domingo, 4 de outubro de 2009

Histórias da casa amarela: o meu pai dizia...









O meu pai dizia...

Eu ouvia o que o meu pai dizia, sentada ao seu lado enquanto ele lia o jornal, bebia o seu café e ia deitando a cinza devagar num pratinho. Poisava o jornal e falava e eu punha um ar sério, apoiava a cabeça na mão,
para o ouvir melhor.
O meu pai era um homem bom.
Nasceu em tempos idos, na Ribeira de Nisa, numa casa simples com um quintal à volta. Veio para a cidade e foram viver ele, os irmãos e os meus avós na rua de Santo André, em Portalegre.
Contemplo numa fotografia, sem data: o rosto do meu avô Falcão. Vejo a sua expressão de humanidade, que era a do meu pai, de sobrancelhas desenhadas, o bigode grande, aparado, uma boca de traços finos e os olhos azuis melancólicos, um pouco surpreendidos, olhando a direito para os olhos do fotógrafo. Noutra fotografia está com um grupo de amigos do Movimento Sindicalista e lá está o mesmo olhar franco, talvez mais duro mas aberto, de quem não tem nada a esconder.
Morreu muito novo com perto de cinquenta anos, quando o meu pai estava em Lisboa a acabar Medicina. Sei como foi grande o seu desgosto.

A rua de Santo André que hoje não existe –cheia de prédios novos que a desfiguraram- ficava ao cimo do Rossio na direcção da Igreja do Bonfim. Era uma rua de casinhas pobres, com poiais ou degraus às portas. O meu pai dizia que, depois da escola, se sentava ali a ver os “amiguitos”, ele dizia assim, a brincar antes do jantar. Depressa o chamavam e ele ia, primeiro tímido e receoso, mas nos dias seguintes já a correr. Depressa fez parte do grupo no jogo da bola. O meu pai era um grande jogador de bola.
Quando chegou a Portalegre, os meninos da sua rua chamaram-lhe “marroquino” porque vinha do campo.
Ainda me lembro de ouvir, quando era pequena, esse modo de chamar às gentes do campo que vinham à cidade ao mercado e à feira e se vestiam de outra maneira, tinham a pele mais escura, crestada do sol, elas de lenço na cabeça, eles de chapéu preto atirado para trás, de fato preto e camisa branca.
Lembro muito bem quando esses camponeses vinham tirar “as sortes”, quer dizer, vinham ser escolhidos para ser soldados. Depois de saber os resultados, corriam as ruas da cidade com os amigos que os acompanhava, com a concertina e a gaita de beiços, casaco ao ombro, flor na orelha e quadras soltas ao vento, no seu arrastado “cante” alentejano, cantando a sua sorte.
Eu via tudo da minha janela. Sabia que os rapazes que traziam fitas vermelhas tinham sido “apurados”. Esses riam e festejavam porque era sinal de que tinham saúde, força e, talvez, a esperança da paga como “magalas”, ou, pelo menos, a certeza de comerem. Os outros vinham atrás, sorumbáticos, quase não riam e traziam a fita azul pendurada na lapela. Eram doentes, muitas vezes tuberculosos, fracos, débeis e, com um olhar vítreo de tristeza, seguiam os outros sem a mesma alegria, sem participarem nos cantos e nas danças.
Andavam pelas ruas da cidade, desfilando juntos por freguesias, e toda a manhã se ouviam esses grupos barulhentos mais as suas concertinas.
O meu pai contava-me dessas gentes que conhecera bem. Médico em Alegrete alguns anos, corria as aldeias e os caminhos da Serra pedregosa, passava junto aos riachos frios, e subia pelos atalhos para levar alguma ajuda aos que viviam em sítios isolados, bem lá no alto dos cabeços, entre quatro paredes e uma porta.
Contava das mulheres que davam à luz sozinhas, ou com a vizinha ao lado se estavam na povoação, mas quantas sem ninguém, só com a mão do marido assustado que lhes limpava o suor colado à testa.
As mais novinhas agarravam a mão do meu pai, numa súplica muda. Ele apertava-lhas com força, dizia palavras calmas, dava pancadinhas na face, com ternura, como costumava fazer às filhas.
Tinha vontade de chorar, dizia-nos. A pobreza desses lares, a juventude do casal, a falta de tudo, mesmo do essencial, amarguravam-no. Adivinhava, nos olhos cheios de curiosidade e de susto que se fitavam no doutor, o medo das dores e dessa coisa desconhecida que era um filho a nascer, medo do futuro que aí vinha sem saberem o que teriam para dar ao filho que -tão novos eram ainda!- lhes aparecera cedo de mais.

Saía muitas vezes já de manhãzinha.
Respirava o ar puro da serra, via o orvalho nas estevas, nas urzes e nas florinhas selvagens. Olhava os pinheiros húmidos e brilhantes com seus pingos de cristal pendurados das agulhas e o céu sereno, indiferente e sem fim, as montanhas azuladas, rosadas do nascer da manhã, o nevoeiro que escondia os longes.
Sentava-se numa pedra a fumar um cigarro, tirava os óculos para descansar um pouco os olhos cansados, e pensava na jovem mulher lá dentro que esquecera as dores e, de olhos brilhantes, apertava a sua criatura, encostando a face ainda molhada das lágrimas à cabeça do bébé, embrulhado num paninho branco de lã.
O marido vinha agradecer, trazia-lhe uma malga de leite de cabra ou uma tigela de vinho quente com sopas de pão. O meu pai aceitava para não “fazer desfeita”, mas custava-lhe porque sabia que não tinham nada. Ao princípio, pediam-lhe: “Ó senhor Doutor, não nos faça essas desfeita. É só o que temos...”
Fumavam juntos um cigarro que o meu pai oferecia e ficavam, sem falar, a ver o dia acabar de nascer. Despedia-se deles e muitas vezes deixava na mão, que se fechava logo, da jovem mãe uma moeda. O olhar dela agradecia: “para o menino...”

Descia a serra em grandes passadas. Cá em baixo, embrulhado na manta, esperava-o um vizinho com um burro que o levava a Alegrete.

5 comentários:

  1. Sempre estas memórias sentidas me fazem inundar o olhar...

    Beijinhos

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  2. Estas memórias vivas e pintadas de saudades, sempre me humedecem o olhar...

    Um beijinho

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  3. Linda narrativa. Seu pai sabia caminhar e, por certo, chegou ao final mais feliz da estrada.

    Grande abraço, JL.

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  4. Um grande beijo meu amor. Eu sei que foi como tu dizes, conheci muito bem teu Pai.

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  5. gostei de ler , és fantastica com todas essas memórias. beijos

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