David Mourão-Ferreira |
Abandono
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
edição brasileira de Os Ramos e os Remos, Rio de Janeiro
Praia do Esquecimento
Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.
E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.
É dos meus anos de Faculdade que data o meu conhecimento com David Mourão-Ferreira, se bem que me lembre muito bem de o ver passar na velha casa amarela da minha infância, em alguns serões de música, com José Régio e o restante grupo de amigos do meu pai, de quem ficou sempre amigo, mesmo distante.
Lembro-me do exame oral de fim da cadeira de Teoria. Vejo-me sentada (ainda muito nova) a olhar para a secretária um pouco acima. Interrogou-me sobre Régio e a peça de teatro “El-rei Sebastião”.
Hoje, quinze anos depois da sua morte, quis recordá-lo...
Crespúsculo
É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida
Licenciou-se em Filologia Românica, na Universidade de Lisboa, no ano de 1951.
Em 1957 foi professor na mesma Faculdade.
De 1963 a 1973 foi secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
Depois do 25 de Abril, foi director do jornal "A Capital" e director-adjunto do jornal "O Dia".
De 1976 a 1978 foi Secretário de Estado da Cultura. E em 1979 de novo. Cria, em 1977, a Companhia Nacional de Bailado.
Foi autor de programas para a RTP (Imagens da Poesia da Europeia).
Em 1996 recebe o Prémio de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores,, nesse mesmo ano, recebe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada.
1959 - Novelas de Gaivotas em Terra -Prémio Ricardo Malheiros (reedição editorial Presença, 1998)
1968 - Os contos de Os Amantes (reedição Edit Pre3sença, 2006)
1980 - As Quatro Estações (Prémio Associação Internacional dos Críticos Literários)
1986 - Um Amor Feliz (Romance que o consagrou como ficcionista valendo-lhe vários prémios)
OBRAS EM POESIA:
1950 - A Secreta Viagem
1954 - Tempestade de Verão (Prémio Delfim Guimarães)
1958 - Os Quatro Cantos do Tempo
1969 - Lira de Bolso
1971 - Cancioneiro de Natal (Prémio Nacional de Poesia)
1973 - Matura Idade
1974 - Sonetos do Cativo
1976 - As Lições do Fogo
1980 - Obra Poética (inclui À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício)
1985 - Os Ramos e os Remos
1988 - Obra Poética, 1948-1988
Deve ser muito bom ter essas recordações maravilhosas e ter privado com pessoas tão fantásticas.
ResponderEliminarEste post é perfeito:bonita poesia e a bela voz da Amália (de que sempre gostei muito )
Um beijinho para si( senhora fantástica )
Isabel
Falcão,
ResponderEliminarQue maravilha foi ouvir Amália a cantar Abandono. . Eu não conhecia este fado nem a obra de David Mourão. Obrigado por gentilmente partilhar esta maravilha comigo. Não sei...Mas, fez me lembrar Grandôla Vila Morena. Fez-me lembrar tempos de cores plúmbeas.
Um beijo carinhoso deste colega de além mar!
Carlos Kurare
"A censura é um ato que, de tão repugnante, me deixa... MUDO!"
Carlos Kurare
Olá Jana, que sorte tiveste, que inveja!
ResponderEliminarOs meus pais queriam que eu tirasse o curso em Lisboa, onde eles estudaram, em Coimbra era um deserto de fascismo e incompetência. Não quis, porque todos os meus amigos, que era o que me interessava, foram para Coimbra ( a verdade é que passei lá uns anos irrepetíveis...)
Não consintam nunca que o David Mourão-Ferreira caia no esquecimento, é um poeta incrível, vai direito à alma, eleva e reconforta.
Deixo aqui uns versos também lindos que ainda sei de memória, como uma humilde homenagem a uma pessoa que tanto admiro em todos os sentidos:
Era no copo além do gim, o gelo,
além do gelo, a roda de limão.
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era, no gira discos o "Martírio
de São Sebastião" de Debussy.
Era na jarra de repente um lírio,
Era a certeza de ficar sem ti.
Beijinhos (já tens data?)
Era um homem bom, um fiel amigo, um notável poeta, um excelente professor e ensaísta. Também eu, como sabes, o conheci bem, e deves lembrar os nossos encontos em Roma... Também eu o recordo com sincera saudade e admiração.
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