Sara Dunhirst
Sara foi a minha primeira amiga em Telavive. Eu tinha chegado no Verão e ficara num hotel à beira-mar. Todos os fins de tarde via o sol afundar-se nas águas da baía, vermelho e enorme. O azul cerúleo era substituído pelo cor de laranja brilhante, e as nuvens brancas, baças, horizontais inebriavam-me durante horas, até noite cerrada. Então saía, ia passear ao longo do paredão de pedrinhas pretas e brancas que costeava a praia.
A “Promenade”, à noite, era um mar de gente todo o Verão, gente que se agitava procurando um pouco de fresco junto ao mar, nas esplanadas, ou na areia, uma gente barulhenta, alegre, que vivia de dia e de noite, intensamente, como se fosse o último dia de vida.
Para o lado norte, depois da Marina cheia de barcos brancos poisados nas águas tranquilas, estendiam-se os toldos de uma praia recatada, onde algumas mães procuravam isolar-se com os filhos pequenos do resto do areal da outra Telavive, sempre agitada, onde até as ondas sem a protecção da Marina eram altas, estrondosas, quando a espuma se desfazia em rendas brancas na areia.
Bastava atravessar a passagem da Kikar Atarim, chegar ao alto da grande escadaria para se avistar logo a baía enorme, os corpos bronzeados estendidos ao sol, os jogos, a juventude.
As esplanadas dos cafés, dos hotéis alargavam-se em sofás cheios de almofadas de cores vivas, ladeados de mesinhas baixas. A música inundava os espaços, saindo dos carros entrando pelas janelas, escancaradas. A praia pertencia-lhes, os jogos de badmington, o ténis, ou o xadrez e as cartas para os mais velhos que encostavam as cadeiras ao paredão protector apoiando os tabuleiros em bancos de madeira ou mesas de ferro.
Muitas noites havia fogos acesos na praia. E grupos ficavam por ali a falar, a rir e a tocar guitarra até nascer a manhã.
Sara era uma judia polaca. Viera cedo para Israel, antes do fim da IIª Guerra Mundial, ela e os pais. O resto da família ficara para trás e fora morta nos campos de concentração. Pouco me falava desses tempos, a que acenava, apenas, numa forma de pudor. Teria uns setenta e muitos anos. Era uma mulher pequenina, de gestos suaves, ainda elegante, doce e forte. A pele muito branca, acetinada, cheia de pó-de-arroz, os lábios vermelhos que o bâton arredondava, os cabelos rigorosamente pintados de negro e as sobrancelhas arranjadas curvando-se sobre os olhos pequenos, quase orientais, que um traço de lápis rasgava. Devia ter sido em jovem uma bela mulher.
Tinha uma loja de artigos domésticos, sobretudo italianos, na rehov Ben Yehuda, desde há muitos anos. Entrei um dia à procura de chávenas para o chá e começámos a falar:
“De onde vinha eu? Por que estava em Israel? Ia ficar para sempre? Gostava?”, perguntou logo.
Quando lhe disse que ia ficar alguns anos, vi que sentiu prazer nisso.
- Israel é um país que precisa de gente, disse. Têm-na recebido bem?...
Disse que sim, era verdade.
Nesse dia, ofereceu-me uma das quatro chávenas que lhe comprei, de porcelana às florzinhas.
As esplanadas dos cafés, dos hotéis alargavam-se em sofás cheios de almofadas de cores vivas, ladeados de mesinhas baixas. A música inundava os espaços, saindo dos carros entrando pelas janelas, escancaradas. A praia pertencia-lhes, os jogos de badmington, o ténis, ou o xadrez e as cartas para os mais velhos que encostavam as cadeiras ao paredão protector apoiando os tabuleiros em bancos de madeira ou mesas de ferro.
Muitas noites havia fogos acesos na praia. E grupos ficavam por ali a falar, a rir e a tocar guitarra até nascer a manhã.
