sábado, 10 de outubro de 2009

Mais um capítulo de "Os Olhos de Jade": capítulo 8









CAPÍTULO 8



Arrefecera durante a noite e a manhã chegara fria mas sem nuvens. Um sol fraco brilhava, no alto. Emily e Helen tomavam o pequeno almoço, junto da janela virada para a rua.
Viviam juntas há três anos. Decidida a separação, e antes do divórcio, Rudolph mudara-se para casa de Sally. Helen vendera a velha casa perto da Market Street e fora viver com a irmã. Era um belo apartamento na parte central de Brighton. A solidão e o gosto pela independência de ambas equilibravam-se assim.

Emily saía cedo para o Hospital, raramente vinha almoçar. Helen retomara as explicações de filosofia, tinha poucos alunos e muito tempo livre. Descia pela Kensington Street, ia à Church Street, entrava nas livrarias, parava a beber um café e a ler o jornal. Outras vezes pegava no carro, ia até à Promenade, sentava-se numa das esplanadas, a tomar chá sozinha. Lá em baixo, na beira-mar havia quiosques de fish & ships mas disso não gostava. Ficava sentada, encostada à parede do café, a ver o mar, o Pier ao longe, nas suas linhas delicadas. À noite, costumavam jantar as duas em casa, viam um pouco de televisão, liam, ou conversavam.
Tomavam, silenciosas, o pequeno almoço e pensavam no dia anterior. Tinham saído de casa de Joan desorientadas, pouco falaram durante o serão e tinham-se deitado cedo. A noite de sono tranquilo, e a luz da manhã, aquele céu azul que não parecia de Inverno, desanuviara-lhes o espírito e os acontecimentos ganharam um certo distanciamento. Ficara a dúvida.
-Pensas que a Joan tem mesmo razão? Não estará a exagerar?
Helen ia barrando o pão com doce de laranja, enquanto falava.
-Emily, não estás a ouvir? Nunca respondes! Pareces um muro...
Emily ouvira mas queria pensar antes de responder, não tinha a certeza do que pensava.
"Tinha sido tudo tão inesperado!"
-Ouvi, ouvi, disse ela, mas não sei o que hei-de dizer... Confesso que ontem à noite não conseguia adormecer, virava-me e revirava-me na cama, com uma insónia terrível. Talvez exagerasse, talvez não...
-O que ela nos confiou é o suficiente para ficarmos preocupadas, esta é a realidade -continuou Helen.
-O que é que nós duas podemos fazer? Estamos velhas...
Emily suspirou. Sorvia devagarinho o chá.
-Velhas?! Estás parva! -reagiu Helen, violentamente. O que podemos fazer para já é pensar! Como a Joan disse!
- O quê?
-Lembrar os últimos dias que a Abigail viveu. Todos os pormenores. Pessoas, gestos, frases estranhas...Creio que era a isso que ela se referia, não era? Tudo o que fosse fora do normal...
-E recordar as coisas de que ela falou no jantar, não achas? Mas não me lembro de nada...
-Lembras-te do jantar, disso lembras-te com certeza. Não costumamos ter jantares assim, nem ver tanta gente! Até te lembraste da conversa do James Bond. E a Alice falou em coisas estranhas. A que se quereria ela referir?
- A Abigail estava muito excitada...
-E estava... Tenho uma ideia das tais ameaças veladas a que se referiu a Alice. Não eram dirigidas a ninguém em particular. Era assim como uma coisa dita no ar. Uma ameaça vaga, uma coisa difusa... Não te lembras?
-Não, sinceramente, não me lembro. Sabes que me distraio muito, e que não ouço metade do que as pessoas dizem. E nesses jantares, há uma confusão tal de vozes, uma quantidade de comida! E não estou habituada a beber...
- Pois é, mas pensa lá...
- Tens razão, vou tentar...O que terá sido? Consegues lembrar alguma coisa?
Helen levantou-se e foi buscar um maço de cigarros novo. Abriu-o, acendeu um e voltou a sentar-se.
-Tenho uma ideia. Ela falou...
-Nem acabaste de comer e já estás a fumar! Faz-te mal... - protestou Emily.
-Por amor de Deus, não comeces também tu com a fúria anti-tabaco! Já me chega aturar as pessoas nos cafés, nos transportes, em toda a parte! Dizem que até o Hitler era contra o tabaco! Gostava de saber por que é que ninguém se preocupa com o que para aí se bebe!
