segunda-feira, 24 de maio de 2010

Histórias da Casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros (5)



o pintor de Portalegre, Renato Torres: o sobreiro

Mais um ano passou. O Verão veio com o calor do costume, os dias de vento soão, a Feira das Cebolas, as noites escuras e estreladas, as estrelas cadentes de Agosto, as constelações que via da janela do meu quarto.

A “Cassiopeia” era a minha constelação preferida, porque figurava um "M" de pernas para o ar -e o "M" era a primeira letra do meu nome!-, a Ursa Maior, a Estrada de Santiago, enquanto procurava refrescar a cabeça e o rosto naquele bocadinho de vento que às vezes soprava fresco.

E o Verão também passou e as férias acabaram.


O Outono e "Les feuilles mortes", por Yves Montand)
http://www.youtube.com/watch?v=JWfsp8kwJto&feature=related


E voltou o Outono que eu amava, os dias cinzentos, as folhas secas no chão, a neblina, as trovoadas...
O Outono e a melancolia do Outono.

As aulas tinham recomeçado.
Vi-me noutra turma diferente, noutra sala, desta vez escura nesses dias sem sol, desaparecera a luminosidade e o brilho das janelas do primeiro andar. O sentimento de me sentir em pleno céu.

As janelas de agora estavam viradas para a rua, a sala ficava no rés-do-chão.
As únicas salas de que continuava a gostar eram as de Desenho e de Ciências Naturais, as mesmas de sempre, no andar de cima, cheias de luz.
Novos professores, também. Lembrava com saudades os do ano anterior. Tinha crescido um pouco mas continuava a figurinha magricela e sensível de antes.


Um dia, para me chamar a atenção, uma professora deu-me com o ponteiro na cabeça e disse:
-”Estás sempre de cabeça no ar!”
Tinha-me distraído –como sempre fizera- mas até ali nenhum professor me “batera”!
Desatei a chorar, desconsolada e ofendida, com a cabeça nos braços.

Senti-me infeliz, abandonada, desprotegida.

A minha irmã, que era agora minha companheira de carteira, animou-me, cheia de pena de mim.
Que saudades tive, então, da salinha quente da D. Maria da Alegria, minha professora da primária!
Uma vez repreendera-me batendo com os nós dos dedos na cabeça.
-“Ai, esta cabecinha distraída!”, dissera.
Encheram-se-me os olhos de lágrimas e dei um soluço baixinho.

Ela percebeu, e disse logo, com um sorriso:
-“Vamos lá, vamos lá, pensa outra vez...”

Na sua voz, um pouco rouca, senti amizade.

Agora não, estava perdida num mundo adverso.
Lauro Corado, um dia de Inverno

Aproximava-se o Inverno. O frio cheg eara o vento vento fustigava os ramos das árvores; mas eu não conseguia vê-las do lugar onde me sentava.

A Maria Helena, minha amiga do ano anterior, e as suas histórias de fantasmas e de mortos ficara para trás, noutra turma. Não conhecia bem os novos colegas. Os professores eram outros...

Percebi que havia um trabalho a fazer, que ia crescer, ia ter que lutar, defender-me, proteger-me, e esconder a minha sensibilidade para não ser magoada.
Deixei de chorar, fixei os olhos no livro, sem falar, jurando estar atenta.
“Nunca mais me vão apanhar distraída!”, decidi nessa altura.
Tudo passou, tudo esqueci, voltaram as distracções, os olhares presos na janela a ver se os pássaros -que eu não podia ver- chegavam.

Eu e a minha irmã íamos todos os dias para o Liceu, subíamos a Rua dos Canastreiros, sempre de olhos no chão. Dizia quem nos via das janelas que nunca íamos a direito, sempre aos sss, e que de vez em quando dávamos um encontrão uma na outra. Parávamos mesmo ao cimo, a comprar boleima, que levávamos para o lanche.
Por vezes mudávamos de caminho, pelo Largo da Fonte Nova, olhávamos a Fonte, e continuávamos em frente, indo depois descer a rua que ia dar ao Liceu.

Noutro ano, noutra turma, eu mais cescida, foi o Dr. Reis Pereira, o poeta José Régio meu amigo, que me ralhou, por me “apanhar” a pintar os bonecos dum livro de francês, com lápis de cor.
Veio por detrás de mim, ditando umas frases, no seu passo silencioso, e disse:
-“Os bonecos do livro não são para pintar...”
Devia sorrir, ou talvez não, eu não o via, senti só o seu perfume leve de lavanda. Estremeci. Voltei a chorar...
Foi uma vez só e nunca mais me censurou, apesar de eu continuar a distrair-me.
Observava-me, chamava-me, dizia-me para ler o texto, sem elevar a voz, talvez com a doçura que sempre encontrei nele para nós três.

Entretanto, a Primavera chegara: tinham voltado a nascer os bichos da seda!
Sem darmos por isso, pois há muito os tínhamos esquecido. Os casulos, as borboletas tinham-nos impressionado. A minha irmã não tinha gostado das borboletas, metiam-lhe medo, e eu não queria tocar nos casulos ...
Um dia, a Florinda apareceu na sala com a caixa das camisas que continuara o tempo todo em cima do armário do quarto dela.

-“ Meninas, já viram o que aqui está? Está tudo sujo, uma porcaria...”
E mostrava-nos uma espécie de formiguinhas minúsculas a saírem dos montes de ovos que as borboletas tinham posto no ano anterior.
-“Deito-os fora?!"
-“Não!!!”, gritámos as duas ao mesmo tempo.
Voltámos a interessar-nos por eles, qualquer coisa nos despertava a curiosidade, nesse tempo...

Tudo voltou ao princípio.
De repente, os bichos passaram a ser do tamanho de um bico de lápis afiado, depois, do tamanho de um prego e iam ganhando a sua cor de marfim, quase translúcida, que parecia deixar ver dentro o verde das folhinhas de amoreira que devoravam.
E tudo recomeçou...
Com a Primavera.

Nota: A história da Cassiopeia -que eu não conhecia, claro- só por curiosidade:

Essa constelação está ligada ao mito de Cassiopeia: a vaidosa rainha da Etiópia que comparou a sua beleza à das Nereidas, filhas de Poseidon e por ele foi castigada.

2 comentários:

  1. Olá,
    Sou filha do pintor Lauro Corado e fiquei contente por ver que escolheu um quadro do meu pai. Conheceu-o? Porque escolheu esse quadro?
    Desculpe a minha curiosidade.
    Helena Corado Mendes

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  2. Ainda bem que gostou, Helena. Conheci o seu pai (aliás, os seus pais -lembro-me que a sua mãe era muito bonita), sabia bem que era um pintor, mas creio que nunca falei com ele. Nasci em Portalegre e vivi lá até ir para a Faculdade, casar etc. O meu pai era o Dr. Falcão, suponho que ouviu falar dele, muito amigo do Régio, tinham um "grupo" no Central, depois no Facha, etc. Conhecia decerto o seu pai.
    Vi por acaso esta pintura na net e gostei muito do quadro: por isso, aqui o tem...
    É uma linda pintura da minha cidade!
    Gostei de a "conhecer". Apareça por cá...
    o falcão
    (Maria João Falcão)

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