CARVER EM VERSÃO ORIGINAL?
Li há poucos meses no Nouvel Observateur que iam sair em França as “Obras Completas” de Raymond Carver (editions de l' Olivier).
Nada de estranho, aparentemente: mais uma edição completa. No entanto, trata-se de um caso especial e estranho.
Escreve Didier Jacob, o articulista: “Trata-se da história incrível de um dos grandes escritores do nosso tempo a quem roubaram a vida, o estilo e a obra –considerada por muitos como uma das mais importantes da 2ª metade do século XX.
Trata-se de um autor que foi considerado “minimalista” –simplesmente porque o editor lhe cortava os textos antes de os publicar.
Hoje, trinta anos mais tarde, as suas histórias são reeditadas com uma nova tradução, na versão original...”
Esta é a parte estranha: a “versão original”!
De facto, o editor de Carver, Gordon Lish, reduziu-lhe os livros, que lhe publicava, a metade, cortou, alterou nomes, modificou finais, substituiu páginas inteiras, mudando até os títulos de contos.
Hoje, trinta anos mais tarde, as suas histórias são reeditadas com uma nova tradução, na versão original...”
Esta é a parte estranha: a “versão original”!
De facto, o editor de Carver, Gordon Lish, reduziu-lhe os livros, que lhe publicava, a metade, cortou, alterou nomes, modificou finais, substituiu páginas inteiras, mudando até os títulos de contos.
Gordon Lish quase transformou Raymond Carver (*) noutro escritor...
Raymond Carver nasceu em 25 de Maio de 1938 no Oregon.
Raymond Carver nasceu em 25 de Maio de 1938 no Oregon.
Costa do Oregon
Cresceu em Yakima e morreu, em 2 de Janeiro de 1988, em Port Angeles, Washington.
O próprio Raymond Carver confessa, em 1973: “durante toda a vida não fiz mais nada se não beber.”
No entanto, durante a vida, fez todos os trabalhos possíveis e imagináveis: de porteiro a guarda nocturno, de segurança a empregado de limpezas num hospital, fez as coisas mais absurdas que se possam imaginar.
Também estudou, publicou poemas e ensinou inglês –o que considerava “um pouco de sol num oceano de depressão...”
E escreveu...
Páginas e páginas. Publicou os seus contos em diversos jornais e revistas, como o New Yorker e a Esquire, contos esses que mais tarde foram reunidos em livros e em colectâneas e traduzidos em dezenas de línguas.
O editor, Gordon Lish, encontra Carver em 1967. É o chefe de redacção da revista “Esquire” que começara a publicar os seus contos.
Convence-o a contar, em contos curtos, a vida das pessoas comuns.
Era o que Carver fazia já. Contava a sua experiência de vida sem alegrias, de miséria envergonhada. A solidão, o abandono das vidas das pessoas vulgares, nas grandes cidades.
Convence-o a contar, em contos curtos, a vida das pessoas comuns.
Era o que Carver fazia já. Contava a sua experiência de vida sem alegrias, de miséria envergonhada. A solidão, o abandono das vidas das pessoas vulgares, nas grandes cidades.
Em textos curtos.
Só que o editor, pressentindo uma certa falta de vontade no autor e a sua fragilidade, se encarrega de os “encurtar” ainda mais, acabando por os “estropiar”.
Em 1980, o escritor revolta-se. Gordon Lish, o editor, quer publicar novas histórias dele, depois de lhes ter cortado mais de metade!
Decide escrever-lhe e “proíbe-o” de publicar esse texto amputado.
Lish não se impressiona minimamente, corta mais um bocado e publica, na prestigiosa editora de Nova Iorque, Knopf, o livro a que altera mesmo o título, chamando-lhe “What we talk when we talk about love” (Do que Estamos a Falar Quando Falamos de Amor). O livro é publicado em Abril de 1981, sem autorização do autor.
Esta colectânea de dezassete contos vai transformá-lo, na América, em mestre do minimalismo.
O que ninguém sabia, na altura, é que a obra original de Carver havia sido brutalmente modificada pelo editor.
