sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Poesia contra a barbárie contemporânea...

A actriz, Yun Jun-Lee , em duas imagens do filme "Poesia", 2010

POESIA E SENSIBILIDADE...

Impressionou-me a história do filme que não vi e espero ainda ver: “Poesia”, do realizador sul-coreano Lee Chang-dong.

Ganhou no último Festival de Cannes o Prémio do “Melhor Cenário”.

A actriz Yun Jung-Lee, em Cannes

Uma velha senhora (a ctriz Yun Jung-Lee) vive com um neto adolescente que a mãe abandonou.
Isolados os dois.
Ele fechado no seu mutismo, ela alheando-se cada dia um pouco mais, numa forma de senilidade precoce.

Não falam quase nunca.
E a vida vai passando, simples, numa melancólica apatia, cheia dessas complicações banais que as relações difíceis entre as pessoas trazem.

Um dia apercebe-se de que as palavras não lhe chegam da mesma maneira, quando necessita delas.

Fogem-lhe, procura-as na cabeça e não as encontra. Preocupa-se.

Mas isto sabe-se só depois.

As primeiras cenas do filme mostram o cadáver de uma miúda flutuando nas águas de uma ribeira. É o corpo de uma adolescente que se suicidara, depois de vítima de um estupro colectivo, pelos colegas, grupo do qual fazia parte o neto da protagonista.

Aparentemente, a personagem escolhida pelo realizador como figura central do filme nada tem que ver com esta cena.
No entanto, no decorrer da acção do filme, vai ter.

A perda da memória, lenta e gradual, leva a velha senhora a inscrever-se num clube de poesia: talvez o único modo de dar algum sentido à vida, talvez o modo de reencontrar as palavras, criando...
Pergunta constantemente nas aulas, aos colegas e professores:

- “Como se faz uma poesia? Como se tem a inspiração?”

Não há respostas: é dentro de si que a tem de encontrar...

O autor do artigo que leio (“Le Monde", 25 de Agosto de 2010) é Jean-François Roger e o artigo intitula-se “A dignidade da velha senhora contra todos”.

Nele, afirma o articulista:

“Os filmes de Chang-dong são muitas vezes histórias cruéis que tratam de forma insidiosa a barbárie contemporânea e banal. Uma doce implacabilidade.”


Imagem de Secret Sunshine, 2007

Já no filme anterior, “Secret Sunshine” (2007) –nota o articulista- escolhera um tema doloroso e a mesma tentativa de “compreender” o inexplicável, porque demasiado cruel.

"Secret Sunshine"

Pergunta:

“Por que não exorcizar o mal que a atingiu, tentando substituir a realidade cuja enunciação lhe escapa pela expressão poética, simbólica, cheia de imagens?”

E a história vai-se desenrolando.

Na pequena aldeia, as famílias dos acusados e a imprensa preferem abafar o caso, que traria vergonha para a comunidade, e convencem a velha senhora a servir de intermediária, indo propôr uma soma “reparatória” à mãe da miúda que se suicidara, para ela “esquecer”...

Há um encontro entre as duas, no meio do campo, num pomar.
A mãe da afogada era uma camponesa modesta e jovem, uma pessoa ingénua e simples.

E esse encontro é um momento intenso, porque entre as duas surge de repente uma empatia, uma compreensão total.
Sozinhas as duas e rodeadas da natureza, bela e indiferente, conversam.

Imagino eu.

Esquecendo a sua cínica missão, Miia – avelha senhora- vai falar-lhe apenas das coisas da vida, das macieiras que floriram, da futura maturação das maçãs...


Como se a amnésia “aparente” tivesse aqui uma “função moral”.

A personagem parece-me ser no fundo a incarnação de uma exigência moral que hoje é difícil encontrar.

Quase no final, lembra que essa "moral" elevada "está próxima da moral dos oprimidos a que George Orwell chama "common decency" e que hoje nos parece inútil face à indiferença e à insensibilidade da época actual."

A mim recorda-me a frase de Tchékhov, outro irredutível da moral, da ética e da justiça:

"Soyez décents!"

Quer ele dizer, acho eu:

"Tenham vergonha, sejam decentes! Assumam o que está errado nesta sociedade, não permitam que a indiferença e a insensibilidade vençam!"

Faço minhas as suas palavras!

Lee Cheng-dong é entrevistado , no mesmo jornal.

Conta Cheng-dong que o assunto do filme lhe surgira anos antes, numa terra do interior, enquanto filmava o filme anterior: um acontecimento idêntico.
Algo que o chocara profundamente foi perceber como a comunidade estava toda de acordo para abafar um caso idêntico: polícia, imprensa, famílias...

-“Trata-se pois de um filme com um fim moral”?, pergunta o entrevistador.

-“ A minha ideia é mostrar como o sofrimento dos outros pode de repente “atingir” as nossas existências banais. Na televisão, os dramas do quotidiano e da actualidade são olhados por todos como coisas banais, normais.”

E concluímos: até que um dia um acontecimento “presenciado” acorda as nossas consciências.

Durante o filme inteiro, continua Cheng-dong, a velha senhora não consegue escrever o poema, não encontra as palavras. Sente-se bloqueada. E um dia, durante aquele encontr,o ela assume de repente o sofrimento da outra. É como se na capacidade de sofrer o sofrimento daquela mãe ela reencontrasse as palavras justas, ou antes, o gesto certo.”

Um acto de criação, finalmente a poesia...

http://www.youtube.com/watch?v=3adZ4JX_5nE


Sobre o realizador Lee Cheng-dong:

Lee Cheng-dong foi Ministro da Cultura na Coreia do Sul, de 2003 a 2004.

Diz, ainda, nessa entrevista acima citada:

" A situação do cinema inquieta-me. Não só na Coreia do Sul como à escala mundial. Exigem-se filmes que se "vendam", que sejam comerciais e rendam, em detrimento da criação verdadeira."

E confessa que uma das razões por que se demitiu foi verificar que lhe era impossível "criar um ambiente propício à criação" e que as quotas do cinema coreano seriam infinitamente baixas frente às do cinema americano...


Sobre os seus filmes:

"There’s no question that ‘Green Fish’ and ‘Peppermint Candy’ draw on the political and economic problems of Korea. But they weren’t my main focus. My main interest has always been human beings. I believe film is the best medium to show something about human beings.”

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2 comentários:

  1. Às vezes penso que o mundo é um lugar onde crescem flores e ervas daninhas,e que eu,já sem tempo bastante para içar bandeiras contra o mal,procuro que no meu jardim só cresçam as flores que eu regue pessoalmente.
    Não sei se me podes entender...Suponho que sim, como sempre.

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  2. Penso que sim, estamos em sintonia, como sempre...
    Mas tens de vir à rua mostrar as flores que tens. Os outros precisam, acho eu.
    bjs e boa noite

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