segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Histórias de mulheres 3ª : "A mulher de Amsterdão"
































A luz outonal envolvia, dourada, a pequena praça não muito longe do Herengrachs. Na esplanada do café, grupos barulhentos aproveitavam os últimos raios de sol de um dia inesperadamente quente.
- Oh! minha querida! Venha sentar-se aqui!...
A voz pertencia a uma mulher ainda nova, de cabelos castanhos já com alguns fios brancos, e franja mal cortada. Trazia um vestido vermelho com flores e, pousada sobre os joelhos, uma mala preta, de verniz. Os olhos azuis, límpidos, espreitavam por detrás de uns óculos de lentes redondas.
Era um grupo de quatro pessoas mas ela estava à parte, isolada. Os outros bebiam cerveja, falavam alto, davam gargalhadas e nem se lembravam que ela estava ali. Agitava-se na cadeira e esticava o braço magro na direcção da praça. Na outra mão, um copo de vinho branco.
Dirigia-se a uma jovem mulher que passeava do lado de fora das mesas e via as horas no relógio de pulso.
- Oh! meu Deus! Que angústia!, continuava a mulher de vermelho, a falar sozinha.
Torcia as mãos, mexia-se na cadeira, tentava chamar a atenção da outra que a não via e ia até ao fundo da praça, parando ora na montra da agência de viagens, já fechada, ora na loja de modas de luzes vivas.
Vestia um casaco curto, saia de xadrez, e os cabelos escuros cortados ondulavam em movimentos leves. Usava um lenço de seda branca ao pescoço e segurava uma ponta com a mão.
A mulher de vermelho gesticulava, continuando a chamá-la. Os parceiros de mesa ignoravam-na e bebiam.
De repente, a outra ouviu. Foi-se aproximando, devagar, até à mesa, constrangida, sem saber o que fazer. Seria que a chamava?
Perguntou:
- Eu...?
- Sim, minha querida, sente-se ao meu lado um bocadinho!, insistia a mulher de vermelho.
E puxava-lhe pelo braço.
- Estou a vê-la há tanto tempo! A andar dum lado para o outro...
A outra sentou-se, sem perceber nada. A veemência e a indignação daquela voz contrastavam com a suavidade do olhar azul; a fragilidade do corpo magro, inclinado para a frente, aliada à voz, surpreendiam-na. Olhava a mão pequenina que poisara no seu braço e disse:
- Obrigada, estou à espera de uma pessoa...
- Eu sei que está à espera dele!
- Dele? Não. Espero umas amigas. Não devem demorar...
- Deixou-a aqui, como um cão... Ele não sabe que está à espera? Está lá dentro, não é?
A outra olhava-a, admirada.
“O que queria aquela mulher?”
Olhou para o café, olhou para a mulher, sem perceber.
- Lá dentro?... Não entrei, estive só à porta, mas não gostei, preferi passear por aqui. Combinámos encontrar-nos nesta praça...


