segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Notícia da revista "presença": os seus poetas

capa de "presença", desenho de Júlio


quadro de Júlio da série "o poeta"


Algumas ideias sobre a "presença"


“Surgida em 10 de Março de 1927 –pouco mais de um mês depois da primeira e frustrada tentativa revolucionária contra a ditadura militar implantada em 28 de Maio do ano anterior-, a presença deixará definitivamente de publicar-se em Fevereiro de 1940.
Ainda em pleno período de uma drôle de guerre que em breve perderá toda a drôlerie. Entre essas duas datas coubera-lhe em sorte assistir, entre nós, à constituição do chamado Estado Novo corporativo e, no plano internacional, à consolidação do fascismo em Itália, à ascensão do nazismo na Alemanha (...).

Coubera-lhe ainda o destino de ser contemporânea desse primeiro ensaio de um Apocalipse mais generalizado que foi, afinal, a guera Civil Espanhola”.

São palavras de David Mourão-Ferreira -poeta e romancista quase esquecido também...-em "Presença da Presença", texto de apresentação da edição "facsimilada" da revista, saída em 1993.

Há dias, falando de Proust lamentava eu que tão pouco se fale de José Régio e dos outros fundadores da revista, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, desse movimento fantástico, de "janelas abertas para o mundo" que foi a "presença", onde se fala pela primeira vez de literatura psicologista, de psicanálise, do inconsciente.
Onde se "revela" -e se leva a sério- o movimento do "Orpheu" -até aí ridicularizado e vilipendiado.
quadro de Gustave Moreau, "Orfeu"

Onde se abrem as portas à poesia de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos é, cedo, um dos colaboradores da "presença"), Mário de Sá Carneiro, António Botto, Afonso Duarte, Saul Dias, João Falco (Irene Lisboa).”

Na revista divulgaram-se ainda as principais obras de escritores europeus da primeira metade do Século XX, tais como Marcel Proust, André Gide, Paul Valéry, Guillaume Apollinaire e Pirandello.

As páginas da presença serviram ainda para a promoção e intercâmbio literário com vários poetas e prosadores brasileiros, à margem das iniciativas oficiais.

“Arte pela Vida e Vida pela Arte (nunca, porém, Arte pela Arte) foram sempre, afinal, os móbiles dos presencistas (..)”, diz Mourão-Ferreira.

De facto, o primeiro texto que abre a "presença" nº 1 intitula-se “Literatura Viva” e é da autoria d José Régio.

Continua David Mourão-Ferreira:

Ela foi nomeadamente a primeira revista –ou folha- de “arte e crítica” publicada em Portugal a manifestar uma viva e continuada atenção ao cinema e também uma das que melhor ensaiaram, embora com modestos recursos, múltiplas seduções de um novo e coerente grafismo. Dos seus três fundadores –Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões, José Régio- o primeiro terá sido aquele que sob este último aspecto mais determinantemente a influenciou”.

(David Mourão Ferreira- na Introdução à Edição Facsimilada que saiu na Contexto, em 1993)

O grafismo da presença é, de facto, de grande modernidade; o papel escolhido é o chamado “papel de embrulho”, ou papeluço, de textura grosseira; e usa de todas as técnicas de gravura, joga com os tipos e corpos de letras; as cores; os desenhos de artistas contemporâneos portugueses.


E a qualidade dos textos e das poesias das pinturas e desenhos que ilustram a revista. Nomes como Júlio (o poeta Saul Dias, irmão de Régio).
Ou Sara Afonso, Régio, Almada Negreiros...

Há tanto a "lembrar" sobre a "presença"! De vez em quando vou deixar aqui algumas poesias de poetas portugueses que colaboraram –ou pertenceram- à revista “presença”.

* * *

José Régio
O jongleur de estrelas e o seu destino

Marc Chagall, le jongleur
O jongleur de estrelas tem os pés de barro,
Tem as mãos de cinza...

Sôbre os pés de barro dá saltos no espaço,
Com as mãos de cinza movimenta os astros.

O jongleur de estrelas tem os olhos fixos,
Mas em todo o corpo nervos dinamistas...

Seus nervos dispersos dão um acorde único...
Não! Seus olhos fixos é que olham mil pistas.

