quarta-feira, 3 de novembro de 2010

"Quem é Marcel Proust?" Resposta a uma amiga...

Marcel Proust, pintado por Jacques-Émile Blanche

Renoir, "a primeira saída" -que lembra "À sombra das raparigas em flor", de Proust


Marcel Proust, na varanda do Hotel Danieli, em Veneza


Claude Monet e Veneza, il Palazzo Mula


Quem é Marcel Proust?..." perguntou-mo, há dias, uma jovem ex-aluna, amiga sensível, leitora atenta, amante de poesia e de literatura.

Essa amiga é estudante universitária e ao mesmo tempo trabalha, num emprego desinteressante e de atendimento duro. Perguntou-me quem era Proust, e se valia a pena ler “À la recherche du temps perdu”.

A pergunta é compreensível. A verdade é que muitos ouviram falar de Marcel Proust e da sua "busca do tempo perdido", mas poucos o conhecem ou, ainda mais raros, o leram, sobretudo as gerações mais novas sem qualquer contacto com a literatura francesa, já que a língua francesa pouco se ensina hoje, na escolas. No entanto, Proust é uma figura chave da Literatura francesa e da Literatura universal.

Manet, "a varanda"

Manet, "a praia"

Tentarei da maneira mais clara falar de um escritor complexo. Nasceu em 10 de Julho de 1871, em Auteil, numa família da alta burguesia francesa.
Morreu a 18 de Novembro de 1922, em Paris.
Criança precoce, doentiamente sensível, frágil, asmática, “vulnerável”, adolescente interiorizado e observador, Proust vai ser o grande escritor do subconsciente, da análise psicológica, da memória.

Marcel Proust licenciou-se em Direito (1893) e Literatura (1895). Essa minha amiga também está a estudar Direito...

“Até aos 35 anos movimentou-se nos círculos da sociedade parisiense. Depois da morte dos pais isolou-se no seu apartamento de Paris, onde se entregou profundamente à composição da obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido (1914-27)".

“À la Recherche du temps perdu” vai ser a sua obra-prima, à qual dedicará toda a vida.
Doente, com crises de asma fortes, em tempos em que pouco mais havia do que os chamados “pós da Abissínia” para aliviar a falta de ar, Proust fecha-se em casa dias inteiros, saindo só à noite-

E, pouco a pouco, vai “recriar” esse passado e as delicadas figuras que o povoam e povoaram os seus sonhos.

Renoir, "senhora ao piano"


Perpassa na sua obra um "ar" da época em que viveu e para o ilustrar recorro aos impressionistas franceses, tão próximos os encontro uns do outro... Proust era, aliás, grande apreciador de pintura e de todas as formas de arte.

“Longtemps je me suis couché de bonne heure… », começa ele a contar.
De facto, "Apagada vela, os olhos fechavam-se tão depressa que nem tinha tempo de dizer: adormeço".


E, como a Sherezade de "As Mil e uma noites », o encanto repete-se…

Ao contrário do que defendem certos críticos do seu tempo, por exemplo, Sainte-Beuve, o eu profundo que o escritor exprime pode ser muito diverso do que apresenta o escritor- homem de todos os dias.

Esse outro “eu” do escritor devemos recriá-lo sim no fundo de nós mesmos e, só assim, então, o entenderemos.

Propunha ele que, ao lermos os seus livros, procurássemos ser os “leitores de nós próprios”...

Por isso não vou dizer muito sobre a sua vida, hábitos, etc.

Ler La Recherche é, pois, a melhor maneira de tudo compreendermos do que é essencial sobre o escritor Marcel Proust! O resto, bem interessante também, vem a seguir...
Berthe Morisot, o parque

Livro não fácil de se ler e que exige o seu tempo (para cada um de nós diferente), até ao momento em que, sem darmos por isso, somos “arrebatados” e o nosso eu e o eu de Proust se confundem.

Talvez porque, ao olharmos o que ele “vê”, parece-nos estar a olhar dentro de nós próprios e “ver”, ali mesmo, essa realidade...

o rio Loire, em Illiers

André Gide diz:

Proust “é alguém cujo olhar é infinitamente mais subtil e atento do que o nosso, e que nos empresta esse olhar enquanto o lemos. E como as coisas que olha (de modo tão espontâneo que parece nem estar a observar) são as mais naturais do mundo, parece-nos constantemente, ao lê-lo, que foi dentro de nós que ele permitiu que olhássemos. (...) imaginamos ter visto certo pormenor, reconhecemo-lo, adoptamo-lo, e é o nosso próprio passado que esta riqueza vem enriquecer”.