Era um café frio, sem o mínimo conforto, com as paredes cheias até acima de garrafas brilhantes e um balcão corrido, de zinco, onde alguns homens apoiavam os cotovelos e bebiam pequenos copos de genebra. Cá fora, a esplanada animava-se no fim da tarde.
A mulher de vermelho continuava a segurar o copo de vinho branco, quase vazio, na mão direita. A outra mão estava apoiada no braço da mulher do lenço de seda e apertava-lho.
- Deixou-a sozinha..., insistia ela.
Olhou-a, quase com inveja.
- É tão bonita. E honesta... Eu estava a vê-la... E a pensar em mim... E em si. Por que é que ele não vem ter consigo?! Não são de cá, pois não?
- Mas eu não...
- Eu vi logo que não eram de cá. O meu inglês é mau... Há tanto que não falo com ninguém de fora. Estão de passagem?
- Sim, viemos passar uma semana de férias, eu e umas amigas... Não conhecíamos Amesterdão... Elas foram ver o mercado das tulipas, eu não quis, preferi deambular pelas pontes, ver os canais...
A outra interrompeu-a, sem a ouvir:
- Férias?! Vêm de férias e ele deixa-a e está-se a divertir lá dentro... É quase noite e está frio. Esqueceu-se de si! Vou lá ver!
Levantou-se e entrou, com o copo vazio na mão e o saco preto debaixo do braço.
A outra ficou virada a vê-la, indecisa, preocupada. Tinha um perfil delicado e a pele muito branca e apertava com a mão o lenço de seda que lhe envolvia o pescoço esguio. Havia espanto no olhar dela. Talvez pensasse por que razão aquela mulher desconhecida decidira que ela esperava um namorado, quando ela nem tinha namorado...
Por que se preocupava com ela? Por que queria saber da sua vida?
A mulher de vermelho saiu do café. Trazia um copo de vinho branco em cada mão e o saco, entalado no braço. Desequilibrou-se e quase caiu quando se sentou.
- Pegue! É para si...Vi-o!
A voz tremia-lhe, ansiosa, como se isso fosse importante.
- Viu quem? Desculpe... Não conheço ninguém que esteja lá dentro...
Parecia desiludida. Mas continuou:
- Eles sentem-se sempre livres...
Ficou a olhar como se não visse nada à sua frente, e calou-se, durante muito tempo.
- Sabe o que eu penso? Eles julgam-se sempre especiais. Têm direito a tudo na vida! Fui casada dez anos...
Suspirou, olhando-a.
- O meu marido era professor de Botânica na Universidade. Eu também dava lá aulas... Agora não sou ninguém, tive uma depressão enorme. Perdi o emprego, não sou capaz de fazer nada.
- E ele? –interessou-se a outra.
- Continua a ensinar na Universidade.
Desviou o olhar, bateu com os dedos na mesa, quase com impaciência.
- O que eu desci na escala social... Se soubesse onde eu vivo hoje... Foi assim...
E a mão, inclinada, mostrava a descida, a pique. Bebeu um gole de vinho e olhou a outra nos olhos.
- Beba, faz-lhe bem!... Quer saber o que me aconteceu?
Não esperou pela resposta.
- Perdi a casa onde vivia. Abandonei-o. Abandonei-o, eu? Ele tinha-me abandonado há tanto tempo! A nossa casa era linda. De um dos lados via-se o canal. Ficava horas a olhar para as árvores no Outono.
Olhou a praça em volta delas e disse:
- Como agora, vê-as? Só que não conseguia aguentar mais! Sabe o que é?
Olhou-a nos olhos e encolheu os ombros.
- Oh! Eu sei que sabe, minha querida, vejo a ansiedade nos seus olhos. Eles são sempre diferentes, génios, artistas, não é?...
A outra fixava-a, presa das palavras, como se ouvisse uma história inesperada e que lhe interessava.
- E nós não os percebemos, não é assim? Queremos tirar-lhes a liberdade... O seu trabalho que era magnífico! A sua Botânica! As plantas, as experiências... A sua criação! O mundo extraordinário onde se perdia... Sabe? Um dia esqueceu-se de vir jantar e eu esperei, esperei...
- E ele não voltou?, perguntou, baixinho, a outra.
- Claro que não, esqueceu-se... Voltou de manhãzinha. Depois, passou a esquecer-se mais frequentemente. Não avisava, sequer. Eu cozinhava um bom jantar, punha as velas na mesa e esperava...
Parou, como se recordasse tudo nos pormenores.
- Às vezes passava da meia-noite quando chegava. Explicava sempre que lhe tinham acontecido coisas extraordinárias.
Bebeu um gole, girou o copo devagar e continuou, quase a sorrir:
- Era um homem bonito, inteligente, interessante... Havia sempre meninas bonitas a girar à volta dele. Borboletas... O “homem bonito” esquecia-se de mim, entre as plantas e as “borboletas”...
A outra fixava-a, com uma sombra de tristeza nos olhos.
