quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros (2)

A Rua dos Sapateiros ficava no caminho para o Liceu.
Paul Cézanne, casa com árvores
Bastava fazermos um pequeno desvio, subir um pouco da rua que vai para o Largo dos Aviadores, virar à direita e lá estávamos. Depois, logo ao fim da ruazinha, deparávamos com o belo edifício do Liceu, lá em baixo das escadinhas, no antigo Largo do Corro.
A chegada ao meu Liceu foi também a descoberta de outras amigas, meninas da minha idade vindas de mundos que não conhecia, que vinham ter comigo, que me perguntavam: "Ouve, vamos brincar... Queres falar comigo? Queres ser minha amiga?"


Renoir, a leitura

Estava habituada apenas às minhas irmãs e a duas amigas mais íntimas.
Uma era a Letícia –do nome da heroína, a princesa, do Príncipe com Orelhas de Burro, de José Régio, que era seu padrinho.
Uma moreninha sempre a rir, com duas covinhas na face, com quem eu brincava tardes inteiras, inventando histórias com bonecos de papel, no vão das escadas que iam para o sótão e para a varanda. Mais tarde, juntava-se às nossas brincadeiras a pequenita, quando cresceu.
Outras vezes levava a minha boneca e ia brincar para o quintal delas que tinha muitas árvores de frutos, e muros de pedra cheios de musgo verde. Morávamos todas na Rua dos Canastreiros e a casa delas era um pouco acima -e do outro lado- da minha casa amarela.Paul Cézanne, menina com boneca
E a Gioconda, a irmã mais velha, loira e de cara redonda, que era mais amiga da minha irmã.
A mãe delas era a melhor amiga da minha mãe e conheciam-se há muitos anos. Tinham estudado piano juntas, e ainda me lembro de a ver na Serra, poucos anos da minha mãe morrer. Emagrecida, mas com os mesmos olhos verdes que tudo desafiavam.
Até a morte, tenho a certeza.

Era uma mulher alta, elegante, sensual que eu achava bonita, de pele mate e olhos esverdeados de cigana, que me lembravam os dos gatos, e uma boca vermelha pintada.

Vinha muitas vezes tomar chá com a minha mãe e conversavam toda a tarde. Por vezes zangavam-se, penso, e durante meses não voltavam a falar-se.
Uma vez, no Carnaval, zangaram-se quando foi a história -que já aqui contei- dos ratinhos dentro das violetas...
Sempre empertigada, autoritária, tinha, ao sorrir, as mesmas covinhas na face da filha.
E, depois, havia as amigas de passagem que vinham passar as férias do Verão: a Liginha, mais velha do que nós, que chegava de Lisboa, bronzeada, com ideias e toilettes estranhas, muitos sorrisinhos, luvas de renda branca, fitas largas nos cabelos -que espantavam a cidade toda, pensávamos nós...

Vrubel, amigas ao fim da tarde

Recordo ainda hoje o seu modo afectado de falar, e o riso com os dentes à mostra, que pretendia ser simpático mas que queria sobretudo deslumbrar-nos.
E a Rosarinho, que estudava no Ramalhão, que nos parecia uma coisa tão longínqua, nem sabíamos bem onde ficava esse Colégio. Um pouco desse mistério vinha com ela. Lembro-me de de a ver chegar, com uns sapatos de salto alto, uma saia branca cheia de pregas, plissada, dizia-se então, e um cinto verde de seda.

Íamos ao Café Central beber limonadas e groselha e passeávamos à noite no Rossio. Elas, à vontade, frescas nos seus vestidos novos, eu, miúda arrapazada nesses tempos, tímida, ficava um pouco impressionada, e invejava-as às vezes.

o largo da esplanada do Café Central, na antiga Praça dos Correios

As meninas do meu Liceu não eram assim.

Vinham dos arredores da cidade, muitas da Serra de S. Mamede e das aldeias à volta, ou dos Fortios, de Alpalhão, de Gáfete.
Eram meninas do campo, com as carinhas vermelhas do sol e do frio e as mãos com cieiro e, tantas vezes, frieiras.
As roupinhas delas cheiravam bem, a lavado, tinham o perfume da roupa corada ao sol.
Elas próprias me pareciam meninas coradas ao sol.
Tive algumas boas amigas que recordo com saudade.
Sabe-se lá o que a vida fez delas? Onde andam? O que fizeram? Foram felizes?
Como sabê-lo?

A Helena foi a minha primeira colega de carteira, nesse 1º ano.
Vejo ainda a simplicidade dela, o seu olhar de cão bom, porque era o que me fazia lembrar: os cães doces de certas histórias de Walter Disney...

Lembro-me de a ver vestida de preto, o pai morrera há pouco tempo.
Tinha os cabelos castanhos muito lisos, uma pele clarinha mas baça e uns olhos tristes que se animavam quando me contava histórias...
Eram histórias de fantasmas e de mortos, que eu ouvia com um ar incrédulo, mas encantada, como, noutros tempos, com as histórias de lobisomens que a Hermínia nos contava à braseira.
E abria muitos os olhos, como a Hermínia fazia. Para me assustar...

Chamava-se Maria Helena. Maria Helena de Deus Almeida! Nunca me esqueci do nome dela...
Ensinava-me a esfregar os dedos nas costas da mão com força, e depois dizia-me:
-“Cheira!”
Eu cheirava, curiosa, e era um cheiro desconhecido.
-“É o cheiro dos mortos”, dizia, com ar soturno.

Isso assustava-me. Seria verdade que os mortos cheiravam assim? Nunca tinha visto um morto.
-"É como a carne morta...", explicava ela, "cheira assim"...
Hoje, ao lembrar-me dessa história, tentei repetir esses gestos, reencontrar o cheiro, enquanto pensava nela.
Esfreguei os dedos nas costas da mão, cheirei. Não me cheirou ao cheiro dos mortos desses tempos, nem a nada de estranho.
Cheirou-me a creme, coisa que dantes não usávamos...
vista de Portalegre com malmequeres
Onde vai tudo isso? Os meus primeiros tempos do Liceu? A minha cidade hoje tão mudada?
As minhas amigas?
Zinaida Serebryakova, menina a ler

4 comentários:

  1. Olá,bom dia.Os cheiros da infância!O rosmaninho e o alecrim,os caminhos de terra com as giestas em flor,os campos de papoilas,o vento a assobiar nos pinhais.Aquela lua.
    Agora voltamos a vista atrás de vez em quando,como quem se procura a si mesma.Beijinhos,alegrei-me muito de que se alegrasse com a minha volta.

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  2. Gosto sempre muito que venha "falar" comigo! assim mantemos o nosso diálogo...
    Não escreve nada? Vejo que tem recordações tão belas e di-las tão bem! "O rosmaninho e o alecrim, os caminhos da terra com as giestas em flor,os campos de papoilas, o vento a assobiar nos pinhais..." É muito bonito!
    beijinhos

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  3. Estabelecer um autêntico diálogo é tâo bonito como difícil,como sabe de certeza.Um dia pensei que talvez valesse a pena falar consigo,e nâo me enganei,é um prazer.Beijinhos e obrigada.

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  4. É bom ter alguém do lado de lá, não é?
    Gosto de a ouvir, sei que me entende.
    É uma forma de amizade, empatia natural à distância... Fico contente.
    Boa noite, amiga, e obrigada também.

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