Prometi dizer-vos - se gostasse da "ópera" que fui ver à Guarda, lembram-se?
Aqui estou!
Refiro-me a "Dido e Eneias", a conhecida ópera de Henry Purcell - o músico barroco inglês.
Numa encenação moderna. Estava cheia de curiosidade, claro.
Ainda não iniciara o espectáculo, e já me atraíam a luz e as sombras que se agitavam no escuro do palco.
As velinhas que iam acendendo sobre a água.Sim, porque a ópera é cantada dentro de água! Espécie de lago de águas muito baixas onde se joga a vida, onde se canta e se desespera.
Parece estranho, mas resulta.
O cenário é magnífico: uma orquestra que parece empoleirada no alto de uma velha fábrica abandonada, junto do telhado e das trapeiras.
E penso em Cesário Verde, sei lá por quê...Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas...
Em baixo, figuras femininas apontam a existência de um night – os bas-fonds de qualquer porto perdido, na noite.
Jovens pouco vestidas, ou provocantemente vestidas – ou despidas - fumam, olham em volta.
As figuras do Coro são, nesta encenação do "Théâtre de la Mezzanine", jovens trabalhadores da fábrica, que ali vêm divertir-se e que na sua juventude e loucura se agitam.
As edificações somente emadeiradas...
Pela chaminé pequenina sai um fumozinho, os músicos começam a trepar por andaimes, escadas de metal, até chegarem aos lugares, lá em cima. Desinibidos, a rir, a brincar, levando os instrumentos. E, naquela varandinha lá no cimo, começam aouvir-se os primeiros sons.
E voltam os versos de Cesário:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Tem alguma coisa do filme "E la nave va" de Fellini esta orquestra, no ar displicente, nos sorrisos, no falso ar de "amadores" que têm, na cabeça do Maestro (Jean-Marie Puissant) que de vez em quando vem olhar, curioso, o que se passa em baixo.
Em baixo, figuras femininas apontam a existência de um night – os bas-fonds de qualquer porto perdido, na noite.
Jovens pouco vestidas, ou provocantemente vestidas – ou despidas - fumam, olham em volta.
De repente, arrancam em motos barulhentas, girando em torno da entrada. com os faróis no máximo.
Ou dançam, autómatas solitárias, procurando um prazer, sem alegria. Quase com indiferença. Executando, aplicadamente, gestos de que nem se apercebem, repetitivos, mimando um sentimento que não existe.
Só o Coro parece ter dentro de si a alegria viva– ou a tristeza sincera - espontânea, participando da tragédia em todos os seus momentos.
Só o Coro parece ter dentro de si a alegria viva– ou a tristeza sincera - espontânea, participando da tragédia em todos os seus momentos.
Situa-se, assim, a cena numa Cartago moderna, porto de mar, onde um Eneias moderno também, aporta e é recebido por Dido, a rainha.
A orquestra ataca as primeiras notas e o encantamento começa. Com o som dos violinos, dos violoncelos, do cravo e do pequeno alaúde que distinguimos naquela orquestra de sonho.
Surge Belinda, a jovem que parece um pássaro branco a correr pelo palco como se voasse. “Afasta as nuvens do teu pensamento”, canta ela, numa voz linda (a soprano japonesa Mayuko Karasawa), “o destino é favorável (...) sorri-te, devias sorrir também”.
E brinca e alegra-se porque quer que Dido esteja contente.
Todos se movem em torno da alegria da Rainha, pelo menos assim o vi. A tragédia paira, e, tal como a tempestade, pode aproximar-se ou afastar-se.
Todos se movem em torno da alegria da Rainha, pelo menos assim o vi. A tragédia paira, e, tal como a tempestade, pode aproximar-se ou afastar-se.
O Coro (um coro maravilhoso) insiste na mesma ideia: “afasta a tristeza, as preocupações, Dido. As mulheres bonitas não deveriam nunca sofrer...”
As figuras do Coro são, nesta encenação do "Théâtre de la Mezzanine", jovens trabalhadores da fábrica, que ali vêm divertir-se e que na sua juventude e loucura se agitam.
Mas Dido confessa os seus receios:
“Oh! Belinda! Sinto o peito oprimido por tormentos impossíveis de contar. Cresci sem ter conhecido a paz, queria poder revelar a minha pena..."
