sábado, 24 de outubro de 2009

José Régio foi também o Dr. Reis Pereira...


















José Régio (José Maria dos Reis Pereira) foi também o “Dr. Reis Pereira”...


Faz quarenta anos no dia 22 de Dezembro próximo que morreu José Régio.

E que morreu, pois, o meu amigo Dr. Reis Pereira.

Conheci-o bem, foi meu professor, e muitas vezes sinto saudades. Toda a vida soube que contava com ele e, quando morreu, fez-me falta.

Era um professor exigente. Às vezes ríspido, calado, sempre sabedor. Achava que ele era justo, mesmo quando me classificava um pouco “abaixo” porque temia ser considerado influenciável, ou “fazer favores”. Porque o meu pai e ele eram amigos...

Eu era uma miúda que se distraía nas aulas. Levava o tempo a olhar pela janela por detrás da secretária do professor, mesmo na minha frente, pois estava na primeira fila. O que tinha coisas boas e coisas más...
Boas, porque era obrigada a dar mais atenção às lições, era frequentemente “chamada” para ler, para responder às perguntas de interpretação, etc.
Más, porque não podia brincar como teria feito se estivesse num lugar mais distante...

Por essa janela, via o céu azul, as árvores verdes, as nuvens e nunca me cansava de olhar para além dela.
As estações mudavam, vinha a chuva, as árvores perdiam as folhas, o céu ficava cinzento, mas depressa voltaria a Primavera, e lá se ouviam os pássaros e as andorinhas começavam os voos infindáveis.
Havia tanta coisa na Primavera. Na rua detrás do Corro, estava um senhor que nos vendia bichos da seda e era a procura desesperada de folhas de amoreira que a Florinda tinha de nos trazer do mercado.

Ele, o Dr. Reis Pereira, passeava na sala de aula, com sol ou mau tempo, para diante e para trás, de olhos fixos na parede, sem nos ver, ditando uma retroversão para francês.

Se tu viesses a minha casa, podíamos ir visitar os teus amigos que vivem...”
“Quando fores a casa dele, traz-me o livro que lhe emprestei... ”

Anos mais tarde, quando chegou a minha vez de ser professora de francês, bem percebi por que insistia tanto nessas frases, no “se”, no “quando”. E aproveitei esses textos que ainda sabia de cor...

Sim, era amigo do meu pai o Dr. Reis Pereira. Vinha muitas vezes à casa amarela, sobretudo nas noites de Primavera e de Verão, quando o grupo não se encontrava no “Café Central”, da Rua Direita, ou na esplanada debaixo do Cedro, no Rossio, perto do coreto que eu imagino sempre belo, tantas vezes a meio da névoa que cobria toda a cidade em certas manhãs de Outono.

O grupo era grande: recordo o Engenheiro Ventura Reis, o Capitão Saraiva e a Luisinha mais os quatro lindos filhos que tinham. Também, o pintor Arsénio da Ressurreição, muito dedicado a José Régio, e tantos outros que passavam pela cidade e o vinham procurar.

Quando não se reuniam nos cafés, vinham ouvir música clássica, nesses serões em nossa casa.
O meu pai tinha comprado um móvel moderno com rádio e pick-up, com divisões para guardar os "long play" -como se chamavam nessa altura os discos de 33 rotações. Para nós foi uma maravilha aquele aparelho e tudo o que tinha: agulhas novas, portas onde guardávamos um líquido e uma esponjinha para limpar os discos e outra de veludo só para lhes limpar o pó.

Lembro-me de ouvir nesse pick-up, em 1956, um disco que “tinha sido proibido”, pelo governo de Salazar, a seguir à “perda” das “nossas possessões” na Índia... : “Dilmen Chupake”, que era a música do filme “Prestígio Real” : grande drama sentimental, os amores impossíveis de uma inglesa e de um jovem Rajah indiano.
Nunca soube quem realizou o filme, quem eram os actores, mas ficou-me a música que ainda hoje tenho na cabeça e ouvia em som bem alto e de janelas abertas, exigindo, infantilmente, essa liberdade de ouvir...

