quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Raymond Chandler, o Xadrez e a inutilidade dos Peões.,..

Humphrey Bogart e Lauren Bacall, interpretam o primeiro filme tirado do livro "O Grande Sono"


Raymond Chadler, publicado num cofre de 5 livros, no Brasil, (ed. LPM, bolso)

"The simple Art of Murder", de Chandler (ver 3)

Raymond Chandler com o seu fiel (?) gato preto

o actor Robert Mitchum, o Marlowe de alguns dos filmes tirados da obra de Chandler

Chandler foi o primeiro a estabelecer um “código ético” na profissão do seu detective principal, Marlowe, o detective humano.

Humphrey Bogart, a figura ideal do tal detective "impecável", o que se coloca "acima" das coisas que se lhe deparam...

Achava ele que o detective privado deveria estar acima de todas as coisas que lhe aparecessem.

Deveria ser, pois: "The best man in the world and a good enough man for any world." “O melhor homem do mundo e suficientemente bom para qualquer mundo.”)

Pus o tabuleiro de xadrez em cima da mesa do café e dispus as pedras para um problema chamado A Esfinge. Vem nas páginas finais de um livro sobre xadrez de Blackburn, o mago xadrezista britânico, talvez o jogador mais dinâmico que já existiu, embora ele não tivesse conseguido chegar a lado nenhum com o tipo de xadrez de guerra-fria que hoje se pratica. A Esfinge é em onze jogadas e justifica o nome que tem. Os problemas de xadrez raramente vão além de quatro ou cinco jogadas. Para além disso, a dificuldade em os resolver aumenta quase em proporção geométrica. Um problema de onze jogadas é tortura em estado puro.
Acendi o candeeiro de pé, voltei junto da porta e apaguei a do tecto; atravessei outra vez o aposento e parei junto do tabuleiro de xadrez, colocado em cima da mesa de jogo.
Tinha um problema para resolver, mas, como acontecia com muitos outros problemas da minha vida, não sabia que solução dar-lhe. Desloquei um peão e, em seguida, tirei o chapéu e o sobretudo e atirei-os para uma cadeira.
Olhei de novo para o tabuleiro de xadrez. O movimento do peão fora asneira; por isso repu-lo na casa anterior. Os peões não valem nada, no xadrez; não é um jogo para peões.”

(in The Big Sleep)
Robert Mitchum no filme "O Grande sono"

Recorro a uma tese de mestrado de que já aqui falei há tempos, de Magda Barbeito (1):

Para reflectir sobre o enigma que a mulher de Roger representa, mas igualmente da incerteza e indefinição das suas próprias considerações.(...) A guerra fria que aqui se joga refere-se à guerra limpa, traiçoeira e dissimulada de Eileen Wade, espelhando o seu carácter perigoso, cruel e fatal.
Marlowe sabe (ou intui) que esta guerra fria que se encontra a travar tem uma dimensão ainda mais perigosa que outras, não só porque não é declarada abertamente, mas sobretudo porque as duas forças opostas se igualam num empate. Pelo menos por enquanto.”

Voltemos a Chandler, quero dizer, a Marlowe:
“Ela desligou e eu preparei o tabuleiro de xadrez. Enchi um cachimbo, alinhei as peças preparei o tabuleiro de xadrez, passei-lhes a inspecção a ver se tinham a barba bem feita e não lhes faltavam botões, e joguei uma partida de campeonato entre Gortchakoff e Meninkin, setenta e duas jogadas até a um empate, um exemplo de primeira de uma força irresistível embatendo num objecto inamovível, uma batalha sem armaduras, uma guerra sem sangue.”

“O detective chandleriano –continua Magda - joga xadrez, que ele caracteriza mais uma vez de forma irónica como “um desperdício tão elaborado de inteligência humana”, não por divertimento ou porque o hobby lhe tenha sido impingido pelo seu autor. Mas a verdade é que Marlowe também não joga propriamente xadrez, sozinho ou com um adversário, mas antes tenta solucionar desafios xadrezistas, que funcionam como uma espécie de símile da sua própria actividade de private eye.”