- Calma, Helen! não te enerves...
- Podiam ir aos pubs, para se entreterem e se cultivarem sobre a matéria. Li numa revista que Brighton é a cidade com maior densidade de pubs! Uma vergonha!
-É normal, Helen, é uma cidade cheia de gente nova, de estudantes.
Emily sorria.
-Desculpas... Sempre foi assim, com estudantes ou sem eles! -disse Helen, secamente.
De repente, começou a pensar em Rudolph. Não sabia porquê, mas, por uma associação de ideias, lembrara-se dele.
- “Pois é, foram os pubs...”
Imaginava-o agora a passear com a Sally, a irem os dois beber uns copos ao pub. Às vezes ia espreitá-lo, ao “Dorset”ou ao “O’ Donovan’s”. A discutir com o Higgins. Estavam sempre juntos, aqueles dois! A planear as apostas. Apostavam sobre tudo o que era possível.
-“E eu? Parecia um amor que não acabaria nunca”- pensou. “O nosso, claro”.
Depois, começara a abrir-se um fosso. Para o fim, já não falavam.
“Cansou-se de viver comigo...”
Soube, depois, da história com a Sally, uma loira deslavada com um corpo bonito.
-“Uma criatura insípida!"
Ele parava na farmácia, entrava, e ficava a falar enquanto ela atendia os clientes. Tinham-lhe contado.
- A parva da caixeira...
-Lembraste-te de alguma coisa? –perguntou Emily, sobressaltada.
-Oh! não! Estava a pensar no Rudolph e na Sally.
-A que propósito, Helen?! Por amor de Deus!
-Ele e a caixeira! Era um charmeur, uma pessoa tão interessante... Hoje, vendo-o assim, gordo e velho, ninguém diria...
- Isso acabou, Helen!
- Tens razão, acabou...Lembras-te do velho Higgins? Era o pai da Sally, claro que te lembras. Dantes, a farmácia era dele...
Dirigia-se a Emily, mas olhava pela janela, como se se limitasse a pensar alto.
-Que homem estranho! Aqueles cabelos louros espetados... Coitado, morreu com um cancro. Magríssimo, com os olhos encovados, parecia ainda mais alto.
-Quando adoeceu, passou a farmácia à filha, pois foi. Não era amigo do Rudolph?, perguntou Emily.
-Quem? O Higgins? Era, claro que era, por isso é que me lembrei dele.
Deu um suspiro, e continuou:
-Por causa dele é que começou a frequentar a farmácia. Jogavam às cartas, apostavam sobre tudo o que havia neste mundo! E no outro...Aposto!...
Riu-se, aliviada.
-Apostas? Tu, Helen?!...
- Não! Estava a brincar. Sim, ligava-os uma velha amizade. Estiveram em África, ele e o Rudolph, daquela vez que te contei.
-Contaste, claro...
- O que é que ele sabia de mim?...
Continuava o raciocínio, a pensar em Rudolph, agora em voz alta, sem se dar conta de que o fazia. Emily olhou para ela, espantada.
-De ti? Quem? Estás a falar comigo?
-Desculpa, estava a pensar alto. Que estúpida! Sabes, o pior foi quando percebi que já não tinha medo de viver sem ele...
-Helen, acabou...
-Tens razão, acabou mesmo. Mas sei que houve qualquer razão para pensar nele. Não sei o quê. Espera, de repente veio-me à ideia que a Abigail poderia estar-se a dirigir ao Rudolph naquela noite. Falava de drogas, pensei que até podia estar a referir-se a produtos farmacêuticos. Se ela foi envenenada...Não, não faz sentido... Devo estar doida!
- Doida? Por que dizes isso?
- Pus-me a pensar na Sally por causa do veneno... Foi um choque quando ele me deixou. Ou fui eu que o deixei, Emily?
-Foste tu...
-Sim, eu é que o pus fora, senão teria ficado por ali...Quando os vi os dois juntos, pela primeira vez depois do divórcio, fiquei louca, perdi-me pelas ruas de Brighton, a falar sozinha, não sei se te contei...
-Contaste...
-Bem dizia ontem a Alice, que sou uma parva sentimental. Estúpida e masoquista!
-Helen! Não te martirizes... Um divórcio é um divórcio...
-O que é que tu sabes disso? De divórcio, de separação? De duas pessoas que, por uma razão qualquer, ou sem razão nenhuma, se amaram, viveram juntas...Não sabes!
-Sim, é verdade, não sei. De facto não sei. Nunca me casei, nunca dividi a minha vida com ninguém.
Calou-se, afastou a chávena para o lado e continuou:
-Há bocadinho perguntavas: o que é que “ele” sabia de ti? Agora pergunto eu: o que é que sabes de mim? E somos irmãs... Preocupaste-te em saber de mim? Da minha solidão?
