terça-feira, 28 de setembro de 2010

Histórias da Casa Amarela: A primeira separação...


Kandinsky, paisagem de Inverno
A primeira separação

Lembro-me bem do dia em que me separaram da minha irmã, devia eu ter cinco anos. Ela era um ano mais velha. Adoecera com tosse convulsa e, para não ser contagiada, o meu pai levou-me para casa duma tia da minha mãe, a tia Mariquinhas.


quadro do pintor russo, Vasnetsov, "o tapete mágico"

O meu mundo encantado ficou para trás.

Ela estava, ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria descer, vir ter comigo e gritava.

Recordo o seu bibe branco, enfeitado de folhos nos ombros, a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias de renda até ao joelho.
Olhava para ela, cá de baixo, e chorava. Nada me consolava de a deixar e o grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado.

Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Dias antes, debruçada à janela alta da nossa casa amarela, tinha visto sair os meus pais para irem ao cinema, o velho Cine-Teatro de que eu gostava tanto!


Mordechai Levan, a aldeia de Safed


Com o seu tecto pintado de azul, céu no qual corriam figuras cheias de grinaldas de flores, com as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.

À janela, na noite, vira o meu pai abrir o guarda-chuva e nele pousarem devagar pequenos flocos brancos que logo se desfaziam em gotas que escorregavam pela seda preta até ao chão brilhante, onde uma mancha branca começava a formar-se. É a única recordação de neve da minha infância.

A noite em que me levaram era fria também.

Van Gogh, noite estrelada sobre o rio Rhône

Havia três primas crescidas, naquela casa estranha, que ficava ao fundo de uma rua estreita onde, ao anoitecer, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me a correr à janela para o ver, para me distrair, outras vezes, nem me levantava da cadeira e ouvia apenas, desinteressada, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da calçada.

Berthe Morisot, menina a ler

Lia uns livros de bonecos que trouxera de casa, mas nada me entretinha.


Durante horas, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, às pintas de todas as cores.

Brincavam comigo o dia inteiro, para me distraírem e tirar-me da tristeza em que me deixara a ausência da minha irmã doente, dos meus pais, e da irmã pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir.
Nessa casa havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama e a quem eu dava leite num biberon de bonecas.

Mary Cassat, Sara com o gato...

Das muitas bonecas de louça, velhas, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras e armários pintados com flores de várias cores.

Os dias desenrolavam-se lentos e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos.
Lia e sublinhava tudo e riscava os livros todos, deixando-me espantada por ele poder riscar os livros, e eu não...

À noite punha-me a pensar nestas coisas e ficava ainda mais triste.
Não sei quantos dias passaram.

Uma noite, depois do jantar, ouvi tocar a campainha da porta. Eu brincava, fazia uma “cantareira” com os brinquedos em cima de um sofá e começava a ter muito sono.

Alguém foi abrir e, de repente, ao fundo do corredor, soaram uns passos rápidos que se aproximavam. Virei-me para a porta da sala que se abria e larguei tudo: era o meu pai que me vinha buscar!
Agarrei-me ao pescoço dele. A mala foi feita a correr, eu não podia esperar.


E saímos os dois, na noite. Eu, com o meu casaco felpudo, barrete de lã vermelha que apertava debaixo do queixo, e as minhas botas grossas, o meu pai com um sobretudo comprido que o fazia parecer ainda mais alto, o cachecol escuro e umas luvas de pele amarela.
Van Gogh, noite de estrelas

Atravessámos o largo da Sé, deserto. Por detrás da igreja, lá no alto, a lua brilhava encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneciam. As estrelas apareciam...
Sentia-me quentinha, com a minha mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, a voltar para casa.

8 comentários:

  1. Nostalgia da infância. A presença de quem partiu. E eu a sentir os olhos húmidos. OBRIGADA pela ternura da sua escrita.

    Beijinhos

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  2. Hoje apetece-me falar-te de hoje, de este dia luminoso em que apetece ser feliz,de como gostaria de ouvir as tuas histórias se estivesses aqui,de como em tão pouco tempo te tornaste tão imprescindível, de que não sei bem se existes ou te estou sonhando,de que às vezes a vida dói, de que sempre se anda à procura de qualquer coisa.

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  3. Os quadros são fantásticos, mas a foto das duas irmãs não tem preço...Lembras-me tanto a mim com essa idade! Beijinhos

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  4. Dizem,com ar resignado,é a vida.
    Não,outra sociedade tem de ser possível,sem que tenham de nos "deitar à roda".
    Cordial abraço,
    mário

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  5. Saudações nobre amiga.
    "Nostalgia, o que seria da vida sem as lembras que acompanha o cerne da existencia. Lembranças são valores guardados no baú de ser pensante a qual abastece a direção com pedaços bem guardados de mim mesmo", diz o poeta.
    Espero que sua rimá tenha melhorado já que voltaste para o aconchego do lar.
    Fica na paz e Namastê
    Mr. Butterfly

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  6. Como é bom recordar...pois, recordar é viver!
    beijinhos

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  7. realmente Jana, adoro/te....a quantidade de pormenores que tu recordas e descreves... com uma sensibilidade... és única... e que facilidade...Claro que eu ao ler me chegam naturalmente lágrimas aos olhos.gostei também da selecção de pinturas intercalada com a escrita.beijinhos.mane

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  8. Obrigada, amigos! Sinto-me feliz!
    Esta recordação da infância, ligada ao meu pai, é uma das primeiras histórias que escrevi. Guardei-a cá dentro muito tempo...
    Mané, és um amor...
    Bjs

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