A "nova versão" -no fundo, a verdadeira- revela um escritor bastante diferente...
Esta colectânea de dezassete contos vai transformá-lo, na América, em mestre do minimalismo.
O que ninguém sabia, na altura, é que a obra original de Carver havia sido brutalmente modificada pelo editor.
A "nova versão" -no fundo, a verdadeira- revela um escritor bastante diferente...
"Begginers -título da edição americana- é um extraordinário conjunto de histórias passadas no Midwest americano, cujas personagens são homens e mulheres que bebem, pescam e jogam às cartas para suavizar a solidão e a passagem do tempo.
Publicada nos Estados Unidos, em 2008, depois de um minucioso trabalho de restauração dos textos, esta nova edição deve-se à iniciativa da poetisa Tess Gallagher, última mulher de Carver.
Próximo de uma certa forma de minimalismo (**), o autor é, no entanto, também, um “criador de atmosferas", revelando uma "grande dimensão afectiva, uma inclinação para a tolerância e compaixão pela condição humana" (palavras de apresentação da edição americana, in wikipedia).
Na apresentação da edição portuguesa diz-se:
“O manuscrito, que Lish cortou, encontra-se preservado na Biblioteca Lilly da Universidade do Indiana.
Os contos originais de Carver foram recuperados transcrevendo as palavras que este bateu à máquina e que estão escondidas debaixo das alterações e cortes que Lish fez à mão.”
Os contos originais de Carver foram recuperados transcrevendo as palavras que este bateu à máquina e que estão escondidas debaixo das alterações e cortes que Lish fez à mão.”
Refere a edição portuguesa, da editora "Qetzal", saída em 2010, com o título "O Que Sabemos do Amor" (Begginers, na edição em inglês), tradução de João Tordo.
No Brasil, o verdadeiro Carver está restaurado na edição integral dos seus contos originais, sob o título Iniciantes, em tradução de Rubens Figueiredo, editora Companhia das Letras (ver imagem da capa, no início do "post").
Antologia de alguns dos seus Contos, traduzidos no Brasil
É, com certeza, um escritor que vale a pena ler! Até na "versão cortada", confesso que gostei de o ler...
Queria ainda acrescentar que, destes dezassete contos, considerados obras-primas da ficção americana contemporânea, alguns foram adaptados ao cinema por Robert Altman no filme "Short Cuts".
"Short Cuts" é um filme dramático, realizado em 1993 por Robert Altman. O filme inspira-se em 9 pequenas histórias (short stories) e um poema de Raymond Carver." (wikipedia)
Deixo-vos, para terminar, um excerto do conto "Por que não dançam", traduzido para a Qetzal, por João Tordo:
"Na cozinha, ele serviu-se de outra bebida e olhou para a mobília de quarto que estava no jardim da frente. O colchão estava despido e os lençóis às riscas cor-de-rosa dobrados junto de duas almofadas em cima da cómoda. Tirando isto, as coisas estavam dispostas quase da mesma maneira como tinham estado no quarto — mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura do seu lado da cama, mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura no lado da cama dela. O seu lado, o lado dela. Pensou nisto enquanto bebericava o whisky. A cómoda encontrava-se a curta distância dos pés da cama. Passara os conteúdos das gavetas para dentro de caixotes nessa manhã, e os caixotes estavam na sala de estar. Havia um aquecedor portátil junto da cómoda, e uma cadeira em verga com uma almofada decorativa aos pés da cama. Os móveis da cozinha em alumínio polido ocupavam uma parte da entrada para a garagem. Uma toalha amarela de musselina, demasiado grande, que lhes tinha sido oferecida, cobria a mesa e pendia dos lados. Um feto dentro de um vaso estava em cima da mesa, junto de uma caixa com talheres e um gira-discos, também ofertas. Um grande televisor, modelo de cómoda, estava pousado sobre uma mesa de café, e a alguns passos desta encontravam-se um sofá e uma cadeira e um candeeiro de pé. Tinha ligado uma extensão à tomada e havia electricidade, as coisas funcionavam. A secretária estava encostada à porta da garagem. Havia alguns utensílios em cima da secretária, junto com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas. Havia ainda na entrada para a garagem um caixote com copos, chávenas e pratos, cada um dos objectos embrulhado em papel de jornal. Naquela manhã ele esvaziara os armários e, com excepção dos três caixotes na sala de estar, estava tudo fora da casa. Uma vez por outra um carro abrandava e as pessoas olhavam. Mas ninguém parava. Ocorreu-lhe que também ele não pararia."
