sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Histórias da Casa Amarela: de Portalegre ao Porto "O casamento do meu tio"...

Portalegre, o Coreto que fica no Rossio

Portalegre, vista pelo pintor Arsénio Ressurreição

uma bela rua antiga do Porto

O Casamento do meu Tio



O meu tio era o único irmão da minha mãe. Recordo-os pequenos numa fotografia antiga que a minha mãe guardou sempre em cima da lareira.

Estavam os dois num carrinho de verga, puxado por um cão que me parecia um S. Bernardo.

Contava a minha mãe que esse cão era muito pachorrento e bom e que tinha uma paciência infinita para as traquinices deles.

Tinham um ar de meninos compostos, a minha mãe com um vestido de rendas e fitas e um ar assustado, e o meu tio vestido à marinheiro, com ar de desafio.
Mas o olhar dos dois era semelhante e, apesar de muito diferentes no feitio e nas atitudes, tinham afinidades e uma amizade que sempre os uniu.

Quando éramos pequenas, o meu tio era esperado com ansiedade lá em casa, por nós três. Alegre, brincava sem se cansar, fazia-nos rir com as caretas cómicas que inventava e os seus olhos esverdeados nunca se impacientavam com coisa nenhuma da vida.

Vivia com a mesma tranquilidade e boa disposição do meu avô, que era a pessoa mais doce, calma e generosa que conheci!
Vista da cidade de Portalegre, do pintor Lauro Corado
Lá de casa, fui só eu a assistir ao casamento dele e tive sempre nisso muito orgulho.
Eu devia ter uns quatro anos, e foi uma aventura extraordinária para mim essa viagem. Inesquecível.
Quando hoje volto ao Porto lembro sempre essa primeira sensação de distância, dos espaços de uma cidade grande, prédios altos, jardins, tudo tão diferente da minha cidade de província...
Era uma longa distância, de Portalegre ao Porto e eu nunca tinha viajado se não de Alegrete a Portalegre.
Portalegre, Igreja de São Lourenço, desenho de José Rodrigues Neves


Suponho que fomos de comboio até ao Porto: os meus avós, a tia Leopoldina, uma prima, a Lena, e eu.
Os meus pais não foram: tinha nascido a minha irmã mais nova, duas semanas antes, e a minha irmã estava doente com asma e não pôde ir. Tenho a vaga ideia de passarmos um rio e de ver as montanhas, mas posso ter inventado tudo...

Vivi coisas maravilhosas nesses dias que vejo como um dia único que parecia nunca mais ter fim.
Lembro-me bem da loja dos chapéus! Onde seria?


Laços, fitas de cetim, alfinetes, flores de seda por todo o lado, e, no meio de tudo isso, fiquei a espreitar pela janela baixa, de joelhos numa cadeira, a rua cheia de sol, com cores mais vivas do que as da minha rua.

Ouvia a voz da dona da loja que era um pouco cantada, e a da minha avó a responder-lhe, e comecei a sentir-me tonta.

A meio da escolha dos chapéus, adormeci na cadeira e já só me lembro de estar no casamento.

A minha avó ia vestida de azul escuro, com um chapéu e véu da mesma cor, o meu avô tinha um fraque e um chapéu que me pareceu enorme.

A tia Leopoldina, mostrava-se imponente, com o seu penteado alto e o chapéu com uma pena, no seu vestido de seda castanha com rendas no peito e várias fieiras de pérolas agarradas ao pescoço.

Eu levava um vestidinho azul claro, vaporoso, cheio de folhos, e umas fitinhas na cabeça.
E, de repente, surgiu a noiva, linda, cheia de vida, risonha, mais as suas damas de honor, com flores brancas nos cabelos.

O seu era um longo vestido de tule, que me contou ela depois ter levado quase cinquenta metros de tecido, e uma cauda enorme que eu levava o tempo a segurar mesmo quando não era preciso.
Vejo-nos numa fotografia, num jardim, com muitas jovens bonitas à volta dela, e eu, à frente, preocupada com uma pontinha do vestido bem agarrada na mão e a outra mão espalmada na barriga.

O meu tio estava de fraque, muito elegante achei eu, e com uma cartola debaixo do braço. Lembro ainda pessoas que riam muito, vestidos com bordados e rendas, a mesa com doces, bolos, amêndoas, rebuçados, flores.

Eu espreitava as salas todas, corria pelos corredores e ia para a sacada da janela grande, que tinha uma protecção de ferro forjado, e deitava mãos cheias de rebuçados para a rua onde um grupo de miúdos, que brincava, se ia reunindo à espera do que eu deitasse.

Não me lembro de mais nada, tão cansada cheguei ao fim do dia. Nem recordo a viagem de regresso, nem a chegada a casa, tudo se confunde numa nebulosa.

3 comentários:

  1. Que lindas recordações, para teres só quatro anos.
    Achei um piadão à tua fotografia com a bola, eu nunca tive uma bola tão grande!Beijinhos

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  2. É a única recordação "forte" dessa idade, talvez por ser uma emoção e uma aventura tão grande...
    A bola era encarnada e estávamos a brincar na Corredoura de Portalegre, eu e as minhas irmãs, mas já devia ter 5 ou mais...
    Obrigada por teres paciência para as minhas lembranças!
    bjs
    Vai tudo bem?

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  3. Hoje, lê-se com dor e saudade, não é meu amor?

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