Impressionou-me a história do filme que não vi e espero ainda ver: “Poesia”, do realizador sul-coreano Lee Chang-dong.
Isolados os dois.
Não falam quase nunca.
E a vida vai passando, simples, numa melancólica apatia, cheia dessas complicações banais que as relações difíceis entre as pessoas trazem.
Um dia apercebe-se de que as palavras não lhe chegam da mesma maneira, quando necessita delas.
Fogem-lhe, procura-as na cabeça e não as encontra. Preocupa-se.
Mas isto sabe-se só depois.
As primeiras cenas do filme mostram o cadáver de uma miúda flutuando nas águas de uma ribeira. É o corpo de uma adolescente que se suicidara, depois de vítima de um estupro colectivo, pelos colegas, grupo do qual fazia parte o neto da protagonista.
Aparentemente, a personagem escolhida pelo realizador como figura central do filme nada tem que ver com esta cena.
No entanto, no decorrer da acção do filme, vai ter.
A perda da memória, lenta e gradual, leva a velha senhora a inscrever-se num clube de poesia: talvez o único modo de dar algum sentido à vida, talvez o modo de reencontrar as palavras, criando...
- “Como se faz uma poesia? Como se tem a inspiração?”
Não há respostas: é dentro de si que a tem de encontrar...
Nele, afirma o articulista:
“Os filmes de Chang-dong são muitas vezes histórias cruéis que tratam de forma insidiosa a barbárie contemporânea e banal. Uma doce implacabilidade.”
Imagem de Secret Sunshine, 2007
Já no filme anterior, “Secret Sunshine” (2007) –nota o articulista- escolhera um tema doloroso e a mesma tentativa de “compreender” o inexplicável, porque demasiado cruel.
"Secret Sunshine"Pergunta:
“Por que não exorcizar o mal que a atingiu, tentando substituir a realidade cuja enunciação lhe escapa pela expressão poética, simbólica, cheia de imagens?”
E a história vai-se desenrolando.
Na pequena aldeia, as famílias dos acusados e a imprensa preferem abafar o caso, que traria vergonha para a comunidade, e convencem a velha senhora a servir de intermediária, indo propôr uma soma “reparatória” à mãe da miúda que se suicidara, para ela “esquecer”...
Há um encontro entre as duas, no meio do campo, num pomar.
A mãe da afogada era uma camponesa modesta e jovem, uma pessoa ingénua e simples.
E esse encontro é um momento intenso, porque entre as duas surge de repente uma empatia, uma compreensão total.
Sozinhas as duas e rodeadas da natureza, bela e indiferente, conversam.
Imagino eu.
Esquecendo a sua cínica missão, Miia – avelha senhora- vai falar-lhe apenas das coisas da vida, das macieiras que floriram, da futura maturação das maçãs...
Como se a amnésia “aparente” tivesse aqui uma “função moral”.
A personagem parece-me ser no fundo a incarnação de uma exigência moral que hoje é difícil encontrar.
Quase no final, lembra que essa "moral" elevada "está próxima da moral dos oprimidos a que George Orwell chama "common decency" e que hoje nos parece inútil face à indiferença e à insensibilidade da época actual."
A mim recorda-me a frase de Tchékhov, outro irredutível da moral, da ética e da justiça:
"Soyez décents!"
Quer ele dizer, acho eu:
"Tenham vergonha, sejam decentes! Assumam o que está errado nesta sociedade, não permitam que a indiferença e a insensibilidade vençam!"
Faço minhas as suas palavras!
Lee Cheng-dong é entrevistado , no mesmo jornal.
Conta Cheng-dong que o assunto do filme lhe surgira anos antes, numa terra do interior, enquanto filmava o filme anterior: um acontecimento idêntico.
Algo que o chocara profundamente foi perceber como a comunidade estava toda de acordo para abafar um caso idêntico: polícia, imprensa, famílias...
-“ A minha ideia é mostrar como o sofrimento dos outros pode de repente “atingir” as nossas existências banais. Na televisão, os dramas do quotidiano e da actualidade são olhados por todos como coisas banais, normais.”
E concluímos: até que um dia um acontecimento “presenciado” acorda as nossas consciências.
“Durante o filme inteiro, continua Cheng-dong, a velha senhora não consegue escrever o poema, não encontra as palavras. Sente-se bloqueada. E um dia, durante aquele encontr,o ela assume de repente o sofrimento da outra. É como se na capacidade de sofrer o sofrimento daquela mãe ela reencontrasse as palavras justas, ou antes, o gesto certo.”
Um acto de criação, finalmente a poesia...
http://www.youtube.com/watch?v=3adZ4JX_5nE
Sobre o realizador Lee Cheng-dong:
Lee Cheng-dong foi Ministro da Cultura na Coreia do Sul, de 2003 a 2004.
Diz, ainda, nessa entrevista acima citada:
" A situação do cinema inquieta-me. Não só na Coreia do Sul como à escala mundial. Exigem-se filmes que se "vendam", que sejam comerciais e rendam, em detrimento da criação verdadeira."
E confessa que uma das razões por que se demitiu foi verificar que lhe era impossível "criar um ambiente propício à criação" e que as quotas do cinema coreano seriam infinitamente baixas frente às do cinema americano...
Sobre os seus filmes:
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Às vezes penso que o mundo é um lugar onde crescem flores e ervas daninhas,e que eu,já sem tempo bastante para içar bandeiras contra o mal,procuro que no meu jardim só cresçam as flores que eu regue pessoalmente.
ResponderEliminarNão sei se me podes entender...Suponho que sim, como sempre.
Penso que sim, estamos em sintonia, como sempre...
ResponderEliminarMas tens de vir à rua mostrar as flores que tens. Os outros precisam, acho eu.
bjs e boa noite