terça-feira, 20 de outubro de 2009

Histórias da Casa Amarela: ao serão...


Eram longas as noites de Inverno na província. E muito frias essas noites, na minha casa amarela, em Portalegre.
Na sala de jantar, que era ao mesmo tempo sala de estar, e onde se passava a maior parte do dia, havia de tudo.
Lembro a cómoda alta, com grandes gavetas arqueadas, na parte inferior, e pequenas gavetas numa espécie de escrivaninha na parte de cima, e que tinha, a meio, uma gavetinha disfarçada, a gaveta do segredo como nós lhe chamávamos.
Havia em cima de uma mesa um rádio, de forma arredondada, com um círculo coberto de tecido fino, que me parecia brilhar, e que vibrava quando as vozes e a música saíam. Punha-me a espreitar por detrás do aparelho para ver o que estava lá dentro e imaginava pessoas minúsculas a mexerem-se.
Havia quadros nas paredes e um velho relógio de pêndulo por cima da cómoda. E uma estante com livros e revistas, ao canto da janela. Do outro lado da sala, três degraus bem encerados eram o princípio de uma escada íngreme que levava ao sótão e à varanda de onde se avistava toda a cidade, com a Serra da Penha de um lado e a Serra de S. Mamede do outro.
Nessa varanda, num Verão inesquecível, li quase toda a colecção dos livros do Emilio Salgari que eram do meu tio e, não sei por qual milagre, um dia fomos descobrir num velho baú do sótão. Lembro-me que o meu pai nos obrigou a deixá-los ao sol horas sem fim porque tinha medo que tivessem estado em contacto com os ratos que habitavam esse entre-forro, como lhe chamávamos.
Na sala, ao centro, estava uma mesa de tampo octogonal, coberta de pesada camilha de fazenda azul escura. À roda da mesa, onde comíamos todos os dias, passava eu horas e horas, nos serões de Inverno, longos e frios, ouvindo o vento soprar lá fora e a chuva bater forte nas vidraças sem cortinas.
Debaixo, a aquecer-nos, ardia uma braseira.
De manhã ia à cozinha ter com a Florinda -que estava lá em casa desde que me lembro-, ver como acendia a braseira. Via-a pôr o picão, que um velhinho vinha, de burro, vender à cidade, em grandes ceiras de palha. Por cima, punha o álcool azul-turquesa a arder, e cobria a primeira chama, e as brasas que se formavam, com umas pratas que tirávamos dos chocolates e dos maços de tabaco do meu pai “para ajudar a pegar o lume”, como ela dizia.
A mesa da sala está ligada à minha infância. Nela, descobri, encantada, os companheiros da vida, os livros...
Foram as três irmãs Brontë, o maravilhoso Charles Dickens e o belo e triste “David Copperfield”, o "Sem Família", de Hactor Mallot, de que lia passagens à Florinda, para a fazer chorar, ou o “Pickwic’s Club” que me fazia rir tanto... Era o Tolstoi da “Guerra e Paz”, o “Vermelho e Negro” e Stendhal, o "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen, "O moinho à beira do rio", de George Elliot, todo o Walter Scott, Wilkie Collins e “A Mulher de Branco” e tantos, tantos outros!
Ali estudava, e às vezes acabava por adormecer, com a cabeça encostada nos braços.
À roda da mesa, a mãe contava-nos histórias sem fim, continuadas de noite para noite, como outras "mil e uma noites": a história dramática da infeliz "duquesa de Brabante", o Nils Olgerson e as suas viagens pela Suécia, e as histórias cómicas que ela tinha inventado de uma Teresa que vinha do campo, para nos divertir, e era ela a primeira a rir até às lágrimas, sem as conseguir contar...
O meu pai, sentado, de costas para a janela, com os livros e os jornais, lia, imperturbável, sublinhava, e escrevia apontamentos em papelinhos que depois dobrava e metia nos bolsos.
Uma vez, lembro-me que eu e a minha irmã mais velha viemos da escola com piolhos. Tornou-se um tormento a hora em que a mãe decidia “limpar-nos” a cabeça. Debaixo do candeeiro de vidrinhos verdes, embrulhadas num grande lençol branco, sofríamos quando ela nos penteava com um pente que arranhava a cabeça, e os nossos protestos não paravam. Até que uma noite, a minha mãe disse, como que espantada:
- Oh! O que eu estou a ver! Está quieta, não te mexas!
Era a vez da minha irmã.
- O que foi, mamã?, perguntou ela, curiosa.
- Não calculam o que eu vejo!...