Nos serões da casa amarela, ouvia-se Chopin, Lizt, Schuman e algumas canções de Schubert, que a minha mãe tocava ao piano, na salinha verde onde se reuniam.






E ouvia-se Beethoven, que o meu pai admirava de modo particular -com Bela Bartok, outro dos seus preferidos-, e Stravinsky, Prokofiev, Rachmaninoff, Moussorgsky, nomes de compositores que nunca mais esqueci.

Quando o meu pai “descobriu” a música dodecafónica (ver nota*), esta era escutada em grande silêncio surpreendido e curioso por todos, mas logo surgiram problemas e começaram as grandes discussões.

Ou continuaram, apenas, se bem que um pouco mais acesas, pois, sempre houve pequenas discordâncias: Lizt ou Beethoven?

Chopin era mesmo superior? (eu achava que sim...)

A "Ave Maria " de Schubert ou de Gounod?

Aparecia agora Xenakis, Schoenberg (**), Alban Berg, Luigi Nono (que mais tarde eu e o Manuel conhecemos em Veneza, casado com a filha de Schoenberg, uma mulher bonita e doce, com os cabelos castanhos ondulados de certas judias), e essa música moderna e esses compositores “desgovernavam” aquele auditório, tal como diria Croft, o inglês de "Os Maias" a propósito das cenas de “guerras e pazes” entre Alencar e Ega: "Estes desgovernam-me..."

Começavam os protestos: a minha mãe e o Dr. Reis Pereira estavam de acordo os dois: não gostavam. Os outros hesitavam, desconfiados, queriam ouvir outra vez.
- “ Ó Falcão, falta o ritmo...”
- “ Não é “musical”...
- " Onde está a harmonia?!"
-" É diferente! Tem de se seguir outro padrão... Esta técnica de composição é nova, sai do habitual!"
- "Técnica? Mas qual técnica?"
Os desabafos de incompreensão continuavam.
O meu pai encalorava-se, defendendo a sua descoberta. E explicava, explicava... Não recordo o que ele explicava, quais os argumentos para defender essa música, que chamavam de erudita, tão estranha aos nossos ouvidos habituados à melodia, à escala musical normal...

Nós as três olhávamos de uns para os outros, escutando, desorientadas, sem perceber nada, dando talvez, lá bem no íntimo, razão à nossa mãe.

Nessa primeira parte da noite, ouvia-se a tal música "modernista", dodecafónica, átona...
Mais tarde, lembro-me de procurar alguns desses compositores e ouvir com atenção, tentando perceber por que razão o meu pai gostava deles.

Sei por que gostava: o meu pai queria abarcar tudo, como o espírito renascentista que amirava. Para ele, o homem era, também, a medida de todas as coisas. A sua figura preferida era Leonardo da Vinci: o homem que queria experimentar tudo, saber de tudo. Ou que tentava ...

Foi nesses serões, que fiquei a conhecer melhor o meu professor e me habituei a “não ter medo” daquele que, por muitos alunos do Liceu, era considerado uma “fera”.
O seu feitio reservado, independente, o desejo doentio de salvaguardar a privacidade levavam as pessoas a considerá-lo snob, pedante, e, no fundo, alguém que não era da terra: um “estrangeiro”.

No entanto, hoje penso que era perfeitamente compreensível que um “professor de liceu” daqueles tempos, jovem, chegado àquela cidade pequena e desconhecida, se sentisse receoso, nesse ambiente de coscuvilhice, e de curiosidade malsã que é tantas vezes o mundo fechado da província.
O próprio isolamento em que vivia na grande casa da Boavista, não ajudava, e tornavam-no pessoa esquisita aos olhares da terra: era pessoa que “não privava” com os outros colegas, não “se dava” com ninguém e se "refugiava nos livros e nas aulas", queixavam-se. Para eles, isto não era uma atitude “normal”...

Felizmente, depressa surgiram os amigos, e o respeito pela pessoa de valor e íntegra, que sempre foi, veio também.

