segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O meu pai dizia..."Um Conto da Natal"




















Sim, o meu pai dizia..., como Jacques Brel... E contava-me coisas, não de Scheveningen, como na canção, mas de Portalegre e dos anos que passara como médico em Alegrete, pequena aldeia dos arredores da cidade.
O meu pai também escrevia. O seu sonho era escrever um livro onde deixasse o testemunho dos sonhos, das utopias que viveu. Deixasse os seus escritos, as suas memórias da vida, rica de humanidade.
Por motivos vários, que não vale a pena referir, pouco deixou escrito.
Em Portalegre, em Dezembro de 2003, quinze anos depois da sua morte, foi publicado pela Câmara Municipal, um livrinho de homenagem ao meu pai ("MemóriaViva") e, nele, se encontram alguns dos poucos textos de ficção que ele escreveu, bem como artigos sobre pintura, música e literatura publicados n'"A Rabeca" -o semanário mais importante da terra, conhecido pelas suas posições oposicionistas.Permitam-me que vos apresente uma história dele:
Um conto de Natal...

FAZ ANOS AGORA...

Feliciano Falcão

Os meus já haviam demandado a cidade, duas léguas de distância, ao encontro da família para a reunião da grande Noite.
Eu ficava na aldeia, preso por um caso grave de psicose carencial, lá para o alto, nas escarpas da serra (“puxe-me o
sengue para baixo, Sr. Dêtor, senão rebento” –é a expressão que ainda guardo através do esfumado que o tempo dá).

A volta fora à tardinha, empolgado com uma paisagem bela e bárbara. Sob um céu de cinza sujo, vales cortados a pique, de cima, em equilíbrio muito instável por veredas apertadas, entre castanheiros e pinheiros, mergulhavam-se os olhos nos fundões de águas turbulentas. E de um cabeço, já a dominar a aldeia, abarcava-se a várzea com uma luz esverdinhada e um poente a diluir-se de um róseo húmido com manchas de tons ictéricos.
No casarão desconfortável –em preparativos para meter-me a caminho, a pé, pela estrada fora, até à cidade- bateram-me à porta àquela hora, já adentrada a noite, era coisa muito séria, sinal de grossa aflição a que urgia dar remédio rápido.
De dia, nunca uma chamada se me prenunciava de gravidade. De noite, não enganava: o caso era sempre desesperado.
O som das pancadas repercutia-se na casa toda –assustava os ratos e os gatos vadios- e chegava aos meus ouvidos com uma ressonância medonha que acordava os terrores infantis que em todos nós dormem.

Alumiado com uma fruste candeia –que nem petróleo havia com a escassez da Guerra-, chego à janela que dá para a rua (rua estreita e primitiva, de um empedrado tosco e de casas atarracadas), abro o postigo e em baixo dou com uma esguia figura de camponês:

- Senhor doutor, tenho lá a mulher com trabalhos!
Vou pelo capote e, com a pasta inseparável em semelhantes emergências, desço as escadas e, num ápice, estamos ambos na azinhaga que contorna as muralhas delidas.
Brisa agreste que entra até ao tutano dos ossos. A lua com ensombrações intermitentes de nuvens densas, mais frígidas que com propensão a água.

O passo é estugado e enquanto o diabo esfrega um olho deixamos a perder de vista o casario e só os altos esfarelados do castelo algum tempo ainda negrejam.
Boa caminhada que desentorpece os membros enregelados.
Azinhagas lamacentas intérminas. Veredas e mais veredas. Oliveiras e sobreiros que atiram sobre nós, à passagem, espessas gotas de água com peso de chumbo. Terra molhada com o trigo já aflorado.

Tudo silencioso. Nem vivalma encontramos e os raros casebres avistados não dão sinal de vida. O homem, avizinhando a quarentena, hirto e calado a meu lado, com passadas largas.