Diz Chandler, pela boca de Marlowe:

“Na minha actividade, há um tempo para fazer perguntas e um tempo para deixar um sujeito ferver em fogo brando até deitar tudo cá para fora. Todo o polícia que vale alguma coisa sabe isso. É muito ao estilo do xadrez ou do boxe. Com certos tipos, temos de os atacar e mantê-los em desequilíbrio. Com outros, basta ir dando uns socos, e acabam por se vencer a si próprios.”

De novo Magda Barbeito:
"Numa passagem de The Long Good-Bye, Marlowe assume-se como um general passando revista às suas tropas, as peças de xadrez, enquanto prepara a sua estratégia de novo.
Se é certo que o xadrez constitui uma metáfora dos pensamentos de Marlowe, a sua referência no romance The Big Sleep tem, todavia, uma dimensão substancialmente diferente das já referidas precisamente por ocorrer num momento de grande tensão do detective e que corresponde a uma urgência ainda maior de agir de forma racional, calma e premeditada, o que vem ainda mais acentuar o seu pendor reflexivo. "

Termino, voltando à frase inicial de Chandler: "O detective deve ser o melhor homem do mundo."
Diz, a dada altura do romance, Philippe Marlowe:

"Tinha um problema para resolver, mas, como acontecia com muitos outros problemas da minha vida, não sabia que solução dar-lhe. Desloquei um peão e, em seguida, tirei o chapéu e o sobretudo e atirei-os para uma cadeira.
Olhei de novo para o tabuleiro de xadrez. O movimento do peão fora asneira; por isso repu-lo na casa anterior. Os peões não valem nada, no xadrez; não é um jogo para peões.”

Logo: o detective "que deve ser o melhor homem do mundo" não consegue, se respeitar o seu código ético, entrar no mundo do "xadrez", onde comandam as regras dos generais, poderosos que têm torres, barões, rainhas e reis. E a indiferença sobre a sorte dos peões...

Ele, como simples "peão", não vale nada.

Para se defender, e ganhar, restam-lhe as suas armas: a inteligência, o sentido da justiça, o respeito por si, para solucionar os tais problemas xadrezísticos que se lhe deparam, permanecendo, no entanto "acima de todas as coisas que se lhe deparam..."

Bem, falamos de personagens imaginárias, de ficção -mas míticas- como Marlowe ou Sam Spade de Dashiel Hammett, que defendem esse código de honra. Têm a sua ética.

A Ética, tão esquecida nesta vida, pelo comum dos mortais!

Ah! Mas estes últimos - estes "nós todos" - não são os "melhores homens do mundo"! É a desculpa deles...


(1) Magda Peixoto Barbeita, trabalho de mestrado intitulado “Philippe Marlowe”, do seminário: “O Policial na Literatura e no Cinema”, ministrado pela professora Maria de Lurdes Sampaio na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2008/2009

(2) Uma passagem do peema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis:

Os Jogadores de Xadrez
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse(...)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indif'rentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
(...)
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra, a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Ricardo Reis

(3)

The Simple Art of Murder" refers to both a critical essay and a collection of short stories written by hard-boiled detective fiction author Raymond Chandler.
The essay was first published in The Atlantic Monthly in December 1944. It was reprinted in 1950 by Houghton Mifflin along with eight of Chandler's early stories pre-dating his first novel, The Big Sleep.
The essay is considered a seminal piece of literary criticism. Although Chandler's primary topic is the art (and failings) of detective fiction, he touches on general literature and modern society as well.

1 comentário:

  1. Não sou boa jogadora,e o meu parceiro também não era, talvez por isso consegui ganhar a partida fazendo xeque-mate graças a um peão...
    Nunca sabemos a utilidade de uma coisa até que não a pomos à prova.Mais beijinhos

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