa, vagueava de sala em sala, talvez também ela à procura desse sopro, desse calor, dessa vida, e murmurando sozinha.

Quando voltava à minha terra, depois de ele morrer, começava a ver ao longe o recorte da Serra de São Mamede, depois as duas torres da Sé. Sabia que lá no alto estava a casa.


Mas não sentia alegria, como dantes.
Era o aperto no peito e as lágrimas que teimavam em vir aos olhos. Numa espécie de bruma, via as cegonhas empoleiradas nos seus ninhos perto da estação.


Passávamos no Cemitério que fica a caminho da Serra, eu murmurava sempre, para mim, umas palavras que lhe eram dirigidas. Sentia uma calma depois, como se tivéssemos falado os dois...

Por que foste embora?


Uma vez encontrei um pássaro morto no escritório do meu pai.
Nunca ali estava muito tempo, é verdade, pois preferia estar sentado à mesa da sala de jantar, no meio do ir e vir das pessoas.

O passarinho entrara por um vidro partido e não conseguira sair. Jazia ali, caído, com o bico de lado e os olhos fechados.
Pelo vidro quebrado, entrava o vento frio gélido do Inverno.

Lá fora, a noite estava escura e a cidade não se via.

10 comentários:

  1. Janina Yekara
    chorei a ler a respeito do teu pai
    era um homem bonito!!
    beijos e saudades muitas
    dalit

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  2. Ter sido filha dum Homem assim é um valioso legado que a vida nunca lhe pode roubar.
    E como "de tal palo tal astilla",os resultados estão à vista...

    Nota-se que sente o que escreve,dá voz a sentimentos, que outros levamos calados,duma saudade parecida à sua.É muito reconfortante.Beijinhos

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  3. Muito bonito, M.João! Lembro-me bem do tio Feliciano sentado na mesa a ler o jornal de cigarro na mão, do sorriso da tia zélia, dos scones do António, da mesa grande na rua, das noites quentes de Verão passadas a brincar no jardim e muitas mais recordações... Fazem parte da minha infancia!
    Muitos beijinhos

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  4. Fico sensibilizada com o que os meus amigos dizem aqui...
    Escrever sobre o meu pai era-me necessário, queria comunicar aos outros esse meu sentimento, mostrar a pessoa que eu "vi". Receber estes comentários é a prova de que ele anda por aí, entrou no universo -ou mundividência- de pessoas que o não conheceram; e trazer saudades aos que viveram perto dele.
    Só tenho que vos agradecer...

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  5. Minha cara amiga:

    As mãos recusavam-se a escrever como se nas suas palavras visse meu pai.
    Não morre o ser que tal descendência tem.Ele está aí com mais experiência,mas bem presente.
    Obrigado pelo texto.
    Cordial abraço,
    mário

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  6. de certeza que quem lê o que tu escreves, fica emocionada, penso eu, porque tu escreves com uma simplicidade arrebatadora, eu adoro.
    Gostava de ser mais letrada....dedico muito do meu tempo ao jardim e ás flores em detrimento das leituras...muitas saudades e muitos beijinhos

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  7. Obrigado pela emoção que me deu. Gosto de me emocionar e como sabe, esta casa também me deu muito. Só mais uma coisa, gostava que um dia os meus filhos falassem ou escrevessem algo parecido sobre mim... Beijo

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  8. Lindo, lindíssimo um beijinho Maia João.

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  9. Li,emocionado...Gosto tanto de vocês. Obrigado pela beleza na escrita. Um beijo.

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