Sara era uma judia polaca. Viera cedo para Israel, antes do fim da IIª Guerra Mundial, ela e os pais. O resto da família ficara para trás e fora morta nos campos de concentração. Pouco me falava desses tempos, a que acenava, apenas, numa forma de pudor. Teria uns setenta e muitos anos. Era uma mulher pequenina, de gestos suaves, ainda elegante, doce e forte. A pele muito branca, acetinada, cheia de pó-de-arroz, os lábios vermelhos que o bâton arredondava, os cabelos rigorosamente pintados de negro e as sobrancelhas arranjadas curvando-se sobre os olhos pequenos, quase orientais, que um traço de lápis rasgava. Devia ter sido em jovem uma bela mulher.
Tinha uma loja de artigos domésticos, sobretudo italianos, na rehov Ben Yehuda, desde há muitos anos. Entrei um dia à procura de chávenas para o chá e começámos a falar:
“De onde vinha eu? Por que estava em Israel? Ia ficar para sempre? Gostava?”, perguntou logo.
Quando lhe disse que ia ficar alguns anos, vi que sentiu prazer nisso.
- Israel é um país que precisa de gente, disse. Têm-na recebido bem?...
Disse que sim, era verdade.
Nesse dia, ofereceu-me uma das quatro chávenas que lhe comprei, de porcelana às florzinhas.
Tudo me deslumbrava, desde a luz cortante do sol, ao calor húmido que tanto detestara noutros sítios. Ia experimentando as múltiplas bebidas dissetantes: granita de limão com hortelã, sumo de cenoura com laranja, sumo de romã (rimon), que se vendiam em todos os quiosques da cidade, a cada esquina. Como ela me ensinou.
O marido dela, Zvi, era muito mais velho. Há muito que não falava e ela não me explicou porquê. Percebia o que lhe dizia, sacudia a cabeça, beijava-me a mão quando me cumprimentava, inclinando o busto, e ia sentar-se fora da loja, numa cadeira de praia, pousando as duas mãos sobre os joelhos. Ficava a olhar o movimento da rua, tranquilo, com o seu rosto magro, o cabelo branco cortado em escova, a camisa azul, ou branca, sempre bem passada, e umas sandálias de couro nos pés.
Eu estava horas a conversar com a Sara. Contava-lhe dos meus filhos, da minha vida girando por vários continentes, do modo como o meu filho encontrara o nosso cão, abandonado ao pé de um café, em Roma. O meu cão, que se habituara a ficar ao lado de Zvi. Antes de eu entrar na loja, já se apoderara da trela dele, lhe fazia festas e ficavam os dois a olhar para a rua, silenciosos.
Durante os anos que ali vivi, nunca deixei de a visitar quando saía à rua. Levava-lhe uma flor, talvez porque a florista era mesmo ao lado e, ao passar em frente das flores, pensava:
- Que flor vou levar hoje?Uma rosa, uma orquídea, uma tulipa?
Ela protestava, não queria aceitar.
- É muito dinheiro! Tu não podes estar sempre...
Eu dizia que podia e que era um grande prazer dar-lhe uma coisa bela.
- Sabes... “A thing of beauty is a joy forever”, dizia Shelley… Tens de aceitar!
Ela sorria.
- Tens razão...
Punha-a numa jarra, ou num pequeno copo de cristal, em cima da prateleira que ficava detrás da cadeira onde se sentava, em frente da caixa.
- Mas da próxima vez, não compras! Faz-me esse favor...
Da próxima vez, era ela que me oferecia uma taça, uma luva para a cozinha, duas velas.
- Para o shabbat?, perguntava.
Eu não respondia e escolhia duas velas vermelhas.
- Não, dessa cor não, para o shabbat é melhor branco, mas podes escolher tu...
Eu levava as velas vermelhas e ela oferecia-me duas brancas. Muitas vezes, parava só pelo gosto de a ver, de conversarmos. Falava-me das exposições de pintura, dos concertos a que ia.