- Mamã, diga!, perguntei eu.
- Uma piolhinha branca que está deitada na cama, com umas tranças atadas com fitinhas cor-de-rosa!
- Onde, mamã? , continuava a minha irmã.
-Na tua cabeça. Espera... E a mãe veio trazer-lhe bolachas à cama, e mel e leite...
- E que mais, mamã?, insistia, agora imóvel, a minha irmã, pronta a fantasiar ainda mais do que eu, ela que inventara a Lili Viloíno, sua companheira de sonhos...
E a mãe continuava a imaginar coisas para nós.
- Olha, neste canto estão três piolhinhas a fazer uma roda e a cantar. Têm um vestido vermelho às pintinhas...
- E o que vê mais, mamã?
- Não te mexas, se não elas fogem! Vejo...
Quando chegava a minha vez, eu protestava, fugia com a cabeça e não me deixava convencer com aquelas histórias que queria ouvir, mas em que não acreditava. Um dia, a minha mãe zangou-se e não me quis contar mais nada.
- Espera que amanhã já vais ver as piolhinhas!...
O meu pai era médico analista. A minha mãe levou-me, por um braço, ao laboratório. Depois de ver, bem ampliadas no microscópio, as patinhas peludas da "menina piolhinha", voltei para casa e deixei a minha mãe tratar-me da cabeça, em paz...
Mas o momento mais belo do serão era a chegada da avó e das tias! Vinham quase sempre ao bater das nove, nas noites de cinema. O avô acompanhava-as e depois seguia para o Cine-Teatro ver o filme. Passava a buscá-las, à meia-noite. Nessas noites, esperávamos o toque do martelo lá em baixo, na porta. Logo se ouvia a voz da avó, nas escadas, a dizer à Florinda que descera para lhes abrir a porta:
- Está um frio, mulher! Passei a comprar castanhas assadas...
Chegava com o seu casaco preto, a gola de peles e, à volta dos cabelos brancos, uma écharpe lilás que lhe emoldurava o rosto gelado, a cheirar a pó-de-arroz, e a pele macia que nos tocava na face quando nos dava um beijo sonoro.
As tias eram as suas irmãs: a tia Leopoldina, com o seu ar de manequim fora de moda, empertigada e sempre bem vestida, a tia Mariquinhas, a rir por tudo e por nada, na sua ingenuidade boa, e a tia Zézinha, a mais viva, a mais divertida das três, com os seus olhos negros de azeitona a brilharem, prontos para uma provocação.
O meu pai arrumava a pilha de livros e, impaciente, fazia o gesto de se levantar mas, a um olhar da mãe, hesitava e tornava a sentar-se.
- Fico?, perguntava ele com o olhar.
- Sim..., respondiam os olhos da mãe.
Eram sempre as mesmas exclamações de espanto, de alegria. Lá fora chuviscava, mas na sala havia um calor bom que me embalava. O meu pai voltava aos jornais, disfarçadamente, afastando-se para o seu mundo, até as tias o interromperem, lastimando:
- Coitadinho! A trabalhar ainda a esta hora!...
Levantava os olhos do jornal, limpava os óculos, suspirava, dizia duas ou três palavras e voltava a refugiar-se nos papéis. Às vezes, interrompia a conversa quando a tia Zézinha começava as suas histórias, cheias de mistério, de lobishomens e de homens encobertos, histórias picantes e aventurosas, sempre com o seu toque anti-clerical.
- E o padre estava agarrado a ela...
- Oh! Tia Zézinha! Que exagero! Olhe as miúdas!, protestava ele.
- É verdade! Era o padre!...
Nós ríamos mesmo sem perceber. As vozes, as conversas, as novidades da terra, aumentadas por ela e com pormenores vivíssimos, aqueciam-nos.
Era tarde, quando o avô passava. Meio adormecida, com a cabeça sobre um livro, via-as numa espécie de nevoeiro despedirem-se. Soavam as badaladas do relógio, era meia-noite. Depois de saírem, a minha mãe vinha acordar-nos e mandava-nos para a cama.
Saudosos serões da minha infância...

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1. Zinaida Serebryakova, menina a ler
2. rua de Portalegre
3. vista de Portalegre, com a Sé e a Srra da Penha

2 comentários:

  1. Olá , quanto tempo não passo aqui !!! Obrigada por me citar no seu blog fico lisongeada ! estava sem tempo pra passar aqui, mas assim que sobrou um tempinho não podia deixar de deixar um grande abraço pra vc !!!! bjusss até mais

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  2. Gosto que passes... Linda a Branca de Neve!

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