(Em Lettres à André Gide. Claude Mauriac, em “Proust par lui-même”, pág. 132, Editions du Seuil, Paris, 1959)

Proust sabe que o que vivemos e passou, só na memória o podemos recuperar.

Para isso, basta o perfume de um bolo, uma “madaleine”, acompanhando o chá, para trazer em miríades de imagens o nosso (no dele) passado...


a casa de Combray-Illiers, na região do Loire


E, nessa busca e nesse encontro, tudo se espraia aos nossos olhos: a análise dos sentimentos, sejam eles o amor e o seu companheiro o ciúme, a nostalgia, a tristeza ou a felicidade, de uma alma super sensitiva, doentiamente emotiva.
capa da edição espanhola de "A la sombra de las muchachas en flor"

Renoir e -por que não?- "Les jeunes filles en fleurs"...

Há anos saiu, em Portugal, uma óptima tradução da obra em português (**), pelo poeta Pedro Tamen, cuja leitura vos aconselho.

Diz o tradutor, numa entrevista concedida ao jornal Público (Mil Folhas, 21/6/03):

“(...) não é possível contar 'Em Busca do Tempo Perdido' a ninguém, não existe como história, há meia dúzia de peripécias, de personagens... Ao nível das peripécias há muitas coisas apaixonantes. (...)

Hoje quando leio La Recherche, é aos poucos, abro uma página aqui, outra ali, em capítulos diferentes.

Com Proust, o prazer da leitura é sempre enorme. Bastam poucas páginas...

Recordo um programa (vários episódios) apresentado pela televisão franco-alemã Arte, ( há uns bons dez anos!).

Falava dos que “amavam” Proust. Multidão heteróclita de velhos e jovens, de classes sociais diferentíssimas, mulheres e homens, doutores ou simples empregados de escritório, estudantes, etc.

Num dos episódios, entrevistavam um chauffeur de táxi, em Paris, que trazia sempre -ao lado das mudanças- uma edição de bolso da “Recherche”.
Onde quer que parava, abria-o como uma bíblia, lia um pouco, e, quando o cliente chegava, lá partia, resignado, para, um pouco mais adiante, voltar a pegar no seu livrinho e continuar a leitura.

E o que este homem dizia eram coisas simples: “a companhia que Proust lhe fazia”, o que “aprendera com ele sobre as relações humanas”, como hoje “observava as pessoas de maneira diferente”, como se sentira “enriquecido” depois de o ler...

Voltam-me as imagens e descrições inesquecíveis pela beleza e pela sensibilidade, da infância.

Imagino o jovem Marcel e a mãe. Essa relação delicada, fundamental na vida de Proust.


As insónias quando ela -ocupada por vezes com visitas e jantares em casa- não vinha dizer-lhe "boa noite", antes de ele adormecer.
"A única consolação, quando subia para me ir deitar era saber que a minha mãe me vinha dar um beijo quando estivesse deitado."

pintura de Manet que poderia representar a mãe do pequeno Marcel...

A casa das férias, em Combray imaginada (que era afinal Illiers), a tia Léonie que um dia, numa manhã de domingo, lhe oferece um chá com uma madeleine -cujo perfume, anos mais tarde, vai "desencadear" todo o fio das memórias...

esta figura de Mary Cassat, "a chávena de chá", poderia bem ser a sua tia Léonie...

A cozinha da casa de campo, as figuras que se movem numa luz coada dos raios de sol, numa quase penumbra, as cores suaves que me lembram sempre os interiores de Vermeer, pintor que ele amava! Acima de tudo o quadro "Vista de Delft".

Vermeer, a leiteira
Vermeer, Vista de Delft

Monet, mulheres com sombrinhas

E a estradinha que levava à igreja, onde passeava nas manhãs de domingo, com sebes perfumadas de ramos de aubépines (tradução: espinheiro-alvar, pilriteiro) que descreve de forma inigualável de modo que me parece sempre vê-las... A palavra sugere-me sempre uma cor rosada, flores pequeninas... Confesso que nunca vi a tal aubépine, mas é como se dentro de mim ela existisse desde sempre... Esta é a magia que certos escritores possuem...

O que posso dizer mais? Procurem esta magia...

Digo-vos que o leiam, claro...


