sábado, 31 de outubro de 2009

Citando uma tese sobre Raymond Chandler e Marlowe










Falei aqui de Chandler, do seu herói, Phillipe Marlowe e do mestrado de Literatura Policial : "O Policial na Literatura e no Cinema", na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Há dias li uma tese de mestrado de uma aluna desse curso, sobre Philip Marlowe...




Seminário: O Policial na Literatura e no Cinema
Docente: Maria de Lurdes Sampaio
Mestranda: Magda Peixoto Barbeita
Título: PHILIP MARLOWE

A tese apresenta em epígrafe dois versos de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos):

Dêem-me Água de Vidago, que eu quero
esquecer a Vida!
Álvaro de Campos

Não vou fazer a crítica do trabalho, mas aproveito para dizer que o achei muito bem escrito, numa linguagem clara que é agradável de ler, (há talvez em alguns nós um certo "parti pris" contra a "linguagem universitária") bem documentado, vivo e interessante. Li-o sem parar!
Fiquei a saber mais coisas e gostei sinceramente, Magda!
Penso que a professora que "soube" interessar a sua aluna merece também uma palavra de apreço. Aqui fica, Dra Lurdes Sampaio...

Não resisto a "citar" o próprio Marlowe na sua autopsicografia (a citação de Pessoa oblige...), nos três excertos escolhidos por Magda Barbeita (um deles não é "só" de Chandler):

I
"Sou um investigador privado e já há uns bons anos. Sou um lobo solitário, nunca casei,aproximo-me da meia-idade e não sou rico. Já estive mais que uma vez na cadeia e nãotrabalho em casos de divórcio. Gosto de beber, de mulheres, de xadrez e mais umas quantascoisas. Os chuis não me vêem com muito bons olhos, mas há alguns com quem me vou
dando. Sou natural daqui, nascido em Santa Rosa, os meus pais já morreram, não tenhoirmãos nem irmãs, e quando derem cabo de mim nalgum beco escuro, como acontece, como podia acontecer a qualquer um na minha actividade, bem como a muita gente em qualquer outra ou mesmo nenhuma, o que não é raro hoje em dia, ninguém irá sentir que a sua vida, dele ou dela, tenha perdido o sentido. "
II
«Ao volante do meu oldsmobile pela estrada de Idle Valley, pela estrada deserta o cigarro esquecido ao canto da boca. Agora os néons brilhantes iluminam um sorriso cínico, agora as sombras das sarjetas sujas, sórdidas e mesquinhas da cidade adensam um sorriso cansado. Ando expiando um crime numa mala, à procura dos cacos de um vaso vazio estatelados no chão pela mão de uma criada descuidada. Uma mosca varejeira voa em círculos à volta de uma lâmpada fosca.
Nada me prende a nada. Não, já disse que quero ser sozinho. Nunca fiz mais do que fumar a vida. E o que me resta é só um extremíssimo cansaço, uma náusea uma angustia uma traça morta. Vencido, lúcido, amargo. O correio não me traz nada.»
Este texto II é uma "composição" feita por Magda Barbeitos: trata-se dela, Eliot, Chandler e Álvaro de Campos... Confesso que o aceitaria por "Marlowe" puro e duro...
Dou-vos a solução (dada por ela nas notas), a seguir:

«Ao volante do meu oldsmobile pela estrada de Idle Valley[1], pela estrada deserta o cigarro esquecido ao canto da boca. Agora os néons brilhantes iluminam um sorriso cínico, agora as sombras das sarjetas sujas, sórdidas e mesquinhas da cidade adensam um sorriso cansado. Ando expiando um crime numa mala[2], à procura dos cacos de um vaso vazio estatelados no chão pela mão de uma criada descuidada[3]. Uma mosca varejeira voa em círculos à volta de uma lâmpada fosca.
Nada me prende a nada.[4] Não, já disse que quero ser sozinho.[5]
Nunca fiz mais do que fumar a vida.[6] E o que me resta é só um extremíssimo cansaço[7], uma náusea uma angústia uma traça morta. Vencido, lúcido[8], amargo. O correio não me traz nada.»
[1] Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra
[2] Opiário
[3] Construção a partir do poema Apontamento
[4] Lisbon Revisited (1926) ou Passagem das Horas
[5] Lisbon Revisited (1923): Não me peguem no braço!/ Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,/Já disse que sou só sozinho!”
[6] Opiário
[7] O que há em mim é sobretudo cansaço -: “Um supremíssimo cansaço”
[8] A referência à angústia, à lucidez e ao vencido é muito frequente nos poemas de Campos.




