Para os meus tios, Nina e Fausto, personagens inesquecíveis da minha infância
Eram campos, campos, campos, como diz Manuel da Fonseca no seu belo poema "Estradas":
“Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
Abertos num sono inquieto.
Eram cabeços redondos de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
Cheias de azul e silêncio.”
(...)
Sim, eram campos, campos, campos...
Uma vez passei umas férias, com os meus tios, no Monte da Bodaneira, onde, nesses anos, eles viveram.
Nunca me esqueci dessas férias.
Tinha a ideia de ter ido para terras longínquas, de me distanciar da minha casa, e de Portalegre.
No meio do Alentejo, “uma aventura!”, pensava eu.
Recordo pouco ou nada da chegada à casa, mas suponho que seria ao cair da tarde, por causa do calor intenso...
Era Verão, e o Verão é duro por aquelas paragens.
A minha tia vinha do Norte, de uma família abastada, o meu tio trabalhava como desenhador técnico camarário e percorria nessa altura o Alentejo, fazendo medições, aferindo cálculos, acompanhado pelos seus ajudantes -que não sei por quê ele chamava “miras”-, desenhando mapas cartográficos que eu achava lindos e poéticos!
Tinham-se conhecido quando ele era estudante, no Porto.
Contava-me ela que o meu tio andou muito tempo à roda, a espreitá-la, seguindo-a, sem ousar aproximar-se: ele mero estudante a acabar os estudos, ela menina rica e muito cortejada.
Era muito bonita, sorridente, cheia de amigos, mas acabou por reparar nele, gostou do seu ar directo, da sua timidez e talvez também dos seus olhos garços.
Assisti ao casamento deles e, talvez por isso, a nossa ligação foi muito forte.
Mas lembro-me bem da alegria de nós três e do reboliço que havia em casa quando se anunciava a "buzina" de um certo carro...
A viagem, no pequeno Ford Prefect verde-clarinho (2) do meu tio, pareceu-me uma longa deslocação, uma ida quase sem destino e sem fim!
O meu pai nunca quisera um automóvel e nós quase nunca viajávamos... Para mim era uma novidade!
Descobri, anos mais tarde, que o
Monte da Bodaneira ficava, afinal, a escassos quilómetros da estação ferroviária de Portalegre, num desvio muito perto da zona onde as cegonhas costumam ainda hoje construir os ninhos, nas altas chaminés das velhas casas baixas, ou nos ramos desgrenhados e sem folhas dos eucaliptos junto da estrada.
Era por esse caminho pedregoso, ia-se andando, andando, ao lado dos tais campos e campos que corriam ao lado do carro.
Lembro o sol forte a bater todo o dia, incandescente, nas paredes caiadas da casa. Tudo “à torrina do sol”, como costumava dizer a Florinda dessas tardes de Verão.
Era o sol, os campos a perder de vista, as fileiras de árvores, erectas, junto de algum curso de água, as azinheiras no alto dos cabeços redondos, mais a sua copa ampla, sombra segura, onde os trabalhadores comiam e descansavam, com o tarro da comida, de cortiça, ao lado.
Isso lembro bem.
E a casinha branca e o seu terreiro empedrado em frente, onde aprendi a andar de bicicleta na bicicleta grande da minha tia. O terreiro era uma espécie de largo que tinha em redor outras dependências ligadas ao monte.
Às vezes o meu tio levava-me atrás, na moto, a célebre e mítica Jawa, de que ainda hoje fala.
Íamos ver os sítios onde trabalhava, verificar os trabalhos e eu adorava acompanhá-lo.
De cabelo ao vento o que me obrigava a levar os olhos fechados porque ardiam com a areia ou -quem sabe?- pela vertigem que sentia naquela corrida pelos campos, a uma velocidade louca numa moto de corridas, pensava eu, delirante com a aventura.
A paisagem alentejana envolvia-me, as searas douradas, onde a época da monda acabara há pouco, os campos a perder de vista, as estevas, as urzes. Os cheiros a feno e a trevos, todo aquele verde e amarelo entravam-me pelos olhos, pelo nariz, pelos poros, as cores entonteciam-me.
As florinhas pobres que nasciam à beira dos carreiros, simples nas sua cores azuis e roxas, as papoilas rubras dos trigais encantavam-me...
Sim, eram campos campos campos... Tal como no poema.
Vêm-me hoje à memória páginas de Noel Teles, Brito Camacho, Manuel Ribeiro, e de Manuel da Fonseca, é claro, que imortalizaram o meu Alentejo.
