sábado, 22 de maio de 2010

Histórias da casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros, o Liceu e os professores (4)

Quadro de Arsénio da Ressurreição, bairro da Caganita

O edifício do meu liceu, o "Palácio Acciaioli", nessa altura chamado Liceu Nacional de Portalegre (antes, Liceu Mouzinho da Silveira, hoje Escola Normal Superior).

Os professores do liceu pareceram-me, nesse ano de mudança, pessoas distantes, cheias de importância, imponentes. E o Liceu era um espaço enorme, um mundo, aos meus olhos de criança habituados à salinha da casa da minha professora, D. Maria da Alegria...

Sentia-me ainda tratada como uma criança? Acho que sim, mas isso sabia-me bem, enquanto me ia preparando para crescer.
Respeitei-os. Recordo-os hoje, com nostalgia, sem raiva, sem qualquer ressentimento...
Um a um.
O Dr. Matos, professor de Ciências Naturais, severo mas justo, que nos ensinou a Biologia, a Botânica, em aulas sempre vivas; que nos acompanhava em excursões, a ver as grutas de estalactites, ali perto, a conhecer as plantas, as flores andando pelos azinhais e pelos campos de papoilas - a ver os pássaros; que nos ensinava a analisar os minerais, e os sistemas de cristalização que sempre me atraíram.
O Dr. Lomelino, grande matemático, que se sabia na cidade ter vindo “desterrado” para a província, castigado “porque não era da situação” -dizia-se no café, baixinho.
O nosso aéreo professor de Matemática, alto, um pouco curvo, que se perdia nos pensamentos, abstraído em qualquer coisa fora da aula, e que nós ouvíamos, sonolentos, nas aulas a seguir ao almoço, quando o calor descia sobre a terra alentejana.
Nessas aulas, que se passavam geralmente a seguir ao almoço, chamava um aluno ao quadro e adormecia, com a cabeça sobre o peito e o cabelo branco um pouco ralo a flutuar no ar.
De comum acordo, sem palavras, apenas alguns gestos... o silêncio caía na sala de aula, silêncio esse que se substituía à vontade de brincar que sempre havia, quando percebíamos que a aula passaria a correr se “ele” não fosse acordado...
Às vezes era já ao ouvir do toque para a saída que ele acordava. Um pouco espantado, tossia e dizia:
-“Muito bem! Muito bem! Pode sentar-se...”
E o aluno, considerando-se cheio de sorte, ia sentar-se aliviado e até recebia uma boa nota na caderneta.
Depois, fixava -com os seus olhos de um azul deslavado, detrás dos óculos de aros finos- a parede ao fundo e, sem nos ver, murmurava:
- "Podem sair..."

A D. Lucinda, mulher dele, uma figura pequenina e risonha, era a professora que nos ensinava Francês.
Petit poulet, petit poulet”, declamava ela. « Petit poulet, que fais-tu donc là, s’il te plaît ? »
E assim comecei a aprender francês, língua de que já tinha umas noções, ensinada pela minha mãe, que cantava connosco:
"Ah! Si j'étais/le rossignol qui chante/ dans la forêt/je viendrais près de toi.../ Et chanterais/ d'une voix si touchante..."
Na aula, levávamos horas a treinar o “ü” francês, um som que não percebíamos donde nos aparecia!

-Repita lá a Maria João: “Tü”...
E esticava os lábios para a frente, a mostrar:
- “Como uma flauta: “ü”...
Eu tentava, enganava-me, a turma ria.
Falava-nos com amor do Paris que amava, onde todos os anos iam nas férias de Verão.
Do Museu do Louvre, ou do Jeu de Paume, dos Invalides, da Tour Eiffel, foi ela a primeira a falar-nos.
Num Inverno mais chuvoso, apareceu com umas galochas de plástico transparentes que punha em cima dos sapatos nos dias de chuva.
Nós olhávamos, espantados, para aquilo.
Era nesses dias de chuva que, por vezes, ao cimo da Rua dos Canastreiros, ela e o marido mandavam parar o táxi, para nos darem boleia, a mim e à minha irmã.
O que era bem agradável, porque não apanhávamos chuva, mas que nos deixava cheias de vergonha quando saíamos do carro, à entrada do Liceu, em frente dos colegas que se riam à socapa de nós, talvez com uma certa inveja.

Não gostava das aulas de ginástica. Cansava-me aquela hora, porque a professora nos mandava fazer sempre os mesmos exercícios, obrigava-nos a correr à volta da sala, gritando em voz monocórdica, azeda e desinteressada.
Zinaida Serebriakova, auto-retrato quando jovem
Ficava em pé à nossa frente, nunca se mexia, vestida com roupas pesadas, saias compridas, sapatos atacados até ao tornozelo, sem graça, e um ar seco, sem sorrisos na boca, que um leve buço escurecia, batia as palmas abanando ao mesmo ritmo a cabeça penteada com tranças enroladas no alto.
Pelo contrário, gostava muito das aulas de Desenho, com o pintor João Tavares, bom aguarelista, que pintou, de modo forte e suave, a nossa cidade.

pintura de João Tavares, vista sobre a cidade

Havia pintores bons na minha cidade. Vou lembrar alguns que conheci nessa altura e foram amigos do meu pai: Arsénio da Ressurreição, Renato Torres, Manuel d'Assumpção, Lauro Corado.
João Tavares era um deles.
Eu gostava de desenhar, de pintar, e ele ensinou-me o que não sabia: as “aguadas” tão difíceis em que me aplicava, com a língua de fora, para não pôr manchas e deixar as nuances serem graduais e perfeitas; ou a ilustração dos passeios que dávamos para estudar Botânica, as tais excursões com o Dr. Matos.

O castelo de Marvão
Um dia, pintei uma ida a Marvão. Sei que havia um castelo lá no alto e era “eu” que descia a correr, entre as giestas.
Pedi ajuda à minha mãe (que pintava muito bem) para pintar essas giestas. Ela retocou tudo e os arbustos escuros ficaram lindos, salpicados de florzinhas de um amarelo vivo.
Normalmente, o Dr. Tavares fazia um breve elogio aos meus trabalhos. Mas, dessa vez, sorriu e disse só:
-"Mostra isto à tua mãe..."
Ao fundo da folha de papel Cavalinho, onde eu pintara o castelo e um caminho que descia a pique, tal como eu vira perto da vila de Marvão, ele desenhara com o pincel, a frase:
“Bravo, D. Zélia!”
Claude Monet, campo de papoilas

O Dr. Tavares era o pai da minha amiga Letícia, casado com a D. Gioconda de que falei...
Foram tantos os meus professores! Não os posso recordar todos, mas a lembrança não dói, sinto ternura e sorrio ao pensar em alguns deles.
E lembro com saudade o meu Liceu e as suas escadarias...

Escadaria principal do antigo Liceu Nacional de Portalegre
E isso é bom, penso.

2 comentários:

  1. Leio-a sempre com gôsto,porque a vou conhecendo como pessoa,que é o que mais me interessa, a estas alturas da vida.Gostava de saber se recebeu o meu último correio,com uma cita de Torrente Ballester;estranhei que nâo o publicasse.Beijinhos.

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  2. Tem razão, Maria! tenho ideia de o ter recebido, mas, muito provavaelmente, "enganei-me" e em vez de carregar na tecla "publish", pus a "reject"! Acontece-me várias vezes... É a rapidez com que faço tudo, em vez de seguir a minha natureza alentejana!
    Mande-mo outra vez se puder, lembro-me muito bem de ler essa citação, gostava de a ter e de a publicar, mas perdi-a!
    beijinhos

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