Vão lê-lo...
(*) Raymond Carver publicou grande variedade de contos em jornais e revistas.
As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, tais como Best American Short Stories e o The PEN/O. Henry Prize Stories. (The O. Henry Award é o único Prémio atribuído anualmente às short stories de mérito excepcional. O. Henry era o pseudónimo do famoso escritor de contos William Sydney Porter (11 de Setembro de 1862 – 5 de Junho de1910).
Vão lê-lo...
(*) Raymond Carver publicou grande variedade de contos em jornais e revistas.
As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, tais como Best American Short Stories e o The PEN/O. Henry Prize Stories. (The O. Henry Award é o único Prémio atribuído anualmente às short stories de mérito excepcional. O. Henry era o pseudónimo do famoso escritor de contos William Sydney Porter (11 de Setembro de 1862 – 5 de Junho de1910).
o contista americano O. Henry
(**) O minimalismo literário foi descrito, numa célebre definição de Hemingway :
"Pode omitir-se tudo desde que se saiba que se está a omitir, e a parte omitida vai fortalecer a história e fazer o leitor sentir algo mais do que aquilo que compreende.”
Não sabia que as suas obras tinham sido cortadas pelo seu editor. Tenho dois livros de contos dele (Um tem mesmo o título "De que falamos quando falamos de amor") publicados há muitos anos pela Teorema. Vou tentar saber se foram cortados...
ResponderEliminarOlá, Gábi!!
ResponderEliminarPois eu também não sabia, mas l no tal "Nouvel Observateur" e tomei nota...Foi um amigo francês dele que fez a tradução a que me refiro. Acho que deitei fora a revista...
Depois girando pela net "descobri" mais coisas e essa "nova versão" ou antes "versão real"...
Procure na Qetzal cuja edição é de 2010.
Beijos e vá "comentando"! Fico muito contente...
Por acaso passo aqui e resolvi ler essa postagem...
ResponderEliminarCabe um cisma que tenho sobre escritores e público. Tu fala de supostas alterações no livro de Carver - não o conheço, muito menos pessoalmente - que parece-o distorcer. Mas faz diferença quando o que se escreve alcança mais gente, massas, desconhecidos como eu que nunca apertou sua mão? pra alcançar tantos parece q de qlqr jeito se distorce...
Lembro-me de un conto seu que li há tempos, Tres Rosas Amarelas.
ResponderEliminarPelos vistos Lish de certa forma "reescrevia" as obras do amigo,suprimindo sistematicamente emoções que lhe pareciam excessivas.Acho interessante o comentário de Alessandro Baricco: Carver construiria paisagens de gêlo, mas depois betava-as com sentimentos, como se tivesse necessidade de convencer-se de que apesar de todo aquel frio, eram habitáveis.Pensa que havia nele algo terrível mas também fascinante.
O que penso eu é que tu podias escrever algum conto, creio que já to disse uma vez...
Se queres eu faço de Lish...
Beijinhos
O Carver não é o meu ideal de contista, então preferia Tchekhov...
ResponderEliminarMas esse gelo que ele tem, essa solidão -com cortes ou sem cortes do Lish- atingiam-me...
Eu, um conto? Um dia. Como diz o Léo Ferré "Avec le temps..."
Beijinhos
De R. Carver só li um, para já: "Catedral".
ResponderEliminarGostei mas não fiquei deslumbrada. Vou dar uma segunda oportunidade, um dia destes.
Convido a ler a opinião que deixei no meu blog:
Http://numadeletra.com/11221.html
Cumprimentos,
Numa de Letra