- E ele não lhe dizia nada?, perguntou a rapariga do lenço de seda.
- Oh, sim, fingia que não percebia, desculpava-se com o trabalho. Dizia que eu gostava de estar sozinha...
- Que cínico!
- Não, não era cínico...era apenas egoísta. Pensava assim, porque lhe convinha, claro... Eu desculpava-o.
Ficou a olhar para longe, calada.
- Um dia fui ter com ele ao Laboratório. Empurrei a porta de vidro, vi-o. Estava de costas, beijava uma qualquer...
- E depois?, perguntava a outra, curiosa, presa das suas palavras.
- Depois? Nesse dia fiz as malas e saí de casa... A minha bela casa confortável, cheia de luz, com a fachada para o canal para ali ficou... O jardim pequenino nas traseiras... E os meus livros, os meus quadros, o meu mundo...
- E depois?!
Havia ânsia na voz da rapariga do lenço.
- Foi horrível a minha vida, depois... Ele era o meu homem...
Virava-se para ela, a ver se a compreendia.
- Tinha escolhido viver com ele e envelhecermos juntos...
- E deixou a sua casa, as suas coisas?... Onde é que vive agora?
- Vivo num sítio imundo... Cheio de pessoas com vidas difíceis, algumas mesmo de mão estendida... Eu não estava habituada, sabe? Não pertencem ao meu mundo... Ainda hoje sofro. Eu sou uma pessoa culta, pertencia a uma classe com um certo nível...
Olhou em volta, à procura das palavras, para dar a entender à outra a sua dor.
- Nem sei explicar o que sinto. Eu até aceitava conhecer essas pessoas, vê-las, falar-lhes, ajudá-las... Mas viver no meio delas...
A outra tentava compreender:
- Imagino, não são da sua classe...
- Nem sei explicar. São pobres, não têm educação, e não têm culpa. Eu falo com elas, gosto de alguns vizinhos, converso... Mas não é o meu mundo. Percebe? Falta-me a minha cultura. Desisti de tudo, nem procuro ler, não vou aos museus. Afundo-me...
- Percebo...
- Falta-me o conforto da minha casa, a vista do meu jardim...
Hesitou.
- Por que não o hei-de dizer, se é verdade? Falta-me a comodidade dessa vida que tive.
- Não tem família?
- A minha família era ele...
- Não trabalha? Isso ajudava...
- Faço coisas, nada de interessante. A depressão fez-me perder o emprego, não conseguia concentrar-me...
- Mas o que faz?
- Deram-me um trabalho na Câmara. Apoio pessoas desempregadas. Foi assim que fui parar ao bairro onde vivo e por lá fiquei... Não ganho o suficiente para poder ter outra casa como a antiga e não aceito nada dele...E desinteressei-me de tudo... Posso viver em qualquer lado, é-me indiferente...
A rapariga do lenço de seda comovera-se, chorava, de mansinho. As lágrimas, penduradas das pestanas, iam caindo sobre o colo. Agarrou na mão da outra, apertou-a:
- Não pode viver assim!, protestou. Há outras pessoas...
-São todos iguais, minha querida... Vai ver! Se não tem namorado, há-de arranjá-lo um dia... E vai ver!
Queria magoá-la porque, ao relembrar o sofrimento antigo, se magoara? Havia dureza no olhar e ao mesmo tempo uma forma de indulgência.
Bateu com a mão no braço da outra.
- No fundo, está aqui sozinha, não é?...
- Não, não estou sozinha, estou consigo... E as minhas amigas estão a chegar.
Num impulso disse:
- Podemos ficar a fazer-lhe companhia...
-Não preciso de esmolas, disse, áspera.
E continuou, com raiva na voz:
- Eu sei muito bem... Só conta o que eles sentem! Mas porquê?
Virou-se para a jovem, com os olhos com um brilho quase louco, agressivo:
- Quando a vi, pensei que estava à espera...Quis ajudá-la. Não posso resolver os problemas todos do mundo! Claro que não posso. Os meus ombros são frágeis, não aguentam esse peso...
Riu, amarga. E, num grito:
- Ah! Mas quando um problema vem ter comigo, eu sou responsável! Esse problema já é meu! Tenho que o pôr nos meus ombros, passa a ser o meu problema! Percebe?!
Apertou-lhe o braço com força.
- Tive que a chamar! Não podia vê-la e continuar para aqui a beber o meu vinho, como se não tivesse visto nada! Essa indiferença não a aceito! São coisas que não consigo entender!”
Abismou-se nos pensamentos:
- Afinal não estava sozinha como eu... Vem alguém ter consigo, não é? Vão passear, ver o pôr do sol nos canais...
E logo mudou, voltando ao pensamento que a obcecava:
- As pessoas vivem uma vida, têm um passado... E depois? Deitam-nas para o lixo?! Como se isso não fosse nada?!...