E continuo a ver-me à roda, à roda na bicicleta, nos primeiros dias arrastando o pé pelo chão, depois, orgulhosa, de cabeça erguida e costas bem direitas, com os pés nos pedais, com a velocidade que podia, para impressionar os meus primos.
De vez em quando raspava o braço na parede, esfolava um cotovelo, ou ia parar quase em cima da esquina da casa, ou dos poiais, travando a fundo no último momento.
Às vezes, afastava-me um pouco pela azinhaga, nunca muito longe, a minha tia não deixava.
Os meus primos brincavam por perto, ela ainda muito pequenina, ele um rapazinho de 7 ou 8 anos.
Quantas vezes, esquecendo a minha condição de adolescente de onze ou doze anos, "já crescida", ia brincar com o meu primo! Trepávamos às árvores, cortávamos ramos para fazer setas, corríamos...
Ele ainda hoje corre por aí, homem das Arábias, sempre aventuroso, ora pelas Índias, ora pelos Saharas, Marraqueche, sabe-se lá por onde, na moto, imitando o pai...
Gostávamos de brincar os dois aos índios e aos cowboys, histórias inventadas nas quais eu era sempre o índio, com arcos e flechas armas construídas por nós com a navalha dele que nunca largava, e ele o cowboy com o seu chapéu novo, as pistolas prateadas e um lencinho ao pescoço, última oferta de anos.
Oh! Sim, tenho saudades...
Lembro a minha tia, linda mulher que hoje, na recordação, imagino como certas figuras de mulher do Far West daqueles maravilhosos filmes do Jonh Ford (e, claro, com o John Wayne! O meu tio que me desculpe...).
Acompanhou-o por todo o Baixo Alentejo, o Alentejo profundo – o Wild Alentejo, rude e cheio de humanidade, com tantas dificuldades, o Far West desses tempos!
Sem conforto, sem apoios, por vilas e aldeias, ou simples lugarejos, de Odeceixe a Mira, de Odemira a Aljustrel, até ao começo do Algarve, quantas vezes indo ter com ele nas velhas camionetas de carreira, sempre com o mesmo sorriso com que chegava a Portalegre, a visitar-nos!
Bela, cheia de vida, corajosa, decidida!
Ainda hoje penso que nada lhe mete medo e enfrenta a vida com esse mesmo riso, ao pé do meu tio, ele e a sua calma olímpica, de alentejano de raiz...
Vejo-a ainda, junto da janela dessa casa branca, ao lado dos vasos de flores que ela mesma plantara, queimada pelo sol, nos seus vestidos singelos e coloridos, a rir.
A rir, como toda a vida me lembro de a ver e oiço as suas gargalhadas tão frescas como as da menina que vi noiva e achei tão bonita...
Eu voltei dessas férias diferente, mais segura de mim, bronzeada, orgulhosa e independente pelas idas na bicicleta e os passeios na moto. Guardando a memória cheia de todos aqueles cheiros, dos campos, do sol e do pó da planície alentejana.
(1) Manuel da Fonseca, Estradas, in “Poemas Completos”, p. 98
(2) fotografia da planície alentejana, de José Luís Mendes :
http://olhares.aeiou.pt/planicie_alentejana_foto243548.html
(3) O Ford Prefect foi introduzido -e construído- pela primeira vez em Inglaterra, em 1938, pela Ford de Dagenham, Essex.
O original Ford Prefect era uma modificação do anterior 7Y, o primeiro carro Ford, criado fora de Detroit, no Michigan. Foi desenhado especificamente para o mercado inglês.
(4) A moto JAWA foi criada na Checoslováquia, nos anos 50.
Esta moto foi preparada para Jaromir Cizek que, em 1955, já tinha vencido duas corridas de moto-cross na Checoslováquia.
Em 1958, Cizek foi Campeão Europeu, com a sua Jawa!
Curiosidade -para os interessados: há uma moto Jawa, à venda, em Portalegre!!!
Quem sabe se o meu tio não se decide a comprá-la???
Fantástica a forma como vê o Alentejo com olhos de sentir!!
ResponderEliminarSaudades
Beijinhos
Nâo resisto à tentaçâo de fazer-lhe um comentário,com um pouco já de "complexo de chata":o primeiro carro do meu pai,(depois do cavalo),foi um Ford Perfect, pretinho,matrícula LH-16-61.É a única matrícula que sei de memória,talvez porque a guardo na alma,como essas outras coisas que hâo-de morrer conmigo.Beijinhos.
