“Pela variedade e intensidade das suas experiências, a vida de Malraux, desde a juventude, à idade madura e até à velhice, aparece-nos não como uma “carreira” mas como uma aventura!”, diz Robert Bréchon (1).
É assim que senti – e sinto- os seus livros, que o vejo, mesmo quando mais velho, com o seu eterno ar de jovem, melena caída para a frente, o olhar brilhante, generoso, à espera de mais um desafio, mais uma aventura arriscada, a viver ainda.
É assim que senti – e sinto- os seus livros, que o vejo, mesmo quando mais velho, com o seu eterno ar de jovem, melena caída para a frente, o olhar brilhante, generoso, à espera de mais um desafio, mais uma aventura arriscada, a viver ainda.
Muitos são os autores que se debruçaram sobre a obra de Malraux. Cito alguns livros bem interessantes:
Além da Biografia recente de Olivier Todd que já referi (André Malraux Une vie, Folio, 2001), temos o livrinho precioso, "Malraux par lui-même", organizado por um dos "especialistas" de Malraux, e da Literatura Francesa em geral, Gaëtan Picon.
O longo ensaio, "Malraux", por Pierre de Boisdeffre (Editions Universitaires).
Ou "La Condition Humaine d'André Malraux", Classiques Hachette, colecção "Lire Aujourd'hui", estudo de Robert Bréchon.
Conversando há dia com uma amiga, pela internet -o nosso único modo possível de "falar"- concluí que tínhamos “sublinhado” as mesmas frases, n' A Condição Humana:
Escreve-me :
Escreve-me :
“De André Malraux li A Condição Humana, livro duríssimo, de que tenho sublinhadas frases como esta:
"Que penserions-nous si l´on nous parlait d´un grand peintre qui ne fait pas de tableaux? Un homme est la somme de ses actes, de ce qu´il a fait, de ce qu´il peut faire. Rien autre."
Sim, é isso mesmo: “o homem é a soma dos seus actos, do que fez, do que pode fazer. Mais nada!”
Penso que o mais importante é a ideia de que até ao fim da vida o homem “pode sempre fazer”, não tem desculpa se o não fizer... É uma responsabilização pelos nossos actos que o autor deixa...
Diz Kyo: “Pour le autres je suis ce que j’ai fait". Os nossos gestos são o nosso reflexo.
Gisors, pai de Kyo e Mestre da geração daqueles jovens, diz no início de La Condition Humaine:
capa de uma edição brasileira de A Condição Humana
“Que fazer de uma alma, se não existe Deus nem Cristo?” ( La Condition Humaine, p.67, Gallimard, 1946)
Pensava em Kyo, cuja mãe, japonesa, o educara dos oito aos 17 anos, no Japão:
"(...) indiferente ao cristianismo, essa educação oriental levara-o a acreditar que as ideias não eram para ser pensadas, mas vividas.
Kyo escolhera a acção de forma grave e premeditada como outros escolhem as armas ou o mar.
O sentido heróico fora-lhe comunicado como uma disciplina e não como uma justificação de vida. A sua vida tinha um sentido e ele conhecia-o: dar a estes homens e mulheres que neste momento a fome fazia morrer como uma peste lenta, a posse de uma dignidade.”
E lembra-se do seu discípulo Tchen, que assassinara um homem.
O sentido heróico fora-lhe comunicado como uma disciplina e não como uma justificação de vida. A sua vida tinha um sentido e ele conhecia-o: dar a estes homens e mulheres que neste momento a fome fazia morrer como uma peste lenta, a posse de uma dignidade.”
E lembra-se do seu discípulo Tchen, que assassinara um homem.
“Era necessário. Mas a hesitação, a angústia que sentira eram insuportáveis”, dissera-lhe.
O livro começa, aliás, com a "dúvida" de Tchen, e a descrição do assassínio:
O livro começa, aliás, com a "dúvida" de Tchen, e a descrição do assassínio:
“Tchen tentaria erguer o mosquiteiro? Atacaria através dele? A angústia torcia-lhe o estômago; conhecia a própria firmeza, mas não era capaz neste instante se não de pensar nisso numa forma de torpor, fascinado por aquela massa de mousseline branca que caía do tecto sobre um corpo menos visível do que uma sombra, donde saía apenas aquele pé meio inclinado pelo sono, mas vivo –de uma carne de homem.”
Repetia para si próprio que aquele homem tinha de morrer.
Repetia para si próprio que aquele homem tinha de morrer.
Para conseguir vencer a sua relutância, começa por espetar o punhal no próprio braço, antes de o matar.
