Lembro-me bem do dia em que me separaram da minha irmã, devia eu ter cinco anos. Ela era um ano mais velha. Adoecera com tosse convulsa e, para não ser contagiada, o meu pai levou-me para casa duma tia da minha mãe, a tia Mariquinhas.
quadro do pintor russo, Vasnetsov, "o tapete mágico"
O meu mundo encantado ficou para trás.
Olhava para ela, cá de baixo, e chorava. Nada me consolava de a deixar e o grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado.
Mordechai Levan, a aldeia de Safed
Com o seu tecto pintado de azul, céu no qual corriam figuras cheias de grinaldas de flores, com as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.
À janela, na noite, vira o meu pai abrir o guarda-chuva e nele pousarem devagar pequenos flocos brancos que logo se desfaziam em gotas que escorregavam pela seda preta até ao chão brilhante, onde uma mancha branca começava a formar-se. É a única recordação de neve da minha infância.
A noite em que me levaram era fria também.
Berthe Morisot, menina a ler
Lia uns livros de bonecos que trouxera de casa, mas nada me entretinha.
Durante horas, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, às pintas de todas as cores.
Das muitas bonecas de louça, velhas, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras e armários pintados com flores de várias cores.
Os dias desenrolavam-se lentos e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos.
Lia e sublinhava tudo e riscava os livros todos, deixando-me espantada por ele poder riscar os livros, e eu não...
À noite punha-me a pensar nestas coisas e ficava ainda mais triste.
Não sei quantos dias passaram.
Uma noite, depois do jantar, ouvi tocar a campainha da porta. Eu brincava, fazia uma “cantareira” com os brinquedos em cima de um sofá e começava a ter muito sono.
Alguém foi abrir e, de repente, ao fundo do corredor, soaram uns passos rápidos que se aproximavam. Virei-me para a porta da sala que se abria e larguei tudo: era o meu pai que me vinha buscar!
Agarrei-me ao pescoço dele. A mala foi feita a correr, eu não podia esperar.
Atravessámos o largo da Sé, deserto. Por detrás da igreja, lá no alto, a lua brilhava encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneciam. As estrelas apareciam...
Sentia-me quentinha, com a minha mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, a voltar para casa.
Nostalgia da infância. A presença de quem partiu. E eu a sentir os olhos húmidos. OBRIGADA pela ternura da sua escrita.
ResponderEliminarBeijinhos
Hoje apetece-me falar-te de hoje, de este dia luminoso em que apetece ser feliz,de como gostaria de ouvir as tuas histórias se estivesses aqui,de como em tão pouco tempo te tornaste tão imprescindível, de que não sei bem se existes ou te estou sonhando,de que às vezes a vida dói, de que sempre se anda à procura de qualquer coisa.
ResponderEliminarOs quadros são fantásticos, mas a foto das duas irmãs não tem preço...Lembras-me tanto a mim com essa idade! Beijinhos
ResponderEliminarDizem,com ar resignado,é a vida.
ResponderEliminarNão,outra sociedade tem de ser possível,sem que tenham de nos "deitar à roda".
Cordial abraço,
mário
Saudações nobre amiga.
ResponderEliminar"Nostalgia, o que seria da vida sem as lembras que acompanha o cerne da existencia. Lembranças são valores guardados no baú de ser pensante a qual abastece a direção com pedaços bem guardados de mim mesmo", diz o poeta.
Espero que sua rimá tenha melhorado já que voltaste para o aconchego do lar.
Fica na paz e Namastê
Mr. Butterfly
Como é bom recordar...pois, recordar é viver!
ResponderEliminarbeijinhos
realmente Jana, adoro/te....a quantidade de pormenores que tu recordas e descreves... com uma sensibilidade... és única... e que facilidade...Claro que eu ao ler me chegam naturalmente lágrimas aos olhos.gostei também da selecção de pinturas intercalada com a escrita.beijinhos.mane
ResponderEliminarObrigada, amigos! Sinto-me feliz!
ResponderEliminarEsta recordação da infância, ligada ao meu pai, é uma das primeiras histórias que escrevi. Guardei-a cá dentro muito tempo...
Mané, és um amor...
Bjs