ResponderEliminarA matricula inesquecível do Prefect do meu pai era: HE-15-89
Eliminar:-))))))))
Agradeço!
EliminarMaria, por favor, nunca tenha qq complexo, muito pelo contrário eu adoro os seus comentários! Sinto que me lê e segue...
ResponderEliminarEste Prefect tb encheu a minha infância porque o meu tio era uma pessoa fantástica, inesquecível, divertido - ainda é...
Acho que estes eram "carros mais humanos"!
Luísa: são os teus olhos que amam o Alentejo...
ResponderEliminarMas sem dúvida que "sinto" isto tudo: parece-me ver o campo, a minha tia encostada à porta como nos tais filmes do Oeste, a ver-nos brincar e à espera do meu tio...Coisas que não se esquecem, ficam muito tempo "na bruma" e depois voltam de repente, com muita força, e querem sair cá para fora...
Sabes como é.
bjsssssss
Já que Maria puxou para o pessoal, aqui vai o meu "pessoal": nos anos 50, na primeira adolescência, na Guarda, era num Ford Perfect que eu imaginava grandes passeios, pela Irlanda (que desconhecia a 100%), em dias chuvosos, românticos, com a Jean Simmons,que me encantava e era a minha actriz preferida... Sim ESSES CARROS ERAM HUMANOS!
ResponderEliminarManuel Poppe
Na pressa de comentar o belo texto sobre o Alentejo, chamei ao saudoso Ford Prefect... Ford... Perfect... Bem, só por causa da pressa ou porque os meus passeios imaginários pela imaginária Irlanda, com Jean Simmons eram, de facto, "perfeitos"...
ResponderEliminarManuel Poppe
Pois é, Manuel Poppe, as "pressas" é o que dão...
ResponderEliminarPor que não se "inspira" na atitude dos alentejanos...já que gosta tanto do Alentejo?
É um conselho amigo.
É que correr dá cabo da vida!!!!!
o falcão
Eu também escrevi "perfect",e nâo tinha pressa nenhuma,nem os meus passeios foram imaginários,felizmente.Espero a sua benevolência para as minhas faltas de ortografia e de acentuaçâo (ai,os acentos!!).Beijinhos
ResponderEliminarPara uma professora os erros são o diabo!
ResponderEliminarMas como já sou "ex", hoje ligo menos a isso. O principal é "cominicarmos"!
Aliás, com a tal (abortada?) reforma ortográfica, quem vai mais alguma vez na vida saber onde está o gato?, quero dizer, o erro?
Escreva, escreva sempre -e obrigada pelo que diz.
beijinhos
Quero dizer "comunicarmos" (com "u")...
ResponderEliminarNão publiquei o 2º comentário, Maria, porque o 1º era suficiente...
ResponderEliminarObrigada, no entanto...
M.J.
ai os erros; os erros...na minha infância 2 ou três erros dava direito, pelo menos a meia duzia de reguadas! :-)
ResponderEliminar... passeios imaginários! não, não, os meios passeios pelos campos do alentejo foram bem reais...eram lindos!Parabens pelo blog
beijinhos
Pois é, Delfina, são passeios lindos...
ResponderEliminarQuando voltas até lá??
Felizmente -quanto aos erros- já não há reguadas. Quantos se ouvem hoje em dia até a falar... E escritos!
Obgd pelos comentários, fico mt contente de te "ver" por perto!
bjs
minha Jana querida...TU és realmente uma pessoa incrível, gosto da maneira como escreves e descreves os momentos que te ficaram na memoria. Adorei, vou mostrar a minha mãe....enquanto li, as lágrimas correram...
ResponderEliminarObrigada.beijos
Obrigada, digo eu. As recordações são fortes quando penso nos meus tios bem amados...
ResponderEliminarbjssssss
Olá, Maria João! Gostei muito deste teu relato de férias. Fiquei a saber mais coisas sobre os meus avós queridos, são de verdade pessoas espectaculares, exemplos a seguir. Obrigada.
ResponderEliminarMuitos beijinhos.
Catarina
Ainda bem, minha querida! Os teus avós foram "isto" e muito mais! Ficaram como disse ligados a alguns dos momentos mais belos da infância. Para mim era um bem e um prazer enorme "senti-los" chegar no tal Prefect...
ResponderEliminarBeijinhos
M.João
Obrigado pelas recordações que senti como minhas.
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