Quando tudo acaba, Tchen defronta-se com a noite de Shangaï.
a noite de Shangaï
Shangaï, a cidade barulhenta, cheia de gentes, “onde palpitavam as vidas dos homens que não matam. Todas essas vidas agora rejeitam a sua.”
Sente-se vazio. Sozinho, perante o céu gelado. O seu destino é o desconhecido.
Mais tarde, quando se encontra com os companheiros, sente-se incompreendido.
imagem tirada d' "A Metamorfose dos Deuses" (Iº Volume 1957), de Malraux: nas grutas de Yun-Kang, China, séc V-VI d.C
O professor Gisors diz: “essa afirmação absoluta, essa afirmação de louco é que definem a condição humana”.
No final repetirá a May, quando ela lhe revela a ideia de continuar a acção revolucionária de Kyo:
Sempre pensei que deveria haver um filme sobre este livro. Não o encontrei. Mas esteve para existir...
A Condição Humana foi um filme inacabado (Man's Fate), em 1969, dirigido por Fred Zinnemann e produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).
Shangaï, a cidade barulhenta, cheia de gentes, “onde palpitavam as vidas dos homens que não matam. Todas essas vidas agora rejeitam a sua.”
Sente-se vazio. Sozinho, perante o céu gelado. O seu destino é o desconhecido.
Mais tarde, quando se encontra com os companheiros, sente-se incompreendido.
“Como todas as sensações intensas, a do perigo, ao desaparecer, deixava-o vazio; aspirava a reencontrar essa sensação.”
Sente-se insatisfeito.
Precisava dessa sensação, como de uma droga. Sentir o perigo e o prazer de matar... é esta última sensação que o assusta: o prazer.
Só consegue confessá-lo a Gisors, seu antigo professor, que considerava um sábio, o seu mestre em tudo. Tinha que falar com ele.
Vai procurá-lo, de madrugada.
Vai procurá-lo, de madrugada.
E conta tudo a Gisors.
O Mestre ouve-o, em silêncio.
Recorda a chegada de Tchen, anos antes, quando pensara, ao vê-lo: “este adolescente não pode viver de uma ideologia que não possa imediatamente transformar em actos.”
E ali estava Tchen a contar-lhe o que fizera:
- Sinto-me terrivelmente só, disse, olhando Gisors de frente.
- Pensas que não vais conseguir sair disso... e é contra essa... angústia que vens procurar-me.
- Angústia, não.
E ali estava Tchen a contar-lhe o que fizera:
- Sinto-me terrivelmente só, disse, olhando Gisors de frente.
- Pensas que não vais conseguir sair disso... e é contra essa... angústia que vens procurar-me.
- Angústia, não.
E acrescenta:
- Uma fatalidade?
Gisors percebera. No fundo vem pedir ao Mestre que o ajude a querer morrer. Gisors sabe que o que ele espera dele é que lhe diga o que precisa de ouvir. E lhe comunique a força para ir de encontro ao seu destino.
Gisors percebera. No fundo vem pedir ao Mestre que o ajude a querer morrer. Gisors sabe que o que ele espera dele é que lhe diga o que precisa de ouvir. E lhe comunique a força para ir de encontro ao seu destino.
imagem incluída em "A Metamorfose dos Deuses" (Iº Vol): o belo "rosto velado", ateliers Tanagra, Grécia, século IV a.C., hoje no Museu do Louvre
Que daria algum sentido à vida.
“Não aspira à glória, a nenhuma felicidade. Capaz de vencer mas não de viver na vitória, que pode ele desejar, se não a morte? Quer, sem dúvida, dar-lhe o sentido que outros dão à vida. Morrer ao mais alto nível”, pensa Gisors. “Alma ambiciosa, bastante lúcida, bastante afastada dos homens ou bastante doente para desprezar todos os objectos da sua ambição e ela própria?”
A impaciência de encontrar a solução, de sair imediatamente da solidão e da angústia, vai conduzi-lo à acção isolada, e ao terrorismo.
Gisors sabe-o. Não pode fazer nada.
É um momento terrível, doloroso, quando Tchen decide a sua sorte.
- Vou partir sozinho, disse. Chego eu esta noite.
- Mas eu organizo alguma coisa, respondeu Souen.
- Será tarde de mais.
Diante da loja, Peï segue Tchen. Este apercebe-se que o adolescente, de óculos na mão –tão mais humano, este rosto de miúdo, sem lentes nos olhos- chorava em silêncio.
- Onde vais?
- Vou contigo.
- Não, hoje só testemunhas.
Crispou os dedos no braço de Peï.
- Testemunha, repetiu.
Afastou-se. Peï ficou no passeio, de boca aberta, a enxugar as lentes dos óculos.
- Mas eu organizo alguma coisa, respondeu Souen.
