Este quadro de Zinaida Serebriakova, pintora russa que muito admiro, poderia ser uma boa ilustração para a "amizade"... 1ª edição do livro "No Reino da Dinamarca"Recebi uma carta da Delfina...
A Delfina foi uma das minhas últimas alunas na Escola de Sintra.
Trabalhava na Mediateca da Escola (ela e a Ana) e ao mesmo tempo tirava o 12º ano.
Uma aluna exemplar (outras o eram...), atenta, entusiasmada, radiosa quando lhe nasceu o primeiro neto. Benfiquista, desculpem lá os outros que o não são... É a verdade.
Lembro-me quando me mostrou a primeira fotografia do bébé, enfeitado com um grande cachecol do Benfica ao pescoço...
Tenho saudades dessas noites e das nossas aulas.
De vocês todas!
Não me canso de repetir que muito aprendi sobre a vida, a coragem, a humanidade, nessas aulas da noite.
Admirava a coragem de virem, depois de um dia de trabalho, com o entusiasmo misturado de cansaço, a vontade firme (não de todos, é claro) de "abrir a mente", aprender, a curiosidade dos assuntos que estudávamos. Dispostas a enfrentar essa luta que era dura...
E riam.
"Gosto tanto de poesia!"
" Não conhecia bem o Fernando Pessoa..."
"Ah! Eu já conhecia um pouco..."
Fernando Pessoa foi, de facto, uma dessas "alavancas" para o saber...
Arrancámos com ele, no início do 12º ano de Português.
Ao princípio "não-amado" por algumas, pelo seu pessimismo.
"É absurdo!"
"Não se pode ser assim, tira a vontade de viver...!"
Mas Pessoa é vário, Pessoa é grande e tem muito mais que o pessimismo para nos dar.
No final do período, havia já outra ideia, outra compreensão do poeta.
E de repente revejo-as a "representar" Sttau Monteiro e "Felizmente há Luar"!
Modificavam-se. Todas queriam o seu papel na peça e repetíamos a leitura as vezes necessárias para poderem "actuar".
Interpretavam com seriedade, entusiasmo, sem brincar.
Mas havia inevitavelmente uma certa tensão nesse trabalho e, de vez em quando, desatávamos todas a rir, bastava um engano de alguma...
Vejo lá atrás os olhos da Delfina (uma alentejana em Sintra, como ela gostava de se definir...), da Ana Maria, da Jesus (que será feito da Jesus e dos seus problemas?);
da Sandra (que escrevia muito bem, gostava tanto de ler e fez um belíssimo comentário sobre um poema de Fernando Pessoa);
da Eugénia que escreve poemas sentidos e pequenos contos -com muita sensibilidade- falando da sua aldeia de Góis, da infância de "guardadora de rebanhos", como no poema de Alberto Caeiro que tão bem soube compreender: dizia-me ela: "Ó, stôra, era mesmo assim!"
"Sou guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.";
da Paula que me contava as histórias das suas férias, em roulotte, com o marido e os filhos, da descoberta fantástica da natureza aberta e pura, o mar em frente, sem crivos nem poluição, a simplicidade de viver em liberdade durante uns tempos;
da Carla e das suas meninas que um dia a transformaram em sereia! Um picknick, ao pé da piscina, a mais velhinha desequilibra-se e cai, a Carla mergulha vestida, "salva" a filha e, enquanto a enxuga, a mais nova deita-se de mergulho... Lá vai a Carla! Salva a segunda filha, mas já não tem forças para mais nada: vai deitar-se no primeiro sofá e adormece!;
da Isabel Francisco, alentejana como eu, que aos poucos me foi contando a sua pena de não ter estudado, quando era nova. A morte súbita do pai, as dificuldades da família -tudo o que se "meteu ao meio/o que devia de vir, veio", como diz Régio- e ela teve de ir trabalhar, ainda menina;
da Sílvia que tudo ouvia mas tanta dificuldade tinha, na síntese, ao escrever, a Sílvia e a sua dificuldade de viver, depois da morte do irmão, a Sílvia e os seus olhos perscrutadores que pareciam assustados;
da Ana sempre a pensar alto, tão pronta a protestar como a admirar e que se esforçava verdadeiramente a estudar;
das Filipas -a Ana e a Carola-, boas como o pão fresco as duas, bom coração à flor da pele...
Ah! Faltava falar da Manela! A Manela cujos pais tinham sido emigrantes na Suíça, que tinha saudades desses tempos. E as suas filhas já grandes que estudavam, de dia, ao mesmo tempo que ela.
E sorrio ao lembrar o telemóvel dela a tocar, um minuto antes do fim da aula, que acabava à meia noite menos um quarto... E do seu olhar ao princípio assustado, depois já confiante:
"É o meu marido que se preocupa..."
O engraçado é que os nossos telemóveis tinham o mesmo som de chamada e muitas vezes era o mas é o meu marido, preocupado...
Enfim, tenho saudades delas!
Escreve-me a Delfina:
"Querida amiga!
Começo por pedir desculpa por demorar a responder à mensagem, não por me esquecer, mas por andar bastante ocupada! No trabalho, como deve calcular , a mediateca está sempre cheia de alunos e nesta altura -com o final do período próximo, ainda mais alunos procuram o espaço para realização de trabalhos de final de ano ou aquele trabalho que irá ser a salvação de uma nota menos boa.
A Delfina e a Ana, na MediatecaEstou também a frequentar uma acção de formação de técnicas de informacão e comunicação, o que me ocupa mais algum tempo!
Deixo-lhe um poema de um poeta de que gosto muito...
(...)
Uma sugestão para o blog!
Delfina" As andorinhas não têm restaurante...Aceitei a tua sugestão -mais do que justa- de apresentar um poeta que às vezes me parece que está esquecido.
E que fala aqui tão bem da Amizade...
E de outras coisas.
Amigo
Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O’Neill (in No Reino da Dinamarca)
Lembro um título de O' Neill: As Andorinhas não têm Restaurante
Em "As Andorinhas não têm Restaurante" estão reunidas algumas das crónicas semanais que O'Neill publicou no "Diário de Lisboa" e mais tarde foram reunidas num livro breve. "É a sua visão crítica e simpática da vida de Lisboa, com o conhecimento próprio, vivo e sugestivo, do ambiente boémio que se vivia; uma caricatura algo cúmplice do marialvismo dominante, um sentimentalismo que se defende pela ironia e pela ternura."Cito do site onde vem apresentado o Livro Audio abaixo indicado, livro "falado", com a voz do actor e encenador, Jorge Silva Mello. Podem ouvir um pouquinho...
http://mhij.pt/audiolivro/as-andorinhas-nao-tem-restaurante/
Alguns títulos, de Alexandre O'Neill, de obras recentemente reeditadas: "A Ampola Miraculosa"
Colecção: Obras de Alexandre O'Neill
Assírio & Alvim - 2002
(Edição Fac-similada)
"Já Cá Não Está Quem Falou"
Colecção: Obras de Alexandre O'Neill
Assírio & Alvim , Ano 2008
"Uma Coisa em Forma de Assim"
Editora: Assírio & Alvim
Colecção: Obras de Alexandre O'Neill
Ano: 2004
"Anos 70 - Poemas Dispersos"Editora: Assírio & Alvim
Colecção: Obras de Alexandre O'Neill
Ano: 2009 2ª Edição
Nota: Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924 na cidade de Lisboa. Morre em 1986, vítima de um acidente cardíaco.