quarta-feira, 19 de maio de 2010

Histórias da Casa Amarela: Os bichos da seda da Rua dos Sapateiros (1)

auto-retrato da autora
Passei há pouco tempo na rua onde, em pequena, ia comprar bichos da seda. Era a Rua dos Sapateiros, perto da Praça da República, em Portalegre.
Porta do Castelo, em Portalegre

Penso que era sapateiro o senhor que nos vendia esses bichinhos estranhos. Sentado à soleira da porta, imagino-o com uma bota apoiada no joelho, e a sovela na mão direita, olhando-nos com ironia.

Eu tinha entrado para o Liceu nesse ano.
Acabada a 4ª classe (dispensara do exame de admissão), com os meus 9, 10 anos, deparou-se-me um espaço enorme, o belo Liceu, antigo Palácio dos Acciaioli, que no meu tempo se chamava Liceu Nacional de Portalegre.

As recordações que tenho do início de uma nova vida são boas. Esquecida a pequena sala de estar da minha professora, a D. Maria da Alegria, onde fizera, em lições particulares, os estudos, via-me em salas enormes, carteiras de madeira envernizada, com o tampo de abrir e fechar e a prateleira por baixo para guardar a pasta.
Ao fundo, a secretária dos professores sobre um estrado de madeira branca e o grande quadro preto.

As amplas janelas dessa primeira sala de aula davam para um pátio que dava acesso, lá em baixo, a outras salas, e que, por grandes escadarias, levava também a um parque, cheio de árvores, e um terreno de jogos que era o recreio dos rapazes - nesses tempos separado do das meninas, esse muito mais pequeno, fechado por muros, sem verde, nem árvores.

Outras salas do liceu davam para o Corro, onde se fazia o mercado e onde, durante as festas dos Santos Populares, o meu pai nos levava a ver a banda e os altares.

Da janela da minha sala de aula, via o céu aberto, sem fim, cheio de azul ou de nuvens acasteladas empurradas devagar quando soprava o vento.

Que lindas eram as nuvens!



Surgiam as primeiras névoas do Outono, imaginava a cidade toda no nevoeiro cerrado.
o Coreto do Rossio, num dia de nevoeiro


Adivinhava, no tal pátio do Liceu, as árvores e os troncos que se abriam em ramos de folhas castanhas e douradas!

Chegavam os frios, a ventania, e os relâmpagos das trovoadas do Outono, a chuva que fustigava as vidraças e corria em riachos pelos vidros, escondendo tudo aos meus olhos curiosos.
Chovia.


E, quando parava de chover de repente, por instantes talvez, um raio de sol vinha bater na janela. O sol abria forte e os vidros ficavam cheios de cristais, colados, como pequenos diamantes.
Encolhia-me na carteira, nos meus casacos de lã, encostava a cabeça na mão, ficava a olhar.
Tentava dar atenção ao que se passava dentro da aula. Às vezes gostava de ouvir o que os professores diziam, outras vezes perdia-me seguindo outra vez os tais fiozinhos de água da chuva que iam pegar noutros fios, como ribeirinhos tontos a correr para o rio.

Magritte, nuvens
Eu gostava de estudar, de aprender coisas novas, gostava de fixar, de relacionar, de pensar.

Até de ver os frasquinhos das "experiências", na sala de Ciências Naturais, onde o Dr. Matos nos dava aulas.

Berthe Morisot, menina na varanda
Lembravam-me os tubos de ensaio do laboratório do meu pai, onde sempre tentava mexer quando ia visitá-lo no velho edifício do hospital, com a sua janela de grades, tão bonita...
E essa atenção, que dava nalgumas aulas, era o que me valia para ter notas boas, porque em casa não estudava muito.
No calor da sala de estar, debaixo do candeeiro com pendentes de vidrinhos verdes transparentes, como estalactites, eu gostava era de ler.
Lia com prazer os livros de História, de Geografia que eram “leituras” que me interessavam, que me falavam de coisas desconhecidas, e havia neles mapas, desenhos, fotografias como não havia nos outros livros da escola.

A meio da noite, porém, havia também os “deveres”, como eu achava que eram os problemas de Matemática, de álgebra, ou de geometria, que me interessavam menos.
A concentrar-me neles, demorava-me, enrolava os cabelos num lápis, ficava a pensar, enquanto ia deitando uma olhadela para as imagens de um livro qualquer que deixara aberto ...

As aulas do Liceu eram também a descoberta de outras amigas, meninas da minha idade que não conhecia, que vinham ter comigo, que me perguntavam: queres ser minha amiga?

5 comentários:

  1. Sempre afável MJFalcão
    Que ternura senti ao ler as suas palavras. Temporariamente, também habito na Praça da República...
    A amizade é o maior triunfo da vida.
    Um Conto de Natal. Faz anos agora... Feliciano Falcão. Os meus já haviam demandado a cidade..., duas léguas de distância...
    Com amizade e muito carinho.
    JDACT

    ResponderEliminar
  2. Não sei quem é,JDACT, mas agradeço muito as suas palavras... Conheceu o meu pai? Esse conto de Natal lembro-o sempre, porque é muito do que ele era.
    Grande abraço amigo!
    m.j

    ResponderEliminar
  3. Fiquei maravilhado com este blogue, ex-colega!
    Também fui aluno do Liceu de Portalegre (até 1962). No meu blogue
    (curvelo-garcia.blogspot.com) tenho dois artigos (para já) a dois professores: Reis Pereira e João Tavare.

    ResponderEliminar
  4. Peço desculpa, mas esta porta do castelo que aqui postou é mesmo em Portalegre??!!
    Só se foi entretanto destruída.

    ResponderEliminar
  5. Não posso jurar, amigo anónimo, que ainda lá esteja a porta... Tirei da internet a imagem e não sei se existe!
    Vou tentar informar-me.
    Abraço portalegrense
    o falcão

    ResponderEliminar