Todos pensam que Eneias, hóspede da rainha, poderia ser a salvação dela e de Cartago e que, os dois juntos, poderiam salvar Tróia cuja história trágica Eneias contara.
Canta Belinda: “Tal história com tantas desgraças bem poderia tornar ternas as pedras e um coração como o teu...”
Dido (a soprano Anne Rodier) fora atraída pela história do herói: “Sim, receio sentir por Eneias uma enorme piedade” (piedade era um sentimento muito complexo na antiguidade, indo do amor, ao sentimento espiritual, à religião, à compaixão...).Eneias (o barítono Till Mantero) vem, confessa-lhe o seu amor, Dido resiste mas acaba por sorrir. Olha-o. Partem os dois.
Dois feiticeiros (um feiticeiro e uma feiticeira) siameses, unidas por uma enorme cauda rastejante, vêm do nevoeiro marinho, convocadas pela Encantadora, a Velha Feiticeira, malabarista, bailarina, equilibrista fantástica, o mezzo Antónia Bosco.
Dois feiticeiros (um feiticeiro e uma feiticeira) siameses, unidas por uma enorme cauda rastejante, vêm do nevoeiro marinho, convocadas pela Encantadora, a Velha Feiticeira, malabarista, bailarina, equilibrista fantástica, o mezzo Antónia Bosco.
Elas odeiam Dido, querem a sua destruição e a profecia da Velha Feiticeira soa, tremenda:
“A rainha de Cartago será destruída pelas desgraça antes do pôr do sol, privada de reputação, de amor, de vida"...
O Coro lamenta-se: “ohohoh” mas nada pode contra o destino.
“Seduzida e abandonada antes do pôr do sol?”, pergunta feliz uma das feiticeiras. “O que é preciso fazer?”
E a água do porto brilha, negra, suja, com as luzes do porto, criando reflexos, agitando as ondas, a névoa da noite, trazem e levam corpos vivos, corpos mortos...
E o destino tece as malhas da tragédia.
As forças do mal decidem a perda de Dido, enviando um fals mensageiro de Mercúrio, o Espírito ( o músico que traz ao pescoço um trombone) que, fazendo-se passar por emissário de Júpiter, vem lembrar a Eneias que deve continuar a sua missão e fundar Roma. A tragédia aproxima-se, na tempestade. A desgraça cai como um raio – esperado- que se afastara um momento para logo voltar com mais força.
Dido e Eneias aceitam o destino, imposto pelos deuses. Eneias parte, Dido suicida-se.
Linda a cena final, depois da maravilhosa “ária”, ou cantata, em que a rainha se lamenta.
“Belinda, dá-me a tua mão! As ténebras invadem tudo, deixa-me repousar no teu peito... queria continuar mas a morte invade-me ... e é bem vinda...”
“Belinda, dá-me a tua mão! As ténebras invadem tudo, deixa-me repousar no teu peito... queria continuar mas a morte invade-me ... e é bem vinda...”
Persegue-nos a imagem do corpo dela, enrodilhado nas águas do porto, agora vermelhas de sangue.
O Coro termina:
“De asas caídas, venham, Amores, espalhar rosas sobre o seu túmulo...”
E a figurinha de Belinda a estender-lhe a mão, sem poder chegar-lhe, e como uma alminha a apagar-se, pássaro branco que fica pendente de uma espécie de mastro, quando se apaga a alma de Dido...
E a figurinha de Belinda a estender-lhe a mão, sem poder chegar-lhe, e como uma alminha a apagar-se, pássaro branco que fica pendente de uma espécie de mastro, quando se apaga a alma de Dido...
Deitada no telhado da mansarda, pálida e velha, os cabelos esfiapados e esvoaçantes, a feiticeira velha goza a sua vingança.
Parabéns à Companhia do “Théâtre de la Mezzanine”!
Parabéns ao TMG, uma vez mais, e ao seu director, Américo Rodrigues!
Foi uma noite de beleza. E a beleza é para sempre...
Fiquei morrendo de vontade de ver. Tive notícias que teve uma encenação que não sei se é o mesmo grupo, em São Paulo. Não pude ir.
ResponderEliminarbjs minha amiga.
5 bjs