Na casa, rodeado de santos antigos, dos seus Cristos e dos objectos que amava, naquela casa “cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros”, em Portalegre, de que tão bem fala, sentia-se ao abrigo dos temporais:


















“Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...”

A casa, com trepadeiras, a vista linda da capela de Sant'Ana, abarcando toda a planície alentejana lá em baixo, cheia de santos e das antiguidades que ia comprar nas redondezas e lhe faziam companhia. Como ele diz no lindíssimo poema:
"Tenho ao cimo das escadas,
de modo que ao subir os olhos me dão nela,
uma Sossa Senhora de madeira (...)
Fazemo-nos boa companhia..."
Cheia de pavores, de febre? e de algum desespero trazidos pelo vento suão? E por que não? É ele que diz na "toada de Portalegre":

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
( Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)”

De grandes alergias, isso sim, de estados de depressão, com a chegada das trovoadas secas, do vento suão também, isso lembro-me bem.
Nessas alturas, sei que se fechava em casa, sem atender ninguém.

Muitas vezes, ia a Florinda levar-lhe uma canja de galinha ou uma travessa com doces: arroz doce que ele adorava, manjar branco, leite-creme com açúcar queimado por cima, que a minha mãe fazia, pondo uma pá pequenina do fogão, nas brasas, e tostando o açúcar que parecia depois caramelo...

Nos sábados, gostava de sair da cidade, ia comprar coisas antigas, nos arredores de Portalegre, à Escusa, a Santo António das Areias, a Alegrete, montado num burro, e acompanhado por um homenzinho ali de perto.

Recordo-o, nessas noites musicais, sentado no sofá da sala verde, a falar ou a ouvir apenas, muito bem arranjado, cheirando discretamente a lavanda, sorridente, irónico, distendido –de facto diferente do professor que ainda nessa manhã me ditara a tal retroversão ou me falara d’ “Os Lusíadas”.

(Devo dizer que amo “Os Lusíadas”, o que quer dizer que, ao contrário do que tantos professores de Português, ele não “destruiu” o poema com análises de vários tipos, sem fazer sentir a tal música, que toca a sensibilidade...)

Com o cigarro na mão, levantava os olhos e sorria, enquanto afirmava qualquer coisa “de propósito” para contrariar o meu pai:
- “É só para ouvir o Dr. Falcão...”
Às vezes dizia Dr. Falcão, outras vezes só Falcão, mas sei que nunca o chamou pelo primeiro nome.
O meu pai protestava, fingindo-se indignado, com o seu ar de menino mimado, virando-se para a minha mãe:
- “Estás a ouvir, Zélia? É de propósito...”
A minha mãe ria. A minha mãe gostava muito do Dr. Reis Pereira, com quem conversava horas a fio. E disse-me sempre que eram conversas diferentes, que lhe contou muitas coisas e que ele sabia melhor que todos entender as mulheres.

Outras vezes ia connosco à quinta da Serra, que pertencia ao meu avô, a Quinta da Vista Alegre, e ainda guardo fotografias dele, ao pé do tanque de cima, segurando os suspensórios sobre uma camisa muito branca, e a rir para a máquina.
Sentava-se no rebordo dos muros da quinta, ou a meio dos campos de malmequeres, e fazia desenhos, enquanto nos explicava o que desenhava.
Eu que já me sentia crescida de mais para me sentar no chão ficava de pé, encostada a uma árvore, a ver.
Lembro a minha irmã mais nova e os filhos da Luisinha Saraiva, a falarem e a fazerem desenhos com ele, a puxarem-lhe os lápis de cor, a pedirem-lhe mais papel. Ele, com o seu ar divertido, a sua suave ironia, falava-lhes com paciência.

E, ao serão, lá vinha o Dr. Reis Pereira. Enrolava o cigarro que ele próprio preparava, calmamente -como vira tantas vezes fazer o meu avô, com papel “zig-zag”-, e sorria-nos, um sorriso muito seu, parecendo fungar...

