quinta-feira, 16 de junho de 2011

Lembrando David Mourão-Ferreira que morreu há 15 anos

David Mourão-Ferreira



Abandono
(Este fado ficou conhecido como Fado Peniche)

Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria


Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.




E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos

E por vezes os braços que apertamos

nunca mais são os mesmos E por vezes


encontramos de nós em poucos meses

o que a noite nos fez em muitos anos

E por vezes fingimos que lembramos

E por vezes lembramos que por vezes


ao tomarmos o gosto aos oceanos

só o sarro das noites não dos meses

lá no fundo dos copos encontramos


E por vezes sorrimos ou choramos

E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se envolam tantos anos.


edição brasileira de Os Ramos e os Remos, Rio de Janeiro

Praia do Esquecimento


Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.


É dos meus anos de Faculdade que data o meu conhecimento com David Mourão-Ferreira, se bem que me lembre muito bem de o ver passar na velha casa amarela da minha infância, em alguns serões de música, com José Régio e o restante grupo de amigos do meu pai, de quem ficou sempre amigo, mesmo distante.

Foi meu professor de Teoria da Literatura no 1º ano. Lembro-me das aulas interessantes e vivas que eram as dele, sem a aridez nem o enciclopedismo de outros professores.

O semblante agradável, sério ou sorridente, a clareza do que explicava - em que o conhecimento e a cultura se aliavam à sensibilidade.
A sua “Sebenta”, cheia de ensinamentos (úteis,,,) foi a única que guardei durante anos e anos.Lá vinham maravilhosamente explicadas as “figuras de retórica”. Lá estava Aristóteles. Lá vinha a Cultura Clássica e a Moderna e a Teoria e -logo- a Literatura...São as únicas aulas que recordo com saudade com as de Jacinto do Prado Coelho, e o “show” de Vitorino Nemésio; e, ainda, uma professora fantástica de "Literatura Francesa", Maria Manuela Saraiva, que nos deu a ler Sartre, Bernanos, Malraux e Claudel - cuja leitura e autores foram um deslumbramento!- e nos sabia falar deles com inteligência!

Lembro-me do exame oral de fim da cadeira de Teoria. Vejo-me sentada (ainda muito nova) a olhar para a secretária um pouco acima. Interrogou-me sobre Régio e a peça de teatro “El-rei Sebastião”.

Sei que, apesar de tímida, me senti à vontade e falei muito. No fim tive um 14 que não era nada mau naqueles tempos!
Hoje, quinze anos depois da sua morte, quis recordá-lo...

Crespúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra

despedida

David de Jesus Mourão-Ferreira nasceu em 24 de Fevereiro de 1927 e morreu há 15 anos em 16 de Junho de 1996. Era ainda novo, tinha 69 anos.Poeta, escritor, crítico, professor, nasce e vive em Lisboa. Colaborou em várias revistas e jornais como na Seara Nova, no Diário Popular – "quinta-feira à tarde", suplemento literário do jornal, que saía às quintas-feiras.
Foi um dos fundadores da revista Távola Redonda.
Licenciou-se em Filologia Românica, na Universidade de Lisboa, no ano de 1951.
Em 1957 foi professor na mesma Faculdade.
De 1963 a 1973 foi secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
Depois do 25 de Abril, foi director do jornal "A Capital" e director-adjunto do jornal "O Dia".
De 1976 a 1978 foi Secretário de Estado da Cultura. E em 1979 de novo. Cria, em 1977, a Companhia Nacional de Bailado.
Foi autor de programas para a RTP (Imagens da Poesia da Europeia).
Em 1996 recebe o Prémio de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores,, nesse mesmo ano, recebe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada.

OBRAS EM PROSA:
1959 - Novelas de Gaivotas em Terra -Prémio Ricardo Malheiros (reedição editorial Presença, 1998)
1968 - Os contos de Os Amantes (reedição Edit Pre3sença, 2006)
1980 - As Quatro Estações (Prémio Associação Internacional dos Críticos Literários)
1986 - Um Amor Feliz (Romance que o consagrou como ficcionista valendo-lhe vários prémios)
1987 - Duas Histórias de Lisboa

OBRAS EM POESIA:

1987 - Duas Histórias de Lisboa
1950 - A Secreta Viagem
1954 - Tempestade de Verão (Prémio Delfim Guimarães)
1958 - Os Quatro Cantos do Tempo
1966 - Do Tempo ao Coração
1967 - A Arte de Amar (reunião de obras anteriores)
1969 - Lira de Bolso
1971 - Cancioneiro de Natal (Prémio Nacional de Poesia)
1973 - Matura Idade
1974 - Sonetos do Cativo
1976 - As Lições do Fogo
1980 - Obra Poética (inclui À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício)
1985 - Os Ramos e os Remos
1988 - Obra Poética, 1948-1988


4 comentários:

  1. Deve ser muito bom ter essas recordações maravilhosas e ter privado com pessoas tão fantásticas.
    Este post é perfeito:bonita poesia e a bela voz da Amália (de que sempre gostei muito )

    Um beijinho para si( senhora fantástica )
    Isabel

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  2. Falcão,

    Que maravilha foi ouvir Amália a cantar Abandono. . Eu não conhecia este fado nem a obra de David Mourão. Obrigado por gentilmente partilhar esta maravilha comigo. Não sei...Mas, fez me lembrar Grandôla Vila Morena. Fez-me lembrar tempos de cores plúmbeas.

    Um beijo carinhoso deste colega de além mar!

    Carlos Kurare

    "A censura é um ato que, de tão repugnante, me deixa... MUDO!"
    Carlos Kurare

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  3. Olá Jana, que sorte tiveste, que inveja!
    Os meus pais queriam que eu tirasse o curso em Lisboa, onde eles estudaram, em Coimbra era um deserto de fascismo e incompetência. Não quis, porque todos os meus amigos, que era o que me interessava, foram para Coimbra ( a verdade é que passei lá uns anos irrepetíveis...)
    Não consintam nunca que o David Mourão-Ferreira caia no esquecimento, é um poeta incrível, vai direito à alma, eleva e reconforta.
    Deixo aqui uns versos também lindos que ainda sei de memória, como uma humilde homenagem a uma pessoa que tanto admiro em todos os sentidos:

    Era no copo além do gim, o gelo,
    além do gelo, a roda de limão.
    Era a mão de ninguém no meu cabelo.
    Era a noite mais quente deste verão.

    Era, no gira discos o "Martírio
    de São Sebastião" de Debussy.
    Era na jarra de repente um lírio,
    Era a certeza de ficar sem ti.

    Beijinhos (já tens data?)

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  4. Era um homem bom, um fiel amigo, um notável poeta, um excelente professor e ensaísta. Também eu, como sabes, o conheci bem, e deves lembrar os nossos encontos em Roma... Também eu o recordo com sincera saudade e admiração.

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