III
"Pus o tabuleiro de xadrez em cima da mesa do café e dispus as pedras para um problema chamado A Esfinge. Vem nas páginas finais de um livro sobre xadrez de Blackburn, o mago xadrezista britânico, talvez o jogador mais dinâmico que já existiu, embora ele não tivesse conseguido chegar a lado nenhum com o tipo de xadrez de guerra-fria que hoje se pratica. A Esfinge é em onze jogadas e justifica o nome que tem. Os problemas de xadrez raramente vão além de quatro ou cinco jogadas. Para além disso, a dificuldade em os resolver aumenta quase em proporção geométrica. Um problema de onze jogadas é tortura em estado puro.
Acendi o candeeiro de pé, voltei junto da porta e apaguei a do tecto; atravessei outra vez o aposento e parei junto do tabuleiro de xadrez, colocado em cima da mesa de jogo.
Tinha um problema para resolver, mas, como acontecia com muitos outros problemas da minha vida, não sabia que solução dar-lhe. Desloquei um peão e, em seguida, tirei o chapéu e o sobretudo e atirei-os para uma cadeira.
Olhei de novo para o tabuleiro de xadrez. O movimento do peão fora asneira; por isso repu-lo na casa anterior. Os peões não valem nada, no xadrez; não é um jogo para peões.”
Raymond Chandler, The Big Sleep


Acho que devo juntar um pouco do poema de Pessoa -do heterónimo Ricardo Reis, agora:

Os Jogadores de Xadrez

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

(...)

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.




Mas, para mim Marlowe, apesar do seu cepticismo, apesar da vida parecer passar ao lado, apesar dos problemas da vida que não resolve... não é capaz da indiferença!
Vai sempre, mesmo de coração ferido, desiludido, enojado...
Como diz Magda B. a dada altura:
"Apesar da escrita surrealista, onírica e metafórica de Chandler, e dos devaneios, delírios e reflexões de Marlowe, este é um detective com uma consistência bem real, se bem que esta sua existência real, mais do que do realismo, advém do seu carácter romântico e sentimental, por mais contraditória ou paradoxal que esta ideia possa ser. Claro que muitas vezes Marlowe é preso, batido, insultado..., mas esta dimensão parece aproximar-se mais de um herói da Marvel. É a sua dimensão interior, os seus pensamentos que ondulam ao sabor da sua errância pela cidade de Los Angeles, os seus fracassos e fraquezas que o aproximam de nós. Marlowe é um herói, sim, mas um herói humano."
Vou deixar-vos com este desabafo de Marlowe, num momento de "desconforto", em que ao desgosto, ao cepticismo, reage, criticando-se: "Esta noite não estás humano, Marlowe!"
IV
"Tudo quanto sei é que algo não é o que parece ser e que o velho mas sempre seguro
palpite me diz que estou caminhando em sentido errado e o justo vai pagar pelo pecador. Isso diz-me respeito? Acaso o sei? Acaso alguma vez o soube? Não falemos disso. Esta noite, não estás humano, Marlowe. Talvez nunca o tenhas sido nem nunca o venhas a ser. Talvez eu seja um ectoplasma com uma licença privativa. Talvez todos nós sintamos o mesmo, no mundo frio e meio iluminado, em que acontecem sempre as coisas más e nunca as boas. Malibu. Mais estrelas de cinema. Mais banheiras cor-de-rosa e azuis. Mais camas enfeitadas com borlas. Mais Chanel n.º 5. Mais Lincoln Continentals e Cadillacs. Mais cabelos ao vento, mais óculos de sol, mais atitudes e vozes pseudo-requintadas, mais baixa moral. Mas, um momento! Há imensas pessoas honestas que trabalham no cinema. Estás mal disposto, Marlowe. Esta noite, não estás humano."
Porque, normalmente, Marlowe "está humano"!

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