Sim, gostava de brincar com o meu pai, gostava de ver a reacção dele. Provocá-lo... Penso que não resistia à vontade de provocar as pessoas, de ver talvez as suas reacções, experimentá-las...
“Só para ouvir o Dr. Falcão...”, repetia.

Havia um intervalo a meio da noite. Nessa altura a Florinda descia do segundo andar, onde ficava a cozinha, e trazia um tabuleiro com pão-de-ló, pãezinhos de leite, ou tigelinhas de arroz doce, chá ou café, às vezes vinho do Porto.

Iam-se buscar as chaveninhas “do serviço” ao armário da sala de jantar que eu achava lindo, pelas suas linhas anos 40, arredondadas nos cantos e de grande simplicidade de linhas, com vidros que deslizavam para os lados.

Eu, que já sabia, ia a correr atrás dela e punha-me a espreitar as loiças bonitas, o serviço de porcelana com uma barra prateada, os copos de cristal pequeninos.
Pegava com muito jeito nas bailarinas de miolo de pão que a minha mãe fazia por distracção depois dos almoços com os miolinhos de pão que sobravam: bailarinas esguias, nas suas pernas compridas, braços no ar, boca pequenina vermelha, corpo pintado com pó azul brilhante, um folhinho de renda a fazer de saia.

Eram sempre essas as loiças e os copos que se iam buscar quando “alguém” vinha jantar.
Pessoas de que eu gostava e, apesar de não jantarmos à mesa, vínhamos sempre as três ver as visitas do meu pai. Assim recordo as vindas de outro grande amigo desaparecido há muito: Alberto Marques Cardoso, o Dr. Cardoso para nós, o amigo do meu pai e de Régio, o homem bom, inteligente, que me acompanhou sempre, com a sua amizade, que foi depois o nosso médico, meu e do Manuel, e que muitas vezes participava desses serões, quando vinha de Lisboa.

Penso que talvez se encontrasse mais próximo dos gostos musicais do meu pai do que o Dr. Reis Pereira.

Mas voltemos às noites de sarau musical...
Quando a Florinda saía, depois de vir para buscar o tabuleiro, fazia-se outra vez silêncio, mas agora tranquilo, e o meu pai punha o disco escolhido para a segunda parte da noite: esta música não causava discussões. Chopin? Beethoven? Mussorgsky?

As cortinas das janelas abanavam, levemente, ao vento, ouviam-se fora as pessoas que iam para o jardim, os perfumes da noite entravam. Sentia-me bem.
O tempo passava ligeiro.

Às vezes antes da música acabar, eu adormecia, embalada na música e nas vozes.





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NOTAS:
(*) O dodecafonismo (do grego dodeka: 'doze' e fonos: 'som') é um estilo composicional, englobado na música erudita e criado na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg. O dodecafonismo é uma técnica de composição na qual as 12 notas da escala cromática são tratadas como equivalentes, ou seja, sujeitas a uma relação ordenada e não hierárquica.
(**) Schoenberg foi o expoente da atonalidade no modernismo musical. Ainda que vários outros compositores experimentassem abandonar o esquema arraigado da tonalidade, jamais o abandonaram completamente, fosse pela bitonalidade ou pela politonalidade.
Igor Stravinsky é exemplo dessas últimas.
Schoenberg, porém, logo considerou a linguagem atonal, ou seja, a não estruturação da composição sobre um eixo harmónico central, demasiadamente sem regras. Construiu então um método para organizar os doze tons da escala cromática igualmente.
Essa técnica foi apresentada como "sistema dos 12 tons" que logo ficou conhecida como dodecafonismo serial.

4 comentários:

  1. É tão intenso, tão real, tão terno o que a Maria João escreve. Arrepia-me e consola-me. Obrigada!
    Um beijinho

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  2. Obrigada eu, minha querida! Sei que eras amiga do meu pai...

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  3. Foi linda a descrição feita... que pena que não tenha eu nascido em altura de o conhecer :)

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  4. Só tenho uma questão: qual é a casa amarela de que fala? onde é? pois o escritor já a menciona no conto "Davam grandes passeios aos domingos".

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