sábado, 18 de junho de 2011

Viajar, ou não viajar... e Fernando Pessoa

Arkip Kuinji, "marinha com barco"



Diz Fernando Pessoa no poema "Marinha":


E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.





VIAJAR OU NÃO VIAJAR NA VIDA...


Há momentos em que se olha para trás, na vida, e se pensa o que se fez, o que se viu, o que se lutou, o que se sentiu...

De repente, percebi quanto a viagem foi importante para mim.
Vivi anos e anos da minha vida a viajar: quinze aqui (neste caso, em Roma), cinco ali etc, etc...


Partir, chegar, partir outra vez...


Uma vez uma aluna disse-me: “Deve ser duropartir dum sítio “seu”, chegar e dizer “hello”, passar tempo, fazer amigos e, logo, anos depois, dizer “good bye”, partir, chegar e outra vez “hello” e tempos depois “adeus”, vou-me embora!”

Tinha toda a razão a Alexandra! Foi assim: duro, comovente, triste, nostálgico...




Conhecer novos países, “perdê-los”, porque não se volta lá! Estão longe, há novas coisas a descobrir e voltar atrás, às vezes, “para quê”?


Reencontrar os sítios que amámos sem os amigos que os “encheram” de vida para nós?


Ver os destroços?


Cidades destruídas pelo trânsito infernal, pelo turismo de massa, pelo caos-não-criativo - quando “ali” era o caos onde tudo se criou?

Conhecer pessoas e “perdê-las”...


Sim. Nem todas conseguimos “guardar” dentro de nós. Muitas ficam pelo caminho. Deixam de responder às cartas, deixam de mandar mensagens e poucos são os que se mantêm fiéis à velha amizade que parecia não ter fim nunca...


“Viajar, perder países...”

Foi quando pensei em Fernando Pessoa e nos seus versos.


O que aprendi? Por que foi importante? Perdi? Ganhei?


Ganhei, sem dúvida. Perdi também.


Viajar... Viajar é viver, abrir as asas e voar e aprender com os outros.
Nunca se sai indemne de uma viagem: “conhecer países” é criativo...

Também nisso o Fernando Pessoa tem razão, acabamos por ser “outro constantemente”, transformarmo-nos em “outros” pela empatia, conhecimento, desejo de os entender.Viajar... Viajar é viver, abrir as asas e voar e aprender com os outros.

"Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!"

Nunca mais seremos exactamente os mesmos. A película da nossa sensiblidade é “atingida”.


Ficam nela marcas nela coisas indeléveis e inesperadas, por vezes nem consciencializadas...

Boas ou más recordações que nos deixem, as repercussões das viagens (exteriores? interiores, apenas? Que importa?)



Viajar, sair de si, (ser outro constantemente), sair de nós, da nossa maneira de ver e viver e de pensar.


“Olhar” para o mundo, de novo, aperceber a natureza que está em redor, nova também, contemplar paisagens, tudo passar a ser diferente.

Ter outro novo olhar...


Tudo é nosso, tudo está em frente à nossa espera.

Pior é ficar parado...“No cais de onde nunca parto ...”, diz também Fernando Pessoa.


Vário na sua unidade, ou uno na sua multiplicidade.


Lembro o título de uma antologia italiana de poesias dele, feita por Antonio Tabucchi, cujo título sempre me agradou: “Una sola moltitudine”.

Contraditório e paradoxal, sempre. Por que quer "ser outro constantemente"?

No fundo, a heteronímia não será essa sua vontade de "ser outro", nunca "um só"? A sua insatisfação, instabilidade, sentimento de mudança, intermitência - que não lhe "permitem" ser "um só"?

Partir ou não partir, afinal?
Viajar (perder países/ser outro constantemente) ou não viajar (no cais donde nunca parto)?
A legenda da fotografia, tal como foi “dedicada” ao poeta Carlos Queiroz seu amigo é: "Fernando Pessoa em flagrante delitro". (Mas lúcido sempre...)




Ficar parado, indeciso, à espera sem saber bem do quê.

Vagueando pelas ruas vazias (para ele) da Lisboa deserta, das Arcadas (vazias) ao Café Martinho.
Perto do mar, do cais de onde nunca parte -mesmo ali ao lado (cheio de barcos, mas para ele vazio)- até à bela Praça do Comércio vazia...


Vazio tudo, porque ele os não via. Não os "queria" ver. E afinal o mundo estava lá fora. Ali ao lado, mas longe. Inatingível para ele.

A ver os outros
partir.
Ou sem ver os outros partir?...

"São felizes, têm pena

eu sofro sem pena a vida”...

Ele, o órfão voluntário “de um sonho suspenso”. sofre o "viver" sem pena.

Imerso para sempre “na maresia dos dias”...