- O Zvi vai também, mas não sei se ele ouve tudo. Fica muito sério, mas nunca adormece. Só que nunca sei se percebe... Das exposições gosta, fica parado a olhar para os quadros, tempos perdidos. Não quero deixá-lo sozinho em casa e eu gosto tanto de ir...
- Deves levá-lo. É um bem para a alma! Ouve o que ouvir, vê a beleza dos instrumentos, as pessoas, as luzes da sala, o silêncio antes do começo, o sinal do “conductor”...
- Tão belo, tens razão. Pequenas coisas, pequenos gestos, o brilho dos arcos dos violinos, a elegância da “viola da gamba”... Hesitava na pronúncia italiana e perguntava: Violoncelo, não é?
Não tinha fim a nossa conversa.
Quando o meu cão morreu, estive muitos dias sem a ir ver. Não era capaz de voltar aos mesmos sítios, sem ele, não era capaz de responder às pessoas que me iriam perguntar por que não tinha vindo comigo. O vazio era enorme, preferi então fugir para outras zonas menos conhecidas de nós dois.
O Verão acabou e voltei um dia. Ela olhou-me, séria, baixou o olhar para o chão aos meus pés. Lembro-me hoje, passado tanto tempo, e é como se a ouvisse ainda, na sua voz suave:
- Não vinhas há tanto tempo. Estás triste...
- Se o meu cão...
Zvi aproximou-se de mãos estendidas e eu sabia que procurava a trela do meu cão, espantado de ele não estar... Depois, sacudiu a cabeça e saíu para a rua, como se não me tivesse visto.
Sara procurava qualquer coisa, detrás dela, nas prateleiras.
- Tinha uma coisa guardada para ti...
Segurava um bule de chá inglês, nas mãos em concha. Deu-mo e pousou a mão em cima das minhas, com doçura.
-“Ani ahavti et hakelev shelach, hu kelev hamud meod...” (1), disse com doçura. Acrescentou:
- Ele estava cansado, doente… Sabes, às vezes a vida pesa-nos… São muitos anos. Vivemos muito e cansa...
- Sim, talvez tenhas razão... O meu cão adorado, hamud sheli, foi-se embora para sempre(2)... Eu sei que gostavas dele, obrigada pelas tuas palavras.
Não a vejo há muitos anos. Telefonei-lhe há dias. Ela disse:
O marido dela, Zvi, era muito mais velho. Há muito que não falava e ela não me explicou porquê. Percebia o que lhe dizia, sacudia a cabeça, beijava-me a mão quando me cumprimentava, inclinando o busto, e ia sentar-se fora da loja, numa cadeira de praia, pousando as duas mãos sobre os joelhos. Ficava a olhar o movimento da rua, tranquilo, com o seu rosto magro, o cabelo branco cortado em escova, a camisa azul, ou branca, sempre bem passada, e umas sandálias de couro nos pés.
Eu estava horas a conversar com a Sara. Contava-lhe dos meus filhos, da minha vida girando por vários continentes, do modo como o meu filho encontrara o nosso cão, abandonado ao pé de um café, em Roma. O meu cão, que se habituara a ficar ao lado de Zvi. Antes de eu entrar na loja, já se apoderara da trela dele, lhe fazia festas e ficavam os dois a olhar para a rua, silenciosos.
Durante os anos que ali vivi, nunca deixei de a visitar quando saía à rua. Levava-lhe uma flor, talvez porque a florista era mesmo ao lado e, ao passar em frente das flores, pensava:
- Que flor vou levar hoje?Uma rosa, uma orquídea, uma tulipa?
Ela protestava, não queria aceitar.
- É muito dinheiro! Tu não podes estar sempre...
Eu dizia que podia e que era um grande prazer dar-lhe uma coisa bela.
- Sabes... “A thing of beauty is a joy forever”, dizia Shelley… Tens de aceitar!