Emily falava devagar, com os olhos baixos, a mexer nos miolos de pão.
-Foste tu que escolheste ficar sozinha, não foi, Emily?
-Julgas que é assim tão simples? Escolhe-se e pronto! E o que há por detrás dessa escolha?
-Eu sei, foi o David... Ele preferiu a Abigail...
E Helen olhava-a de lado, preocupada.
-Pois é. Mas não foi só isso.
-Odeias o David? E a Abigail, odiaste-a por ter ficado com ele? Estava a pensar se serias capaz de a matar, se terias ódio para tanto? Lembrei-me que a Abigail, nesse jantar, uma das coisas que disse foi que o David vinha aí...
-Disse? Já não sei se disse! A conversa da Joan deu-te volta à cabeça...Odiar a Abigail, eu? Nunca seria capaz... Gostava tanto dela! Exerceu sempre um fascínio enorme sobre mim, desde pequenina. Eu era muito mais nova do que vocês, gostava de a imitar, vestir o que ela vestia, pintar-me como ela. O David conheci-o pouco... Ele veio naquele Verão e decidiram casar-se, foi tudo tão rápido. No fundo, imitei também o amor dela pelo David. Foi apenas isso...
-Estás a ser demasiado simplista...Sofreste. E ficaste sozinha.
-Claro que sofri. Mas ficar sozinha não foi uma escolha que tivesse que ver com o David, ou talvez só indirectamente. Quando escolhi ser médica, percebi que teria de ser uma dedicação profunda, completa, que a não podia partilhar com mais nada... Não podia haver uma divisão entre essa e outras paixões. Talvez viesse daí o medo de me apaixonar, de sair de mim, de perder o controle e, assim, estragar a minha vida profissional... Essa, sim, era uma paixão...
-Foste feliz? Devia ter-te perguntado há mais tempo, não é?
-Oh! Não te estejas a culpabilizar! Para quê? Vias que eu estava bem... Quanto à felicidade, o que é a felicidade? Uma sucessão não-contínua de momentos felizes. Momentos de contemplação, de beleza, roubados ao absoluto... Momentos de intensidade? Chamemos-lhe plenitude, satisfação interior... E calcula tu que se pode sentir tudo isso sozinha...
-Eu sei que se pode...
-A nossa própria solidão pode ser uma companhia. Parece um contra-senso mas não é, pode acontecer... Sim, fui feliz muitas vezes. Até pelo sentido do dever, que se cumpre todos os dias. Dar aos outros o que se pode...
-Tens razão, é como um saltitar de instantes felizes... E dar aos outros pode ser também a felicidade.
Olhava um pouco espantada para a irmã, quase receosa, não lhe conhecia aquela força, estranhava a veemência e a segurança, ela sempre tímida e calada. Voltou a desconfiança:
“Seria ela capaz de uma violência que ignorava?”
-Mas retomando a nossa conversa...
E Emily continuou, agora num tom tranquilo, distante:
-Não, nunca odiei a Abigail, não matei a Abigail... Ficas mais descansada?
-Fico...Acho que sim...
Helen parecia hesitar:
-Reconheço que foi uma pergunta estúpida, mas fico mais descansada...
Esmagou o cigarro no cinzeiro de estanho.
-Quem terá sido, então?
-Tens razão, quem terá sido?
Por um momento, calaram-se. Na rua ouviam, abafado, o ruído do tráfico, uma buzina, os travões de um autocarro.
-Todos estavam lá! - exclamou Helen.
-Quem? Onde? - sobressaltou-se Emily.
-“Estivemos lá todos”, foi o que ela disse. Queria referir-se a África. No tal jantar...
-Mas nós não estivemos ...
E Emily acentuava o lá, como Helen fizera.
-Nós duas, não, mas eles sim. Repara que todos passaram por África, num momento ou noutro. Podiam muito bem ter-se encontrado, quem sabe? Terem-se cruzado os destinos deles. Estaria nisso um motivo para a Abigail se referir a esse facto. Alguém que queria esconder coisas do passado.
-São hipóteses, claro, mas podes ter razão. Mas o quê? E quem seria a pessoa a quem ela se dirigia? Stephen Travis? É uma personagem estranha! E o que a Alice disse não o colocou em melhor luz. Ou o Rudolph Croft? O teu Rudolph... Repara que o que estiveste a dizer dele também não o coloca em muito boa luz.
E Emily olhava-a ironicamente. Helen ignorou o olhar:
-E o Dr. Smith? Não te parece misterioso? Não sabemos muito ou, antes, não sabemos mesmo nada, dele! Sempre calado. Até o nome é demasiado vulgar, anónimo... Smith! Ou Schmidt? Porque não um alemão?
Hesitou:
-E se reparares, o próprio Gabriel viveu lá...
-O Gabriel? Estás doida! O que ele gostava da Abigail!
-Ainda ontem reconhecias que ele era esquisito, já não te lembras?
Agora era Helen que se mostrava irónica, como se tivesse apanhado a irmã em falta:
-Todas as hipóteses são válidas! E o David?
-Sim, é verdade. Há bocado lembraste que a Abigail dissera que o David vinha aí. Mas eu não...
-Claro! Até o David? Por que não ele?...Pode ter voltado para a matar!
Helen mostrava-se excitada com a ideia. Acendeu outro cigarro e aspirou o fumo com força.
-Por que não?
-Oh! Helen! Parece impossível...O David era bom, não fazia mal a uma mosca! Que disparate! Só a tua imaginação distorcida!
-Imaginação? Apenas lógica: ele vinha aí, não vinha? Podiam ser ciúmes...
-Ciúmes? Se foi ele que a deixou! E ciúmes de quem? Do Gabriel...? Estás parva...
Parou um momento e continuou:
-Não era verdade que o David vinha... Acreditaste nela? Eu não. Olhei-a, nesse momento, e percebi que não era verdade. O tom de voz, triste, o olhar sem brilho... Não, não podia ter dito aquilo daquela maneira, se fosse verdade. Amou sempre o David... Não o dizia assim, não podia...
-Está bem, aceito! Mas quem, então? Só um grande ódio! Ou interesse, ou medo, é que podiam ter levado alguém a assassinar a Abigail. Ódio, não acredito... Interesse? Qual? Medo? De quê? Conclusão: não chegamos a lado nenhum! Temos que nos espevitar!
-Estamos a usar a cabeça, como sugeriste...Que outra actividade nos resta?
Emily encolhia os ombros.
-Já não somos novas... Medo? Medo de que ela revelasse o segredo! Podia ser o motivo...
-Gostava de fazer qualquer coisa. Vou voltar a casa dela, quero falar com a Mary. Há pormenores que ignoramos!
- Sim, praticamente tudo...
- O que aconteceu nos dias antes da morte dela, por exemplo! Talvez a Mary se lembre. E quero falar com o tal guarda. Vou assustá-lo!
-Talvez seja boa ideia... Eu fico por aqui. Dou um jeito na casa e depois sento-me a ouvir música. E a pensar...
Apontava para a salinha ao lado, confortável, com os seus maples pequeninos forrados de chintze às flores, a cadeira de baloiço e a estante cheia de livros onde se via uma boa aparelhagem sonora que Helen trouxera da outra casa para substituir o seu velho pick up.
-Faz como quiseres, eu sou mais activa, preciso de movimento, tenho que me mexer...Tu és a contemplativa da família...
-Contemplativa, ou não, acredito que vai ser na nossa memória que vamos encontrar a solução. Se existir... No fundo, guardamos mais cá dentro do que julgamos e, às vezes, é como um filme antigo a desenrolar-se e as coisas a ligarem-se por fios ténues umas às outras.
E apontava para a cabeça.
-Talvez...
Helen parecia duvidosa.
- Sim. Imagens, olhares que julgávamos perdidos, esquecidos... Fui a casa da Abigail muitas vezes nos últimos dias. Vi muita gente. Vou-me concentrar a ver o que “aparece” no filme...
-Óptimo! Compro umas coisas e vou almoçar com a Joan. É só buscar o casaco e a mala...
Parou e, à porta, virou-se para Emily:
-Sabes? Acho que um dia destes tenho que falar com o Rudolph...
E saíu, sem lhe dar tempo de perguntar fosse o que fosse.

2 comentários:

  1. Entrei hoje pela 1ª vez neste fabuloso blogue . Estou a adorar ler o que nele está inscrito. Vou ler “Olhos de Jade” desde o 1º capitulo para perceber melhor esta que parece ser uma linda historia.
    Obrigada por nos dar o privilégio de poder ver e ler o seu blogue.
    Beijos da amiga Eugénia Santa Cruz

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  2. É maravilhoso ouvir o que dizes... Os meus "Olhos de Jade" andam comigo há muito, mas continuam inéditos. São os amigos -que me lêem- que o lêem. E é bom...Acompanha.
    beijos
    o falcão

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