- Será tarde de mais.
Diante da loja, Peï segue Tchen. Este apercebe-se que o adolescente, de óculos na mão –tão mais humano, este rosto de miúdo, sem lentes nos olhos- chorava em silêncio.
- Onde vais?
- Vou contigo.
- Não, hoje só testemunhas.
Crispou os dedos no braço de Peï.
- Testemunha, repetiu.
Afastou-se. Peï ficou no passeio, de boca aberta, a enxugar as lentes dos óculos.
Nunca pensou que se pudesse estar tão sozinho.”
Perante um céu distante, indiferente, vazio, os heróis de Malraux consomem-se num fogo: o desejo de absoluto total. Para “dar um sentido à vida”, como dizia de si próprio Kyo Gisors.
Perante um céu distante, indiferente, vazio, os heróis de Malraux consomem-se num fogo: o desejo de absoluto total. Para “dar um sentido à vida”, como dizia de si próprio Kyo Gisors.
Ou dar um sentido à morte.
Como Katow... Quando pensa que “o universo que o tratara toda a vida aos pontapés no ventre não o ia espoliar agora da única dignidade que possuía, que podia possuir –a sua morte.”
Kyo, o herói generoso, o "homem fundamental", completo, que todos os heróis de Malraux procuram ser, e que, talvez só ele, Kyo, e Katow tenham conseguido.
Através da humanidade, da fraternidade, penso eu.
Como Katow... Quando pensa que “o universo que o tratara toda a vida aos pontapés no ventre não o ia espoliar agora da única dignidade que possuía, que podia possuir –a sua morte.”
Kyo, o herói generoso, o "homem fundamental", completo, que todos os heróis de Malraux procuram ser, e que, talvez só ele, Kyo, e Katow tenham conseguido.
Através da humanidade, da fraternidade, penso eu.
“Apagando-se” na personagem colectiva: os revolucionários de Shangaï (2) que, segundo Robert Bréchon, são o verdadeiro herói do romance.
Shangaï, hoje, na noite
Dar um sentido à sua vida e às dos outros. Sem que percam a sua individualidade.
E na solidão.
Porque cada um de nós está sozinho com a sua consciência. E, às vezes, na procura, na acção, encontra os outros, uma comunhão.
Kyo não reconhece a própria voz gravada.
E na solidão.
Porque cada um de nós está sozinho com a sua consciência. E, às vezes, na procura, na acção, encontra os outros, uma comunhão.
Kyo não reconhece a própria voz gravada.
- Por que a mudaram?
- Não a mudámos (...). É raro que reconheçamos a própria voz, quando a ouvimos gravada pela primeira vez.
- O gravador altera-a?
- Não é isso, porque todos reconhecemos facilmente a voz dos outros. Mas, sabe, não estamos habituados a ouvir-nos a nós próprios.”
Qual a importância ou o significado disto?
- Não a mudámos (...). É raro que reconheçamos a própria voz, quando a ouvimos gravada pela primeira vez.
- O gravador altera-a?
- Não é isso, porque todos reconhecemos facilmente a voz dos outros. Mas, sabe, não estamos habituados a ouvir-nos a nós próprios.”
Qual a importância ou o significado disto?
Que nós nos ouvimos através da garganta (por dentro), e ouvimos os outros pelos ouvidos (de fora).
Cada homem está pois “encerrado em si mesmo”, existe “para si” e é uma “subjectividade pura”.
Cada homem está pois “encerrado em si mesmo”, existe “para si” e é uma “subjectividade pura”.
O professor Gisors diz: “essa afirmação absoluta, essa afirmação de louco é que definem a condição humana”.
No final repetirá a May, quando ela lhe revela a ideia de continuar a acção revolucionária de Kyo:
"Todos os homens são loucos, mas o que é o destino humano se não uma vida de esforços para unir esse louco ao universo?”
E o sentido que o homem procura dar à vida –ou à morte- depende da natureza da relação que ele “cria” com os outros e dos valores sobre os quais fundamenta essa relação: compreensão, camaradagem, fraternidade...
É essa relação que dá um sentido “moral” ao romance (R. Bréchon).
Basta recordar o sacrifício supremo de uma das personagens quando, preso, com outros companheiros, decide dividir em dois bocados o único comprimido de cianeto que tinha e fica, no terror, à espera de ser torturado e morrer.
E o sentido que o homem procura dar à vida –ou à morte- depende da natureza da relação que ele “cria” com os outros e dos valores sobre os quais fundamenta essa relação: compreensão, camaradagem, fraternidade...
É essa relação que dá um sentido “moral” ao romance (R. Bréchon).