Ela sorria.
- Tens razão...
Punha-a numa jarra, ou num pequeno copo de cristal, em cima da prateleira que ficava detrás da cadeira onde se sentava, em frente da caixa.
- Mas da próxima vez, não compras! Faz-me esse favor...
Da próxima vez, era ela que me oferecia uma taça, uma luva para a cozinha, duas velas.
- Para o shabbat?, perguntava.
Eu não respondia e escolhia duas velas vermelhas.
- Não, dessa cor não, para o shabbat é melhor branco, mas podes escolher tu...
Eu levava as velas vermelhas e ela oferecia-me duas brancas. Muitas vezes, parava só pelo gosto de a ver, de conversarmos. Falava-me das exposições de pintura, dos concertos a que ia.
- O Zvi vai também, mas não sei se ele ouve tudo. Fica muito sério, mas nunca adormece. Só que nunca sei se percebe... Das exposições gosta, fica parado a olhar para os quadros, tempos perdidos. Não quero deixá-lo sozinho em casa e eu gosto tanto de ir...
- Deves levá-lo. É um bem para a alma! Ouve o que ouvir, vê a beleza dos instrumentos, as pessoas, as luzes da sala, o silêncio antes do começo, o sinal do “conductor”...
- Tão belo, tens razão. Pequenas coisas, pequenos gestos, o brilho dos arcos dos violinos, a elegância da “viola da gamba”... Hesitava na pronúncia italiana e perguntava: Violoncelo, não é?
Não tinha fim a nossa conversa.
Quando o meu cão morreu, estive muitos dias sem a ir ver. Não era capaz de voltar aos mesmos sítios, sem ele, não era capaz de responder às pessoas que me iriam perguntar por que não tinha vindo comigo. O vazio era enorme, preferi então fugir para outras zonas menos conhecidas de nós dois.
O Verão acabou e voltei um dia. Ela olhou-me, séria, baixou o olhar para o chão aos meus pés. Lembro-me hoje, passado tanto tempo, e é como se a ouvisse ainda, na sua voz suave:
- Não vinhas há tanto tempo. Estás triste...
- Se o meu cão...
Zvi aproximou-se de mãos estendidas e eu sabia que procurava a trela do meu cão, espantado de ele não estar... Depois, sacudiu a cabeça e saíu para a rua, como se não me tivesse visto.
Sara procurava qualquer coisa, detrás dela, nas prateleiras.
- Tinha uma coisa guardada para ti...
Segurava um bule de chá inglês, nas mãos em concha. Deu-mo e pousou a mão em cima das minhas, com doçura.
-“Ani ahavti et hakelev shelach, hu kelev hamud meod...” (1), disse com doçura. Acrescentou:
- Ele estava cansado, doente… Sabes, às vezes a vida pesa-nos… São muitos anos. Vivemos muito e cansa...
- Sim, talvez tenhas razão... O meu cão adorado, hamud sheli, foi-se embora para sempre(2)... Eu sei que gostavas dele, obrigada pelas tuas palavras.
Não a vejo há muitos anos. Telefonei-lhe há dias. Ela disse:
- Que bom! Sabes, é uma alegria enorme! Maior do que se me tivesse saído a lotaria!
Imaginei o rosto dela branco, perfumado, o bâton vermelho. Ri-me e pensei que podia ser verdade. Ouvir a sua voz dava-me uma alegria imensa.
Imaginei o rosto dela branco, perfumado, o bâton vermelho. Ri-me e pensei que podia ser verdade. Ouvir a sua voz dava-me uma alegria imensa.
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(1) "Ani ahavti et hakelev shelach, hu kelev hamud meod"(hebraico) ="Eu gostava do teu cão. Era um cão muito engraçado..."(português)
(2) "hamud sheli": "meu adorado, meu querido"
Muito legal e profundo ! bjusss
ResponderEliminarObrigada Tatiana!
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