Foi um concurso à sobreposse de podestreanismo célere. Ficamos ex aequo ao chegar à meta. Casa térrea na aba de uma encosta. Fogachos que tremeluzem ao fundo. Chão de lajedo com descontinuadas frequentes, em que as covas dão ameaços de entorses aos meus pés já doridos pela maratona feita.
Guiado pelo homem, no compartimento de entrada tropeço com uma esteira onde se enroscam dois varões de idade tenra.
O pai, entre orgulhoso e contrito, diz-me que ambos já fazem pela vida, a guardar cabras e suínos, acomodados nas proximidades. No outro compartimento, dou com uma cama a um canto, junto à parede, da qual a luz de azeite pende. Cama de ferro desengonçada e cheia de empenos, das típicas camas rústicas de bilros.
E sobre esta, enrodilhada e gemente, uma mulher no apogeu do amadurecimento, pálida e de cabelo negro, com o ventre volumosos como uma abóbora sob a manta que a cobre, lança para mim um olhar de dor, mesclado de alívio pela assistência que lhe trago.
Na parede desnudada, ao alto, como único adorno, um calendário antigo do papel de fumar “La Bascula”, com uma figura bochechuda e grotesca.
A dois passos da cama –a visão lentamente se adapta à luminosidade fosca- no seguimento da parede, com o tampo encostado a esta, uma arca aberta de onde, ao fundo, chega aos meus ouvidos o ronronar miudinho de um ser humano pueril.
Nela, protegida contra as paredes arregoadas da casa, pelas quais o vento frio se filtra, dorme a sono alto o benjamim da prole –uma menina.
Quadro de uma mansão rústica, com o realismo rude da natureza.
Um grito de dor, agudo, rasgante, corta-me o exame surpreso da casa triste e chama-me à consciência o sucesso próximo.
Num instante, liberto do capote e do casaco, arregaço as mangas da camisa. Desinfecção simples. Exame preliminar para precisar a disposição do ser que dentro da mãe luta para saltar para a Vida.
Ponho um ouvido sobre o ventre disforme, quente e doloroso. Expectativa esperançosa – a criança pulsa com ritmo de normalidade, sem sobressaltos- que com palavras de carinho transmito à mulher dorida, afagando-lhe a tez húmida de suor. "Frio, frio, tenho frio, senhor doutor! "

E a pobre, inesperadamente, cai numa convulsão, correndo-lhe o corpo todo, com um indomável castanholar de dentes que abana a ferragem desconjuntada da cómoda e faz guizalhar os bilros que ainda restam à cabeceira. O vento álgido entra pelas rachas da parede, ora com um silvo de agudeza quase musical, ora com ar de sucção de cava arrepiante. É o mesmo que estar lá fora, à intempérie, sob as estrelas.

Aos poucos, sem o pressentir, as mãos se me vão engadanhando e o mesmo castanholar irresistível se apossa de mim.
(- Qual sugestão, se a temperatura rondava os zero graus?...)
E seria curioso de ver como eu e a mulher somos assistidos, nesta dança de S. Vito dentária, pelo homem, impávido, com copos de aguardente.
(Ai, os ortodoxos que são capazes de atirar pedras a esta terapêutica vil...).

Poucos minutos se escoam e nova dor molesta aquele corpo macerado. A voz crispada avisa-me do momento capital.
O homem, hierático sempre –filósofo dos silêncios nesta noite de trabalhos- serve-me de ajudante.
E nada perturba o sono daqueles inocentes – os da esteira e o da arca- nesta azáfama dramática que vai pela casa.

Na arca, onde dorme a menina, há panos e toalhas necessários para a assistência iminente. O pai ergue a menina com cuidado, não acorde, e deposita-a, agasalhada, no chão de lajem. Tira os trapos brancos do fundo e devolve o corpito adormecido para a sua cama singular.
E a hora, violenta e catártica, chega. Di-lo o ar lívido da mulher. Hirta, como que se imobilizara num espasmo titânico, numa rigidez irreversível.
Foi num relâmpago o desenlace: um pequeno corpo luzidio, redondinho, surge sobre a cama e uma mancha vermelha, inundando o ambiente de eflúvios mornos, a alastrar, a alastrar no branco do lençol.
Um burro invisível, muito próximo, atira para o ar uma zurrada, tal como uma trombeta a anunciar o nascimento do menino.
Depois, os vagidos do recém-chegado ao mundo e o esmaecimento suave, recobrador da mãe.

O corpito da arca é outra vez removido para o chão de lajem para procurara mais panos brancos. O mesmo respirar miúdo, a mesma paz de sonho.
Não sei que mais possa amolecer a minha natureza sensível: se o quadro dos dois homens pequeninos aconchegados no outro canto, se a menina da cama singular, insensível ao vaivém da arca para o chão e do chão para a arca, se a máscara incomovível do homem, qual figura de retábulo, se a mulher arrepiada e heróica no transe da maternidade, se o rebento rosado caído na vida em meio tão humilde.
Um enternecimento viril vem-me súbito e, de mistura com o frio, sinto humedecerem-se-me de lágrimas os cantos dos olhos.
Agasalho a mãe o melhor que posso e, cuidados ambos –mãe e filho-, procuro a lareira, onde o homem, curvado, atiça os chamiços do lume pobre.
Sento-me num banco baixo e o meu companheiro puxa da garrafa de aguardente e dá-me outro copo com que me retempero. Fixado nas chamas débeis, ouço-lhe palavras humílimas de reconhecimento e um tom lamentoso em que há surda revolta, misto de coisa instintiva e fulgurância lúcida, ante a mísera condição.