Ficara a olhar em frente, de olhar perdido, com o copo vazio na mão. Abanava a cabeça ligeiramente e os cabelos grisalhos agitavam-se devagar. Começara a soprar uma brisa, refrescara de repente e ela estremeceu nas roupas leves. A rapariga dizia agora, sem a olhar:
- Acha que também não vou ter sorte?...
- Não sei, sinceramente não sei... Os homens são assim, nem dão por isso... Iguais no egoísmo, na capacidade de sorverem a vida, de quererem tudo. No medo que têm de perder um bocadinho do prazer da vida. E nós?
- Nós vivemos ali ao lado Temos a nossa vida também...
- Não!
Voltou a erguer a voz num tom peremptório:
- Não, minha querida! Nós somos apenas a rede de protecção por debaixo do trapézio que lhes permite voltear no ar da sua diferença, minha querida! Da sua aventura, do seu risco!
- Não estará a ser injusta?...
E continuou, quase a medo:
- É sempre assim?!
Mas reagiu logo e continuou, decidida, como se o desespero da outra lhe desse força:
- Não acredito no que diz... A senhora é que se deixou vencer! Devia continuar a amar a vida, os outros! Ninguém é único...
- Que ingénua...
Havia satisfação na sua voz. Mas voltou a agarrar-lhe no braço, ansiosa:
- O que é que eu lhe tenho estado a dizer? Não, minha querida, não! Talvez tenha sorte...Tem de acreditar! Claro que um dia há-de encontrar alguém... O príncipe encantado..., murmurou com uma certa ironia.
Queria salvar a outra da situação em que ela própria se via? Deixar-lhe uma esperança? A possibilidade de acreditar? Evitar-lhe aquela solidão que se lhe colara ao corpo?
- Talvez, tem razão... O príncipe azul..., disse a jovem, e sorriu para ela.
A mulher de vermelho agitava-se, preocupada, não queria ouvir, como se receasse repetir qualquer coisa, ou sentisse medo. Pôs-lhe a mão no braço:
- Sim, por favor, acredite nisso! Existem os príncipes encantados! A solidão é uma coisa horrível! A solidão é pior do que tudo e eu hoje sei...
Bebeu outro gole de vinho, segurou o copo com as duas mãos, encolheu os ombros.
- Estou sozinha há tanto tempo... É duro não ter ninguém. Chegar a casa... Casa, aquilo? Uma casa onde não tenho as minhas coisas, onde ninguém vem saber de mim...”
Interrompeu-se, pensativa. Girava o copo nas mãos e fixava o vidro vazio.
- Às vezes saio, com amigos. Como hoje...
E com a cabeça apontou para o grupo.
- Vão buscar-me a casa, vamos a um museu, vimos ao café. E o meu dia acaba... Eles voltam para as casas deles, para a família e eu fico sozin
ha. O meu apartamento está sempre frio. O tempo não passa...
Ouvem-se vozes e risos e um grupo de jovens aproxima-se da mesa, depois de olharem em volta. Têm rostos vermelhos, suados, como se tivessem estado ao sol muito tempo.
- Ó Ana, o que estás aí a fazer sentada? Uh!Uh!
Uma rapariga loira agitava a mão, a chamar a rapariga do lenço. As outras duas tinham ficado para trás, paradas em frente da loja de modas, e davam-se empurrões, rindo às gargalhadas.
Olhou para elas e suspirou, aliviada por um lado, mas também um pouco impaciente: “elas não percebiam nada da vida...”
Como se, neste encontro, tivesse vivido uma vida. Sentia-as de repente demasiado inexperientes.
“Que tontas, com aquelas brincadeiras...”
- Estou aqui... -disse, num tom sério.
- Elas nunca mais se despachavam das flores. Andámos de ponte em ponte. Vimos a Leidsplein! Uma praça tão gira! Apanhámos sol de mais... E bebemos cerveja. Vamos jantar?
Não parava de falar. Ana virou-se para a mulher ao seu lado, e perguntou, com delicadeza:
- Não quer vir connosco? Está um fim de tarde tão bonito... Venha!
- Não, minha querida. Ia-lhe estragar a festa, levar comigo o meu peso... Vá! Não acredite no que eu disse, ouviu? Seja feliz!
- Obrigada. Não me vou esquecer de si!
A mulher de vermelho ficou a vê-las afastarem-se. De cabeça inclinada para um lado, apoiava-se com um braço à grade da esplanada, para as ver melhor. O outro braço pendia e a mão segurava o copo vazio. Olhou-as até desaparecerem na rua que ia dar ao canal.

Ilustrações: as pontes e os canais maravilhosos de Amsterdam

1. ponte da Spiegelstraat
2. ponte sobre o Herengracht
3. esquina do canal Regulier com o canal Prinsen
4. vista panorâmica do canal oriental (eastern ring)
5. a praça Leids (Leidsplein)

1 comentário:

  1. Conheço bem Amesterdão e, como alguém diz, já fui muito feliz aí!!! Mesmo muito...

    Beijinhos

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