O jongleur de estrelas é mentira: mente
Na retina baça dos que julgam vê-lo.

O jongleur de estrelas não se vê por fora
Por ser demais belo!

Ora um dia, o dedo do senhor, piedoso,
Tocar-lhe- à no corpo, tocar-lhe- á com gôso.

E o jongleur de estrelas há de desfazer-se
Sôbre os pés de barro, sobre as mãos de cinza...

Do jongleur de estrelas só restam estrelas...

- E outros brincarão com elas!

Presença nº 2, de 28 de março de 1927

* * *
Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916
Mário de Sá-Carneiro
Ápice
Chagall, o poeta em passeio. Para Chagall o pintor era o poeta...

O raio de sol da tarde
Que uma janela perdida
Reflectiu
Num instante indiferente –
Arde,
Numa lembrança esvaída:
À minha memória de hoje
Subitamente...

Seu efémero arrepio
Zigzagueia, ondula, foge,
Pela minha retentiva...
-E não pode adivinhar
Porque mistério se me evoca
Esta ideia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!...

-Ah, não sei porquê, mas certamente
Aquêle raio cadente
Alguma coisa foi na minha sorte
Que a sua projecção atravessou...

Tanto segrêdo no destino duma vida...

É como a ideia do Norte,
Preconcebida,
Que sempre me acompanhou...

(inédito, Paris, Agosto de 1913)

In “presença”, número 5, de 4 de Junho de 1927

* * *

Fernando Pessoa

Marinha


Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: teem pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dôr é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vasae...

E sobe até mim, já farto
De improfíquas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias...

(presença nº 5)

* * *

Branquinho da Fonseca


Epígrafe de um poema
Emigre ao longe... ao ceu... ao mar
mas sem dar a volta ao mundo!
- azul, num ceu sem fim, a voar,


a minha vida é um astro que circundo...

Como donzelas à janela, assim
os meus dias de outra idade
os enamoro de mim...
- pois quem está à janela é porque tem saudade.

(presença nº 5)

* * *
Mário de Sá-Carneiro


quadro de d' Assumpção, D. Quixote azul

Canção de Declínio

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d’ Astro,
E pelo espaço a Oiro se enfolou
O estandarte rial –livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada –
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada.

(poema inédito, Paris, Junho de 1913)
In “presença”, nº 10, de 15 de Março de 1928


António Botto

Canção


A nuvem que passa
O sorriso que flutua,
Tudo
Quanto intensamente vive-
O que é eterno e o que é frágil,
- Detalhe de arquitectura,
Pedaço de céu,
Tudo
Tem no espelho o mesmo peso,
O mesmo valor,
E a mesma realidade.

Anoitece nos meus olhos

- Se vens falar-me d’amor,
Vê lá bem se isso é verdade.

(In “presença”, nº 13, de 13 de Junho de 1928)

* * *

Adolfo Casais Monteiro

Trapézio

Num trapézio mal seguro
No mundo d ideia pura
Fazemos acrobacias
Para mostrar à multidão cá as deixo embasbacadas
A excelência filosófica
Dos sistemas mal atados
Com cordeis de fio pôdre.


Pingas de Chuva

Caem,
gordas
sonoras
monótonas pingas de chuva
espaçadas,
e indolentes
vão marcando uma toada:
ping pang, ping pang,
as pingas
da chuva de outono pardas.
Espapaçada
a terra mole absorve
as vagas da chuva grossa
que lenta
vai caindo,
em pingas grossas,
sonoras.
E ao cair
a chuva bate o compasso
com o som dum contrabasso.

(nº 22 da revista, Setembro-Novembro de 1929)

2 comentários:

  1. Há que reconhecer que a maioria dos poetas do "Orpheu" eram bastante inquietantes.Sá Carneiro suicida-se em Paris com 26 anos,diz Maria Aliete que "não compreenderam a sua estela nefasta de menino gordo, mal amado de amor". Pessoa é um poeta absolutamente genial, mas também quase sempre muito angustiado.
    Para mim ler boa poesia é sempre um grande prazer.Mando-te muitos beijinhos neste dia cinzentíssimo.

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  2. Não conhecia esta revista. Gostei dos poemas e dos quadros e fiquei com pena que não seja possível encontrá-la hoje como acontece com a revista Ler.

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