Basta recordar o sacrifício supremo de uma das personagens quando, preso, com outros companheiros, decide dividir em dois bocados o único comprimido de cianeto que tinha e fica, no terror, à espera de ser torturado e morrer.
Durante um momento, porém, escapara à solidão: quando aperta na sua a mão quente de um deles, que se suicida agarrado a essa mão, e lhe diz: “mesmo que não encontremos nada...”
É nessa comunhão com os outros, na solidariedade, na dádiva que a solidão desaparece.
É nessa comunhão com os outros, na solidariedade, na dádiva que a solidão desaparece.
É na liberdade -para si e para os outros- que se baseia o combate dos seus heróis.
A liberdade pura e simples, sem nada "em troca".
"La liberté n'est pas un échange, c'est la liberté. "
E é nesse momento que o homem vence a sua condição humana...
Romance triste, duro, mas que deixa uma janela aberta, apesar das últimas palavras do livro serem "o sorriso amargo" de May...
Contemporâneo da geração perdida de Hemingway e Fitzgerald, com tudo o que existia neles de febril e de inquietação, acrescentando ainda a sua infância carente de afectividade, o suicídio do pai, e a sua vida desordenada, André Malraux pertence a uma juventude desencantada.
Talvez a aventura tenha sido a forma de viver e transformar em “actos” o desencanto da vida.
Contemporâneo da geração perdida de Hemingway e Fitzgerald, com tudo o que existia neles de febril e de inquietação, acrescentando ainda a sua infância carente de afectividade, o suicídio do pai, e a sua vida desordenada, André Malraux pertence a uma juventude desencantada.
Talvez a aventura tenha sido a forma de viver e transformar em “actos” o desencanto da vida.
De lhe dar um sentido...
capa do IIº volume de "La Métamorphose des Dieux"
Como o será, também, a Arte, a Criação.
Lembro a epígrafe que escolhe para abrir o Iº volume de La Métamorphose des Dieux: uma frase de Van Gogh.
"Je puis bien, dans la vie et dans la peinture, me passer du Bon Dieu. Mais je ne puis pas, moi, souffrant, me passer de quelque chose qui est plus grand que la vie: la puissance de créer."
Noutro sítio, Malraux afirmará:
"Toda a arte é uma revolta contra o destino do homem"...
No fundo, o Sonho pode comandar a vida...
Botticelli, pormenor de "O Nascimento de Vénus"
Espero não vos ter cansado!
Queria "comunicar-vos" o meu interesse, o deslumbramento -ainda hoje- por este autor...
(1) in La Condition Humaine d' André Malraux, Classiques Hachette, colecção "Lire Aujourd'hui".
Segundo Robert Bréchon são esses revolucionários o verdadeiro herói do romance.
(2) a revolução comunista, falhada, que ocorre em Shanghai, em 1927.
A Condição Humana foi um filme inacabado (Man's Fate), em 1969, dirigido por Fred Zinnemann e produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).
A adaptação foi feita pela escritora Han Suyin, conhecida pelo livro de 1952, A Many-Splendoured Thing.
Zinnemann escolheu e preparou locais para as filmagens, na Malásia e em Singapura, e as cenas de interior seriam filmadas nos estúdios da MGM Londres. Os actores estavam escolhidos: David Niven, Peter Finch e Liv Ullmann. Durante três anos a questao arrastou-se. Mas as dificuldades económicas da MGM e a decisão de "cortar" com os filmes pouco comerciais levaram à paragem das filmagens, em 1969.
Zinnemann processou a MGM e ganhou a acção em 1973. Mas o filme não se fez...
Disse Zinnemann, numa entrevista, no fim da vida:
“Sentia uma necessidade enorme de realizar "Man’s Fate" porque o livro foi uma bíblia para a minha geração. Foi um dos maiores romances dos anos 30 e 40 e ser chamado para o realizar foi um dos acontecimentos mais importantes da minha vida.”
Em 1880, Bernardo Bertolucci propôs ao Governo Chinês a adaptação do livro, mas foi preterido pela alternativa apresentada, O Último Imperador.
Em 2001, Michael Cimino anunciou que ia criar uma versão da Condição Humana (com Daniel Day-Lewis, John Malkovitch, Uma Thurman e Johnny Deep).
Até agora nada feito...
Que pena!
Boa tarde, procuro uma obra deste autor onde aparece a seguinte citação: “Deveria festejar-se o dia em que, pela primeira vez se reflectiu sobre a morte porque é o dia que marca a passagem para a maturidade. O homem nasceu quando, pela primeira vez, murmurou diante de um cadáver: porquê?”
ResponderEliminar(André Malraux, pp.52-53)
Pistas? (vanessa.florindosalvador@gmail.com)