NOTAS:

(*) “Contre Sainte-Beuve” afasta-se de um tipo de crítica que defendia que -para perceber um escritor- era imprescindível tudo saber da sua vida, rodear-se de todas as informações possíveis o dito escritor, ler atentamente a correspondência, interrogar as pessoas que o conheceram em vida, etc. Não é imprescindível, claro. Basta pensar na Ilíada e em Homero ou nas tragédias de Sóflocles, ou até na "Menina e Moça", de Bernardim Ribeiro... Quem foram eles? No entanto as suas obras "vivem". Mas pode ser interessante saber um pouco mais e às vezes temos uma certa pena de nada saber dessas vidas...

(**) Os sete volumes a que me refiro são os que constituem a edição portuguesa de "Em busca do Tempo perdido", Relógio d'Água, publicados entre 2003 e 2005:

1. "Du côté de chez Swann" (1913) :
No caminho de Swann
2. "À l'ombre des jeunes filles en fleurs" (1919) que, nesse mesmo ano, recebeu o Prémio Goncourt : À sombra das raparigas em flor
3. "Le Côté de Guermantes" (publicado em 2 volumes, 1920 e 1921) : O caminho de Guermantes
4. "Sodome et Gomorrhe" ( publicado em 2 volumes em 1921-1922): Sodoma e Gomorra
5. "La Prisonnière" (publicado postumamente em 1923): A Prisioneira
6. "Albertine disparue" (publicado postumamente em 1927, título original: La Fugitive):
A Fugitiva -Albertine desaparecida
7. "Le Temps retrouvé" ( publicado postumamente em 1927) : O Tempo reencontrado

Podem ouvir um compositor de que Proust gostava muito.

César Frank: Prelúdio fuga e variações, em órgão
http://www.youtube.com/watch?v=9aKi6erT0FA

Outro compositor que ele amava: Robert Schuman, Traumerei, tocado pelo grande Horowitz
http://www.youtube.com/watch?v=qq7ncjhSqtk

Mais alguns dados sobre o autor e a sua obra:

”Proust fala da Primeira Grande Guerra na sua história, incluindo o bombardeamento aéreo de Paris; os pesadelos de juventude do narrador transformaram-se num campo de batalha, com 600.000 alemães mortos na luta por Méséglise, e com Combray dividida entre os dois exércitos.

O papel da memória é central no romance. Quando a avó do narrador morre, a sua agonia é retratada como um lento desfazer; em particular, as suas memórias parecem ir-se evaporando dela, até já nada restar. No último volume, O Tempo Reencontrado, o autor utiliza uma analepse, e faz com que o narrador recue no tempo das suas memórias, em episódios desencadeados por recordações de cheiros, sons, paisagens ou mesmo sensações tácteis”.

”Uma grande parte do romance debruça-se sobre a “natureza da arte”.
Proust avança com uma teoria da arte em que todos somos potenciais artistas, se por arte entendemos transformar as experiências de vida do dia a dia em algo revelador de maturidade e entendimento”.

”A homossexualidade é um dos temas do romance, especialmente em Sodoma e Gomorra e nos volumes seguintes”.


Vídeo sobre Prouste "À la Recherche du temps perdu"

http://www.youtube.com/watch?v=YU725YgYSe0

Penso continuar a falar de Proust da próxima vez. Espero não vos cansar...

3 comentários:

  1. Tu nunca cansas!
    Permito-me compartir contigo uma transcrição de
    "A Fugitiva" que me parece belíssima:"O que amamos está no passado, consiste no tempo que perdemos juntos, não necessitamos "toda" a mulher em nenhum momento.Só queremos ter a certeza de que é ela, isso é muito mais importante para os que amam do que a beleza.
    (...)Estar ao lado dela, ainda que se lhe tenham descaído as faces ou enfraquecido o corpo, simplesmente estar ao seu lado,só por estar com ela ou porque ela esteja connosco, ou só para que não esteja com outro". Beijinhos

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  2. Eis aqui um post e tanto!Gostei de tudo, sobretudo das pinturas.Li o Proust quando era estudante do 12º ano , há 20 e tantos anos atrás e lembro-me que foi um livro difícil de ler.
    É daquelas coisas; o cérebro regista e grava o que nos agrada e eu não consigo lembrar-me grande coisa da leitura desta obra...

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  3. Li e reli Proust ao longo de momentos muito marcantes da minha vida. É um autor a que sempre retorno porque, acho, entra em mim sem abuso iluminando o meu caminho ou, simplesmente, partilhando a minha escuridão!!

    Beijos e saudades

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