Nunca mais acabávamos, a interpretar as contradições de Fernando Pessoa!

Bastava ter partido...

Daquele cais...


Nada tem fim, nem os países que aparentemente se “perdem”, mas dentro de nós ficam, tal marca indelével de tinta invisível...

"Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E a ânsia de o conseguir!"


E cada vez mais forte “l’envie d’ailleurs”...

Partir! Viajar! Ir de encontro ao futuro!

No regresso, quando paramos, há uma sedimentação das coisas que vimos. Algumas imagens, cheiros, sentimentos, desaparecem para sempre da memória, outras parecem-nos mais suaves nos contornos, diferentes na lembrança.


Mas outras permanecem: fizeram-nos de facto mudar e “crescer” e “abrir” para um outro mundo.

Se a viagem é o viajante (velha questão), o viajante também se enriquece com a viagem, logo o viajante é a viagem!

Leiam agora os poemas (Fernando Pessoa/ortónimo)


1. MARINHA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida !

São felizes : têm pena...

Eu sofro sem pena a vida.


Dôo-me até onde penso,

E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,

A maresia dos dias.



Fernando Pessoa, nº 5 da revista "presença", Junho de 1927

2.

Viajar, perder países...

Viajar! Perder países!


Ser outro constantemente,


Por a alma não ter raízes


De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!


Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.


Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.



Bom fim de semana!


7 comentários:

  1. Gostei imenso deste post.
    É "comovente, algo triste, nostálgico".
    Bonito e forte.


    Tantas pessoas passam pela nossa vida.
    E algumas deixam marcas tão bonitas e tão fortes.
    Essas é que valerá a pena guardar.

    Gosto muito de Fernando Pessoa.

    Um beijinho
    Isabel

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  2. Falcão,

    Belo Post! Como não ser belo ao se falar de Pessoa?

    Um grande abraço!

    Carlos Kurare

    "A distância não limita as pessoas...pessoas é que limitam pessoas".
    Carlos Kurare

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  3. Gostei muito da viagem que este post me proporcionou.
    Eu, que "nunca do cais parti", viajo muito interiormente e também sei bem o que é "ficar parado, indeciso, à espera sem saber bem do quê"...

    um abraço :)

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  4. MJ Falcão,
    Este é um tema caro para mim. Primeiro viajar, porque viajo sem sequer sair de cá.
    Viajar porque partir constantemente fez parte da minha vida errante. Só há uns anitos para cá estou com uma vida mais (in)estável mas a rotina agonia-me. Morro de quietude...
    Preciso de viajar de partir e de chegar, de rir e de chorar com o adeus e com a chegada.
    A vida é uma viagem não linear como o tempo.
    A heteronomia de Fernando Pessoa alimenta-me por isso, ele é o meu eleito entre todos os portugueses.
    Este seu post está sublime!
    Belo, triste, alegre. é a MJ que temos vindo a conhecer.
    Sinto que é uma bem-querença conhecê-la!
    tenho uma surpresa para si mais logo ou amanhã.
    Beijinhos.

    Adoro a música dos Pink Floyd que colocou. :)))

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  5. Querida e tão amada amiga,

    Não perdemos aquilo que não nos pertence de uma certa forma, não se acaba o que nunca existiu.

    Já existimos no instante - perpetuamos mais as tristezas que as alegrias.

    Gravamos de tí o sorriso, as mãos pequeninas e brancas, os olhos que somem quando o sorriso se alarga. A voz mansa, suave e pausada. O passo curto, as mãos para trás, conversando e meditando. Não perdemos você, ganhamos instantes de rara cumpricidade e isso, não há anos que lave.

    Estaremos sempre aí, dançando, rindo e cozinhando ... e o relógio apenas marcará 14:00 hs, horas essas difíceis de chegar, mas tenha a certeza, dentro de tí: viajaremos juntas, sem adeus entre nós e sempre um "até breve".

    Beijos de todas nós,

    Cozinha dos Vurdóns

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  6. Saudações nobre amiga e uma vez mais estou aqui nesse espaço que abre uma vitrine de nostálgicas miscelâneas culturais e aprendizado do belo e do desconhecido. Sou mais uma vez grato pelo carinho dedicando e compartilhado nas postagens onde a referencia do Borboletas de Jade são mencionados como referência e porto seguro. Meu coração se alega com suas visitas bem como seus comentários a ilustrar minhas paginas. Fique na paz e mais uma vez seu eterno arauto fica consternado.Namaste.

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  7. Às vezes no caminho chegamos a encruzilhadas, e às vezes a viagem continua por onde nunca tínhamos sonhado, e às vezes até vale a pena perder-se para poder encontrar-se.

    Sei que pensarei em ti toda a semana.

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