Olho-o, silencioso e bem de frente, bebendo-lhe as palavras. É que estas coisas acordam em mim lembranças infantis, com os mesmos ressaibos de suor e amargura no trabalho de agro alheio, de manhã à noite no amanho da terra, em pura existência vegetativa, sem vislumbre do ser bípede racional.

Vida de animal.
Volvida a paz à casa rústica, deixo a lareira, a aguardente e o companheiro da noite tormentosa e, embuçado, atiro-me para o escuro, rumo à aldeia. Era um negro de breu. Não se via um palmo adiante do nariz. Nortada fina e cortante. Nem a fermentação do álcool ingerido, nem o agasalho forte protegiam contra a crueza da atmosfera.

Todos os caminhos eu conhecia às cegas, não iria empecer-me com esta outra experiência. Planícies, vales e escarpas, ribeiras medonhas no pino do Inverno, quilómetros sob a torrina do sol de Julho ou nas gélidas noites de Dezembro, tudo afrontava como andarilho incorrigível.
Meto-me por uma azinhaga encharcada e, no chope-chope das passadas nas poças de água e na lama, encontro uma companhia para afugentar a solidão.
As mesmas veredas indistintas. Sombras de oliveiras carcomidas subitamente se interpõem na minha frente, quais seres gigantescos e terríficos. Num relance, vejo a lua chapar-se na lombada de um penhasco. Sobreiras contorcidas e de capa larga assemelham-se a cogumelos monstruosos.
Com esta aventura tão vívida, cobro, a pouco e pouco, uma sensação de contentamento virginal. Apetece-me cantar com o coração liberto, neste silencioso nocturno, sob a fina, quase imperceptível, poalha luminosa, esparsa no céu. Sinto haver crescido na compreensão humana das coisas e dos seres.

Chegam-me as ocorrências da infância e da adolescência. E de meus ancestrais, amarrados à paisagem rústica. Uma cadeia de lembranças se engrena na minha vida presente e tão vivas, tão similares às minhas experiências de agora, que quase tudo me parece de ontem, de hoje, de todos os dias.
A expressão daquele camponês jovem, simples, que na agonia chama por mim, confundo-a com a de um tio nos longes da minha infância, na mesma luta inglória com a terra sáfara, e a parca o leva no vigor da maturidade.
E a daquela petiza loura, botão fechado ainda, que um garrotilho estrangula, cujo enterro acompanhei de longe, solitário e desesperado –a mancha branca do caixão entre manchas negras moventes, que a acompanham- lembra-me uma irmãzita que ali para uma aldeia, ao norte, ficou no verdejar da segunda infância.
E, nestas meditações encadeadas, andando sob a noite, um optimismo são me alanceia a par do desconforto que me circunda.

Chego à estrada lasso. Olho debaixo o castelo projectar-se na imensidade negra. Um cão late para as bandas do Pico. Cinjo mais o capote ao corpo e –deixando à direita a azinhaga que leva ao meu casarão –resolvo continuar pela estrada fora, até à cidade, ao encontro dos meus, para chegar a tempo de festejar a grande Noite, com a minha descendência nascente.

In “A Rabeca”, nº 1513-1514, de 22/12/1948

3 comentários:

  1. Sabe-me a Torga! Enche-me de emoções, de ternura, acorda em mim memórias, vontades, sonhos, desesperanças. OBRIGADA por estes pedaços de humanidade!!!

    Beijinhos

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  2. As razões que levaram Felicano Falcão a deixar a meio as suas memórias? No livro citado na evocação que acompanha o belo conto de F.F., no livrinho intitulado "Feliciano Falcão, Memória Viva",publiquei um breve texto, "Lancelote e o Nevoeiro", em que, a dada altura explico: "os 'camaradas' subestimaram-no e calaram-no: viu condenada e recusada a colaboração na saudosa 'Rabeca', onde deixou magníficas páginas autobiográficas, intituladas 'Evocação das Raízes'. E silenciaram-no por as considerarem demasiado egotistas, pequeno-burgueses..."

    F.F. era filiado no PCP.

    Manuel Poppe

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  3. Foi de facto uma pena ter deixado pouco escrito. Este lindo conto, que já li várias vezes e que sempre me traz lágrimas, é a prova disso.
    Tenho um grande orgulho em ter partilhado com ele um pouco da minha vida, e creio que seria uma pessoa diferente, (para pior), se tal não tivesse acontecido.
    João Casaca

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