domingo, 9 de agosto de 2009

Hoje tive saudades dos nossos poetas...Deixo-vos Cesário e "Cristalizações"







Hoje olhei o meu blog e pensei: falo pouco escritores portugueses, dos nossos poetas, e é injusto...
Logo me veio à memória Cesário Verde, um dos mais amados, e os versos de"Cristalizações.

O poeta passeia pela cidade e observa. E leva-nos com ele, atrás das cores, das figuras, a perceber a luz, os cheiros, os sentimentos.


Começa o poeta:

"Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,/vibra uma intensa claridade crua./ De cócoras, em linha, os calceteiros,/ Com lentidão, terrosos e grosseiros,/ Calçam de lado a lado a longa rua."

E nós vemos a imagem frente aos olhos: o trabalho bruto, a força física, o olhar boçal dos calceteiros, "a sua barba agreste! A lã dos seus barretes!"

São, depois, as peixeiras que chegam, na manhã fria, "dando aos rins que a marcha agita,/ Disseminadas, gritam as peixeiras;/ Luzem, aquecem na manhã bonita,/ Uns barracões de gente pobrezita/ E uns quintalórios velhos com parreiras."
Mais o povo, a gente pobre, os quintalórios...

E, logo, contraposta, a poética elegância friorenta da actrizita que, com "ar matinal de quem saiu da toca", atravessa a rua, nessa manhã de Dezembro, de árvores desfolhadas e sem flores, com seu perfil fino e aguçado, a tiritar, "toda abafada, num casaco à russa".
Tudo o poeta observa e sente, à luz do sol de Inverno. E tem vontade de viver. E pinta o que vê...

"Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. /E tangem-me, excitados, sacudidos, /O tacto, a vista, o ouvido, o gosto e o olfacto!"; vê : "os ares, o caminho, a luz reagem"; cheira e saboreia a vida à volta : "Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;/ Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura."
Os trabalhadores vão calcetando a rua e a actriz, que à noite o poeta tanto cumprimenta -"e a quem, na plateia, atraio/ Os olhos lisos como polimento" - passa de leve, absorta, tiritando em suas peles "nestes sítios urbanos, reles!"
E compara-os, quando ela os cruza:

"Eles, bovinos, másculos, ossudos, /Encaram-na sanguínea, brutamente" . Ela "vacila, hesita, impaciente/ Sobre as botinhas de tacões agudos./ (...) arrisca-se, atravessa/Covas, entulhos, lamaçais, depressa", afastando-se na sua fragilidade forte.
E um grito de revolta do poeta pela dureza da vida do homem que trabalha, em tão duras condições: "Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!/ Que vida tão custosa! Que diabo!"
E ainda: "Povo! No pano cru rasgado das camisas/Uma bandeira penso que transluz!/
"(...) Com ela sofres, bebes, agonizas;/Listrões de vinho lançam-lhe as divisas, / E os suspensórios reaçam-lhe uma cruz!"
E fecha com a imagem saltitante da actriz que corre para o seu ensaio.

Aqui vos deixo uma coisa bela...

“Cristalizações”
A Bettencourt Rodrigues, meu amigo.

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de água, como um chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra - que união sonora! -
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros , baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente!-
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores descansam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
E a quem, à noite na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Lisboa, Inverno de 1878
(Publicado na Revista de Coimbra, no.1 1879 & Correspondência de Coimbra, 17 de Junho de 1879.)
In “Obra Completa”, colecção POETAS DE HOJE, Portugália
Ilustrações:
1. Vlaminck (Escolhi esta obra de Vlaminck ...porque me pareceu próxima de "Cristalizações")
2. Bailarinas, de Degas -a actrizita vai para um ensaio. Por que não?
3.Retrato de Cesário Verde
4. Outra dançarina, agora de Zinaida Serebriakova de quem já vos falei aqui.

2 comentários:

  1. Tambén sinto a força visível de Cesário Verde. Faz-me chorar. De angústia e impotência perante o mundo, acho eu.

    Beijinhos

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  2. Tu, sempre tu, com o sentimento à flor da pele...

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